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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 64)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 11 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Cruz de Malta e Dengosas

Lydia Federici

Quase meia noite. Há seis horas estava de pé. Doíam-lhe as costas. E as pernas – como dissera aquele senhor gordo? – pareciam entrar pelo corpo. Olhou para trás. Ninguém devia ter ido embora. A massa humana continuava densa, compacta. Como era possível aguentar tanto? Bem. Os outros que aguentassem. Ela não.

Talvez perdesse o melhor, pelo que diziam. Mas a questão é que, se continuasse de pé, parada, imóvel, ia acontecer o pior. Até tontura estava sentindo. E estava farta de ver desfile e intervalo de desfile. Principalmente intervalo. Virou-se e, justamente nesse instante, o garoto de cabeça rapada falou. Pela primeira vez. Espontaneamente. Como uma nota de orgulho na voz tímida.

"Agora vem o Cruz de Malta. A fantasia de todos foi feita aqui pela mulher do 'seu' Simões. E foi a filha que bordou tudo. A filhado 'seu' Simões". E apontava, com o polegar, para um homem pálido que se esticava sobre o cordão, olhando para a entrada da avenida.

A moça agradeceu a informação. Sair, agora, seria indelicadeza. Suspirou. Experimentou o molejo dos joelhos. Até quando suportariam o peso do corpo?

Apareceu, na curva, o Cruz de Malta. Os clarins atroavam os ares com as notas límpidas, estridentes. Um arrepio correu a multidão. Clarim tem esse dom. Galvaniza. Eletriza.

O Bloco avançou. Uniforme. Organizado. Marcial. As fantasias dos escudeiros e dos arqueiros, perfeitas. Os escudos iluminados, nas evoluções, prendiam os olhos do povo boquiaberto. Ao cruzarem-se, nos rápidos movimentos do frevo, pareciam vagalumes em noite de loucura. Sorriu da comparação. Mas fora a impressão que recebera. E daí?

Bom. E agora era aproveitar o intervalo e sair. Não aguentava mais nem queria saber de mais coisa alguma. Virou-se para a direita – queria conversa com o garoto, não – e um gemido de desânimo assustou-a. A vizinha apertava as mãos, numa angústia incompreensível.

"O Cruz de Malta abafou, não? Uma beleza. Vai ser duro pr'o Dengosas". Continuava a apertar as mãos, estalando os dedos. Nervosa. Angustiada.

"Desculpe. Mas por que essa aflição? A senhora torce pelo Dengosas?" E ia tentando sair, sentindo-se incapaz de fazê-lo. As pernas não encontravam brecha. A moça do lado estava sorrindo. "Não vá agora. Veja o Dengosas. Está bonito também. O pessoal do Marapé luta o ano inteiro para por o Bloco na rua. É bairro pobre mas capricha. Sei porque sou de lá. Meu marido é o presidente. Toda a família vai desfilar. Até gente de cabelo branco. Fique para ver o Marapé. Para ver o Dengosas do Marapé".

E a moça ficou. Não sabe como, mas ficou. Viu Siva. Emocionou-se com o pessoal do Marapé, a fazer a Índia dançar no carnaval de Santos. Prendendo até quase uma hora todo um povo entanguido mas firme no espetáculo.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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