GENTE E COISAS DA CIDADE Cruz de Malta e Dengosas
Lydia Federici
Quase meia noite. Há seis horas estava de pé. Doíam-lhe as costas. E as pernas – como dissera aquele senhor gordo? – pareciam entrar pelo
corpo. Olhou para trás. Ninguém devia ter ido embora. A massa humana continuava densa, compacta. Como era possível aguentar tanto? Bem. Os outros que aguentassem. Ela não.
Talvez perdesse o melhor, pelo que diziam. Mas a questão é que, se continuasse de pé, parada, imóvel, ia acontecer o pior. Até tontura estava sentindo. E estava farta de ver desfile e intervalo de
desfile. Principalmente intervalo. Virou-se e, justamente nesse instante, o garoto de cabeça rapada falou. Pela primeira vez. Espontaneamente. Como uma nota de orgulho na voz tímida.
"Agora vem o Cruz de Malta. A fantasia de todos foi feita aqui pela mulher do 'seu' Simões. E foi a filha que bordou tudo. A filhado 'seu' Simões". E apontava, com o polegar, para um homem pálido que se esticava sobre o cordão, olhando para a
entrada da avenida.
A moça agradeceu a informação. Sair, agora, seria indelicadeza. Suspirou. Experimentou o molejo dos joelhos. Até quando suportariam o peso do corpo?
Apareceu, na curva, o Cruz de Malta. Os clarins atroavam os ares com as notas límpidas, estridentes. Um arrepio correu a multidão. Clarim tem esse dom. Galvaniza. Eletriza.
O Bloco avançou. Uniforme. Organizado. Marcial. As fantasias dos escudeiros e dos arqueiros, perfeitas. Os escudos iluminados, nas evoluções, prendiam os olhos do povo boquiaberto. Ao cruzarem-se, nos rápidos movimentos do frevo, pareciam vagalumes
em noite de loucura. Sorriu da comparação. Mas fora a impressão que recebera. E daí?
Bom. E agora era aproveitar o intervalo e sair. Não aguentava mais nem queria saber de mais coisa alguma. Virou-se para a direita – queria conversa com o garoto, não – e um gemido de desânimo
assustou-a. A vizinha apertava as mãos, numa angústia incompreensível.
"O Cruz de Malta abafou, não? Uma beleza. Vai ser duro pr'o Dengosas". Continuava a apertar as mãos, estalando os dedos. Nervosa. Angustiada.
"Desculpe. Mas por que essa aflição? A senhora torce pelo Dengosas?" E ia tentando sair, sentindo-se incapaz de fazê-lo. As pernas não encontravam brecha. A moça do lado estava sorrindo. "Não vá agora. Veja o Dengosas. Está bonito também. O pessoal
do Marapé luta o ano inteiro para por o Bloco na rua. É bairro pobre mas capricha. Sei porque sou de lá. Meu marido é o presidente. Toda a família vai desfilar. Até gente de cabelo branco. Fique para ver o Marapé. Para ver o Dengosas do Marapé".
E a moça ficou. Não sabe como, mas ficou. Viu Siva. Emocionou-se com o pessoal do Marapé, a fazer a Índia dançar no carnaval de Santos. Prendendo até quase uma hora todo um povo entanguido mas firme no espetáculo.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|