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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 57)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 2 de março de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Cachaça

Lydia Federici

Quem bebe deve ter estômago forte. Pelo menos é o que se pressupõe. Para os que gostam de cachaça, lá vai a história. Verídica, sim.

Todo mundo sabe que, em Santos, se fabrica pinga. Isso tinha forçosamente que acontecer. Por tradição histórica. Não foi Braz Cubas que, do lado de lá do nosso porto, na então Ilha Pequena – hoje a famosa Barnabé dos tanques de inflamáveis – iniciou a cultura da cana-de-açúcar?

Cana dá açúcar. E dá pinga. Logo, não há como escapar.

Mas onde estão, agora, as plantações de cana? Pois pularam o estreito braço de mar. E andam aí pelas encostas dos morros. Principalmente nos platôs do morro da Nova Cintra. De onde desce a doce cana, em forma líquida, licorosa, regalando o paladar dos que entendem de cachaça. É famosa a da Nova Cintra. A da Nova Cintra verdadeira. Mas há outras engenhocas que por lá trituram as hastes sumarentas. E fazem a sua cachacinha, também. Boa e ruim.

E agora, lá vai a história.

Numa sala de aula de um grupo escolar, a professora, com os olhos muito ativos, controlava a turma de colegiais debruçados sobre os cadernos. Poucos sentavam-se direito. Quase todos se esparramavam sobre as carteiras. Menino é assim mesmo. Largado de corpo de vez. Parece que não usa o esqueleto. A professora suspirou. Mas não disse nada. O essencial era que não fizessem algazarra. E a classe estava quieta. Escrevendo. Em silêncio.

Numa das carteiras, uma cabeça está mais arriada que as outras. E continua a descer. Ate encostar o rosto sobre a madeira e ali ficar. Bom. Isso também era demais. A professora levantou-se. Caminhou até a quinta fileira. Ia dar um berro, naquela entonação de voz muito peculiar às mestras que se prezam, quando percebeu a palidez esverdeada do moleque. Reprimiu a voz. Pôs a mão no ombro do garoto. Sacudiu-o. Nada.

Levantou-lhe a cabeça. O rapazinho abriu os olhos, com uma expressão perdida. Abriu a boca para falar alguma coisa, mas o que a professora só pôde perceber foi um cheiro, um cheiro… Que cheiro era aquele? Lembrou-se de repente. E olhou para a criança com ar incrédulo. A classe toda olhava. Com susto. Imóvel. E calada.

Auxiliada pela servente, a professora levou o garoto à sala da diretora. O menino, quase inconsciente, deu um trabalhão. A enfermeira nem sabia o que fazer. Mas melhorou. E contou a história. Aos pedaços. Meio incoerente. Mas no fim sempre se conseguiu armar o quebra-cabeças.

O pai tinha um alambique. Ficara doente. A cachaça tinha que ser engarrafada. E o moleque fizera o trabalho. Métodos rudimentares. O líquido, para começar a escorrer, tinha que ser chupado, pela mangueira, a fôlego. E ele engolira um pouco. E cheirava muito, durante muito tempo.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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