GENTE E COISAS DA CIDADE Serpentina
Lydia Federici
Aconteceu no domingo, no Boqueirão. Depois do desfile de Dona Dorotéia.
Nas varandas dos arranha-céus iluminados, olhos continuavam a olhar para a avenida invadida pelo povo. Mães aflitas chamavam Zé Carlos, Mariazinhas e Tonicos. As crianças, entusiasmadas, catavam montes de
serpentinas, atiravam-nos para o ar, batiam palmas e saracoteavam como os alas do "Dengosas". As pernas finas tricotavam os passos de um frevo cujo ritmo só seus ouvidos infantis continuavam a ouvir.
Na confusão calma da gente que se afastava, cansada, só as crianças continuavam o seu Carnaval. E como ficavam bravas quando os dedos de aço das mães as imobilizavam, arrancando-as, num safanão, de junto do
meio-fio onde juntavam as fitas coloridas.
"Vamos embora. Já é noite. Não vê que o desfile acabou?"
Sim. Mas só agora é que havia espaço para pular. E brincar.
Duas mãozinhas gordas atiram para o alto um punhado de confete. Catado do chão. As palhetas coloridas sobem com lixo e poeira. E caem sobre o cabelos laqueados de uma morena gorda, que procurava juntar o
bando de filhos.
"Para com isso, Neco. Não está vendo que está sujo?"
Neco vê o último confete pousar no chão. Olha para as mãos, enviesa um olhar para a mãe, cruza os braços nas costas. E quando a morena passa a mão no 4º filho, Neco, com um sorriso, limpa as mãos gorduchas
nas calças amarelas. E dá um chute numa bola de serpentina. Vê que ele ia perder a ocasião.
"Moça. Me dá essa coisa?" É uma baianinha de olhos pretos e cabelos encaracolados. Com o dedo aponta o que quer. Uma ventarola que a moça levava junto a outras. Como negar-lhe coisa tão simples. A ventarola
muda de dona. A criança sai pulando. Volta meio minuto depois.
"Me dá outra? É pra minha irmã". Explica e fica com a mão estendida, À espera. Ganha outra ventarola. E sai nos mesmos pulos alegres. Sacudindo o leque de papelão mole. Volta a pedir pela terceira vez. É pra
outro irmão. Mas a moça não dá mais. Sua família também é grande, que diabo. A menina afasta-se de manso. Sem pular.
No palanque, vazio, uma preta de vestido de seda azul vasculha o chão. Descobre duas, três serpentinas ainda enroladas. Agarra-as com sofreguidão. Quando descobre que a observam, sorri, mostrando os dentes
brancos. É um sorriso meio encabulado.
"Gente pobre é assim. Pega o que encontra".
Não. Depois da alegria de dona Dorotéia, essas cenas fazem mal. Devia haver serpentina para todos.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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