GENTE E COISAS DA CIDADE Carnaval de Santos
Lydia Federici
No Rio, é coisa sabida. Arquissabida. Motivo de orgulho.Qualquer morena que luta com um fogão não o faz pelo arroz de cada dia. Isso, nesta
terra,nunca falta. As mulatas dengosas que trabalham em Copacabana exigem ordenados polpudos para os gastos do Carnaval. O dinheiro sai de um nono andar muito chique, atravessa a cidade na bolsa que acompanha os requebros da malemolente e vai
parar, quase todo, na caixa de uma escola de samba, poeticamente plantada no sopé de um dos morros cariocas.
A crioula da Cidade Maravilhosa, durante o ano, veste uma saia que uma de suas inúmeras patroas lhe deu. Conserta, com alfinetes, a blusa desbotada que a patroazinha ia pôr no lixo. Vara o ano assim. Sem se importar muito com a aparência externa.
Sabe o quanto vale o recheio quente e requebrante. Mas,no Carnaval, a morena é rainha. Por dentro e por fora. Todo seu suado ganho de um ano está nos trajes e joias de rainha: nos cetins, nos veludos, nas rendas, nas pulseira amarelas como ouro.
No Rio é assim. E toda a cidade se orgulha de suas cabrochas. Aplaude a graça, aquece-se com o calor das exibições e bate palmas ao luxo das porta-estandartes, à elegância multicolorida das pastoras. Todo mundo sabe o sacrifício que aquilo exigiu.
E aqui, no Carnaval de Santos, como é?
Acredito que, em muitos casos, seja a mesma coisa. Mas o santista descobriu outro jeito de arrumar a sua fantasia. Bem mais simples. Bem menos sacrificado. Descobri-o, por acaso, há dias, num dos açougues da cidade.
Uma freguesa, na fila, esperava, com paciência, que chegasse sua vez de ser atendida. Um dos rapazes do balcão, descobrindo-a, cumprimentou-a alegremente. Ela sorriu e retribuiu o bom dia amistoso. Largando o pedaço de alcatra, o açougueiro enfiou
a mão vermelha no bolso do paletó branco, tirou um bloquinho, um toco de lápis e, por sobre o tabuleiro de miolos, estendeu-os em sua direção, olhando-a com um sorriso. Instintivamente ela agarrou o talão e o lápis. E ficou sem saber o que fazer.
"Veja".
Ela olhou. "Cr$ 50,00. Colaboração para o bloco carnavalesco. Tômbola. Prêmios: 1 máquina de lavar roupa, 1 de costura, 1 liquidificador,lança-perfumes, 1 saco de confete". Leu e tornou a ler. E essa agora? Ela não era de Carnaval. Mas como dizer
"não" ao rapaz que sempre a atenderá bem? Então ele era de um desses blocos que animavam o Carnaval de Santos? Quem diria. Tão pacato. E vai ver que se arrebentava todo no desfile de rua.
Destacou um bilhete. "Nesse ano vou ver a brincadeira. Pois nãopaguei por um pedaço do espetáculo?"
Carnaval, aqui, é assim. Todo mundo acaba entrando, direta ou indiretamente. É auxílio oficial. São os livros de ouro. São as tômbolas. Carioca que aprenda. Aqui ninguém escapa.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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