Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d050.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/09/14 15:12:06
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 50)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 22 de fevereiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Quinze anos

Lydia Federici

Fazia calor e ele suava. Mas o pior não era perceber as costas empapadas contra o encosto de plástico da poltrona. Aquilo, no verão, era coisa que sempre acontecia. Precisava deixar de tomar tanto líquido. Olhou, com desgosto, para a garrafa vazia de cerveja. Para o copo alto, com um dedo de espuma branca no fundo. O que o afligia era a falta de ar. Por mais que aspirasse, os pulmões não ficavam satisfeitos.

Um toque de campainha fê-lo levantar-se, procurando no chão as sandálias que descalçara. Custou a encontrá-las. O reflexo azulado da televisão não o ajudava a achar as "japonesas" brancas sobre o tapete claro.

Abriu a porta. O barulho ritmado de frigideiras, reco-recos e o som cavo de um tambor chegaram-lhe aos ouvidos antes que descobrisse o bloco saracoteante de moleques diante do portão. Sempre a mesma história. Queriam divertir-se com o dinheiro dos outros. Mas com o seu é que não. Fechou a carranca, sacudiu o braço numa negativa vigorosa e, furioso, bateu a porta pesada.

Voltou à sala, danado porque o haviam feito levantar-se à toa. E porque perdera um pedaço do filme de detetive. Talvez justamente aquele em que haveria um detalhe revelador. Diachos! Coçou o pescoço e, mal humorado, desligou o aparelho. Ouvia tudo, ou não via nada. Moleques vagabundos. E sem vergonhas. Nem divertir-se às próprias custas sabiam. Tinham que estender as mãos.

De fora, no silêncio súbito da casa, chegava, abafada, a batucada dos moleques. Pegou a garrafa vazia, levou-a para a cozinha. Duque, com um ganido, mostrou-lhe que também sentia calor. E que não gostava de Carnaval. Abriu a porta dos fundos. Ele que não se entusiasmasse e que não principiasse a noite de latidos, roncos e ganidos. Bastava o calor para infernizar suficientemente a noite de qualquer cristão.

"Quieto aí. Nada de barulho". Falou grosso, autoritário, ameaçador. Para reforçar a zanga, bateu o pé no chão. Duque deu meia volta e entrou em sua casinhola de madeira. Conhecia o mau humor do dono. De sobejo.

A vitrola do vizinho tocava um rock. A casa toda iluminada era uma festa. Aniversário de alguém, com certeza. Ainda mais essa. Quem é que vai dormir? Calor, mosquito – deu um tapa no braço -, batucada, cachorro e ainda barulho na casa do vizinho? Não. Muita coisa para uma só noite.

Um coro de vozes juvenis entoou, vacilante, o primeiro verso do "Parabéns a você". Depois firmou-se, compacto. As vozes femininas, estridentes, cantavam num tom. As dos rapazinhos, noutro, subindo e descendo, desafinadas, sem controle. Eram graves. Com guinchos inesperados. Eram vozes de meninos que saíam da meninice. Eram vozes de homens que começavam a ser.

"Quinze anos". E, pela primeira vez no dia atribulado, os lábios duros sorriram com certa emoção. E muita saudade. Quanta.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série