Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d049.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/09/14 15:12:06
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 49)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de fevereiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Janela de apartamento

Lydia Federici

Janela é janela. Sempre foi uma abertura na parede, destinada a iluminar e a arejar um cômodo. Mas janela de apartamento é coisa diferente. É claro que sua função essencial ainda é a de ventilar e encher de luz um quadrado emparedado. Mas outros usos foram descobertos. Tantos e tão importantes a ponto de encanecer a cabeça de um bom arquiteto. Ai dele se não descobrir a medida exata em que deve ser colocado o caixilho de alumínio.

Janela, hoje, é beleza de fachada. É observatório e, logicamente, exige uma colocação estratégica. Para alguns moradores é palco. Mas para a maioria não pode passar de simples camarote. Deve permitir que se veja. Mas sem ser visto. Não é difícil isso?

Janela de apartamento, principalmente aquelas que estão voltadas para o sol radioso da manhã ou para o sol esturricador da tarde, acaba, por necessidade, em transformar-se em varal de roupa. Mais: até serve de coradouro. É também ótimo secador para alumínio "bom-brilhado"
[N. E.: polido com palha-de-aço, mais conhecida pela principal marca do produto na época, Bom-Bril]. E quem pode proibir uma dona de apartamento, quer seja ele de uma só peça ou ocupando todo um andar, de servir-se das janelas para todos esses fins?

Outra finalidade utilíssima das janelas, tentadora de crianças e de adultos: é uma boca sempre escancarada para receber qualquer lixo que se tenha preguiça de levar até a cozinha ou até a área de serviço. Tão mais prático e direto mandar a ponta do cigarro, o caroço da manga, o pente quebrado, o vidro vazio pelo retângulo sempre aberto do quarto ou da sala. Para que caminhar à toa? O vizinho da casa de baixo, se achar ruim, que se mude, ora.

Tudo isso é tão comum, coisa tão usual e corriqueira, que nem se perde tempo observando as novas utilidades de uma janela. Só quem vem de uma vila de casas térreas é muito chão é que se poderia, hoje, espantar com essas novidades de apartamento. Nós não. Infelizmente.

Mas, no outro dia, quem olhou para uma janela do oitavo andar de um apartamento de Epitácio Pessoa não pode ter deixado de arregalar os olhos. Não sei se a dona, nesse dia, andava mais atarefada que de costume. Sabe como é. Empregada que não vem, bebê que quer a mamadeira, o maiorzinho querendo ir à praia, o marido precisando do almoço na hora certa, fraldas no tanque, panela de pressão assobiando, campainha a tocar, cheiro de cebola queimando, telefone, frenético, a insistir.

E ela, a pobre, a aguentar tudo. A resolver tudo sozinha. Se ao menos o primogênito parasse de estrilar e de choramingar, pedindo praia, querendo sol, dizendo que queria ver gente. Mas qual. Como ela pôde ter resolvido os outros problemas, ignoro. Um, eu sei como foi.

"Quer sol? Quer ver gente?" O garoto foi sentado no peitoril da janela toda gradeada. Suas pernas gorduchas foram passadas pela grade. Os bracinhos também. E, de lá, feliz, ele viu gente. E ali ele apanhol sol. Sozinho. Sorrindo.

Uff! Foi de assustar.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série