GENTE E COISAS DA CIDADE Volta à escola
Lydia Federici
Aproveitara bem as férias? Sabia lá. Bem ou mal tinham quase acabado. De uma coisa ela tinha certeza: a de ter lutado, noite e dia, com
todas as forças, para não pensar nas quatro paredes com os quadros negros e os cartazes coloridos.
Sua preocupação maior, durante o período de férias, fora essa! Esquecer o tempo de aulas. No dia 15 de dezembro cavou um buraco escondido no canto do armário, juntou toda a tralha dentro da sacola
cheia de repartições, enfiou-a bem lá no fundo, camuflou-a com uma pilha de caixas de sapatos e "Até daqui a dois meses. Embolore, biche, leve a breca mas me dê sossego".
E viveu as férias da melhor forma que lhe foi possível. Foi a cinemas, descansou na praia, foi a aniversários, conversou muito, sobre todos os assuntos, com exceção dos escolares. Isso era tabu. Até às palavras cruzadas deu férias. Só pra não pegar
num lápis e numa borracha. É preciso dizer mais?
Há coisa de uma semana, entretanto, sua mãe começou a remexer-se de forma inusitada. Numa noite, sentadas na sala, a senhora passou a mão pelos cabelos louros da filha. Tão macios.
"Está chegando o dia, hein, menina?" A filha teve um sobressalto. "Eu sei que você não gosta de ser lembrada. Mas está tudo em ordem? Já viu tudo? Não está faltando nada?"
"Ih, mamãe. Deixe isso pra lá. Não me estrague o fim das férias". Respondeu com certa impaciência. Afastou a cabeça, cujos cabelos a mão macia e carinhosa continua a acariciar.
Mas, no dia seguinte, estalou um beijo arrependido no rosto preocupado de sua mãe. "Já vi tudo. Não há novidade alguma. Tudo está em ordem". E saiu para encontrar-se com uma amiga.
Mentira. Não vira nada. Nem queria ver. Só no último momento é que tomaria conhecimento de que a luta – ó luta infame – iria recomeçar.
Ontem à noite, pouco antes do jantar, abriu o armário, sentou-se no chão, meio espremida contra a cama, retirou as caixas dos sapatos, pegou na pasta de couro da escola. Abriu-a com uma certa esperança. Logo desfeita, porém. Tudo estava infamemente
em ordem. Nem essa desculpa para resmungar teria. "Mas será possível? Nesta terra em que tudo embolora e bicha, nãohouve bolor nem cupim que liquidasse esta maldição?"
E, hoje cedo, talvez antes das 7, sem outro remédio, ela teve que voltar para as quatro paredes de quadros negros e gravuras coloridas. Pensando na classe, deve ter tomado chá de camomila. Sim. Só com um bom calmante ela, a professora, teria
coragem de recomeçar a luta frente a 45 moleques endiabrados. Que vida!
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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