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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 29)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 28 de janeiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

A bicicleta

Lydia Federici

Mingo é um dos mais perfeitos exemplares da criança de hoje. É a criatura mais elétrica de corpo e de espírito que anda pela redondeza. Em contraste com a quietude acanhada e medrosa da mãe e com o peso pachorrento do pai. Acho que Mingo nasceu para provar que as leis da hereditariedade existem só nos livros.

É um pequeno artista de circo. Vive empinando em árvores esguias, tem predileção especial pelo topo dos muros, equilibra-se nos telhados da garagem e do galinheiro. Até em varal de roupa tentou andar. É preciso dizer mais alguma coisa?

Para seu quinto aniversário pediu uma bicicleta. "Mas de homem. Não quero com aquelas rodinhas do lado, ouviu, paiê?"

E ganhou a bicicleta. Não grande, de homem. Mas sem as rodinhas laterais.

Nesse dia, os amigos tiveram que ficar do lado de fora do muro. Mingo precisava de ter o jardim inteiramente desimpedido. Vocês compreendem, não? Empurrou o pai para trás quando ele quis ajudá-lo a montar na bicicleta. "Sai, papai… Não me atrapalhe".

E lá foi ele, ziguezagueando pelo cimentado. Tombando pra cá e pra lá, equilibrando-se com os pés no chão, ora à direita, ora à esquerda; mas sem largar a bicicleta inclinada e teimosa. Deu, aos tropeções, a primeira volta pela casa. Duas. Três. Na quarta já não fazia tantas letras pelo chão.

Os pais, ainda assustados, acabaram por conformar-se. Mingo era assim. Entraram na casa. Ouvindo, a cada volta da bicicleta, o vitorioso e alegre tilintar da campainha.

"Mamanhê. Vem ver. Só com um pé". Dona Rita chegou à janela. Mingo sumia na curva, um pé no pedal, o outro levantado no guidão.

"Mamanhê. Olha. Sem os dois pés". "Manhê. Veja que bamba. Só com uma mão". Com a outra deu adeus à mãe assustada. A campainha, a cada passagem, anunciava mais uma volta vitoriosa da criança feliz.

"Agora é a maior. Sem 'mões'. Olha, manhê". E lá sumiu ele, na curva da parede. Dona Rita esperou a próxima passagem. Era coisa de segundos. Os segundos passaram. Outros mais. Dona Rita, aflita, mas com jeito, espichou o corpo para fora da janela. Mingo, segurando a bicicleta, apareceu desmontado na curva da casa. Olhou, carinha fechada, para a janela.

"Manhê. Sem dentes". Os 'esses' saíram assobiados pela boquinha sorridente mas desdentada.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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