GENTE E COISAS DA CIDADE A bicicleta
Lydia Federici
Mingo é um dos mais perfeitos exemplares da criança de hoje. É a criatura mais elétrica de corpo e de espírito que anda pela
redondeza. Em contraste com a quietude acanhada e medrosa da mãe e com o peso pachorrento do pai. Acho que Mingo nasceu para provar que as leis da hereditariedade existem só nos livros.
É um pequeno artista de circo. Vive empinando em árvores esguias, tem predileção especial pelo topo dos muros, equilibra-se nos telhados da garagem e do galinheiro. Até em varal de roupa tentou andar. É preciso dizer mais alguma coisa?
Para seu quinto aniversário pediu uma bicicleta. "Mas de homem. Não quero com aquelas rodinhas do lado, ouviu, paiê?"
E ganhou a bicicleta. Não grande, de homem. Mas sem as rodinhas laterais.
Nesse dia, os amigos tiveram que ficar do lado de fora do muro. Mingo precisava de ter o jardim inteiramente desimpedido. Vocês compreendem, não? Empurrou o pai para trás quando ele quis ajudá-lo a montar na bicicleta. "Sai, papai… Não me
atrapalhe".
E lá foi ele, ziguezagueando pelo cimentado. Tombando pra cá e pra lá, equilibrando-se com os pés no chão, ora à direita, ora à esquerda; mas sem largar a bicicleta inclinada e teimosa. Deu, aos tropeções, a primeira volta pela casa. Duas. Três. Na
quarta já não fazia tantas letras pelo chão.
Os pais, ainda assustados, acabaram por conformar-se. Mingo era assim. Entraram na casa. Ouvindo, a cada volta da bicicleta, o vitorioso e alegre tilintar da campainha.
"Mamanhê. Vem ver. Só com um pé". Dona Rita chegou à janela. Mingo sumia na curva, um pé no pedal, o outro levantado no guidão.
"Mamanhê. Olha. Sem os dois pés". "Manhê. Veja que bamba. Só com uma mão". Com a outra deu adeus à mãe assustada. A campainha, a cada passagem, anunciava mais uma volta vitoriosa da criança feliz.
"Agora é a maior. Sem 'mões'. Olha, manhê". E lá sumiu ele, na curva da parede. Dona Rita esperou a próxima passagem. Era coisa de segundos. Os segundos passaram. Outros mais. Dona Rita, aflita, mas com jeito, espichou o corpo para fora da janela.
Mingo, segurando a bicicleta, apareceu desmontado na curva da casa. Olhou, carinha fechada, para a janela.
"Manhê. Sem dentes". Os 'esses' saíram assobiados pela boquinha sorridente mas desdentada.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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