GENTE E COISAS DA CIDADE Imaginação de criança
Lydia Federici
Sílvio Augusto veio de São Paulo com promessa de sol, de praia e de mar. Por isso as duas coisas importantes que ele, em
primeiro lugar, arrumou na sua pequena mala: o 'short' bem curto e o boné.
Mas alguém ou algo enganou o menino logo de manhã cedo. A chuva. "Acho que não vamos ter praia, hoje". Falaram-lhe com pena, beijando-o muito, à guisa de consolo. A carinha redonda, em que dois olhos arregalados pediam mar e areia fofa, fica
triste. A mão gorducha coça o nariz.
"Mas chove muito? Ou é só pouquinho?"
"Chove de alagar". Os olhos pretos amortecem-se ainda mais. "Mas, de tarde, se não parar, iremos à matinée. Sempre vai dar pra distrair um pouco, você não acha?"
Matinée. Matinée ele tem em São Paulo. Mar é que não. Mas não diz nata. Apesar dos seus 8 anos, compreende que não é a madrinha quem manda sol ou chuva. Ela não tem culpa. Deus é que faz o que quer.
Pela janela do apartamento olha o chão molhado. Acompanha, com o dedo, sorrindo, as gotas de água que escorrem, em zigue-zague, pela vidraça. De vez em quando levanta os olhos para o céu branco. Ia chover muito mesmo. Nem adiantava ter posto o 'short'.
Mas quem sabe se iria melhorar mais tarde? Enquanto isso, o melhor era passar o tempo. Pega a lousa mágica que também viera na mala, senta-se no sofá, de onde pode ver quando a chuva vai parar, pensa um pouco e começa a desenhar. Faz o casco de um
navio. As cabines. Com portas e vigias. Ergue um mastro. De onde, de repente, enfuna duas velas airosas. No topo do mastro, ondulante, uma bandeira. Uma bandeira leve que flutua. Uma bandeira que deve estar seca, apanhando muito sol e muito vento
fresco para panejar com aquela graça.
Sílvio Augusto sorri para o seu veleiro.
Um veleiro que navega em mar calmo. Um veleiro cheio de sol. De onde os imaginários marinheiros devem estar vendo a praia branca, cheia de gente, contente, a brincar na areia fofa. De boné na cabeça.
E assim Sílvio Augusto, apesar da chuva, vai à praia, vê um navio brilhante a entrar na barra, brinca na areia. Tem tanta imaginação que, à noite, é capaz de pedir à madrinha que lhe passe óleo nos ombros que ardem, queimados pelo sol que ele
criou.
Sílvio Augusto, empreste-me sua imaginação, sim?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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