GENTE E COISAS DA CIDADE Para magras ou gordas
Lydia Federici
Andando à toa, pelos jardins da praia, com ar absorto, parando aqui e ali, à sombra dos chapéus de sol, com os olhos no mar,
mas os ouvidos bem treinados para as conversas dos bancos próximos, sempre se chega a descobrir, entre noventa e nove frases banais e melosas,uma conversa que faz uma crônica.
"Apalpe aqui. Veja se descobre um centímetro de gordura". Era uma voz educada, de moça de Stella Maris, doce e suave que era uma carícia.
"Estou vendo. Você está ótima, assim. Como é que emagreceu?" Outra voz de antiga aluna de colégio de freiras. Que mel.
"Usando a imaginação. O regime mais fácil deste mundo". Pausa. "Você leu aquele livro da Carolina Maria de Jesus, não leu? Diário de uma favelada?"
"Comecei e larguei. Não tive paciência de aguentar sempre a mesma coisa. Mas, que tem que ver o livro com seu emagrecimento? Não me diga que imitou aquela pobre preta. Ou sim? Passou fome? Não. Regime de fome não me interessa". Havia um nada de
indignação na voz gostosa.
"Eu sei. Mas você não queria saber? Estou contando, querida. Li o livro. E nunca senti tanta fome na minha vida. Nunca, também, comi tanto. Eu, que só comia às horas das refeições, levantava-me a cada três ou quatro páginas lidas e ia vasculhar a
geladeira, os armários da cozinha, as latas dos doces e dos biscoitos das crianças. Era uma fome que nada conseguia aplacar, por mais que eu comesse. Uma monstruosidade. Levei 10 dias para ler o livro. Em 10 dias comi por um mês. Engordei que foi
uma desgraça. Lembra-se de como fiquei?" Havia riso na voz.
"Lembro, meu bem. Mas não vejo relação. Não perguntei regime de engorda. Desse eu não preciso. Conheço, infelizmente, a receita. O que eu quero saber é como, agora, você conseguiu emagrecer. Foi muito difícil? Banho turco? Sauna? Massagens? Dieta
de frutas?" Que ansiedade na voz.
"Nem pense nisso, querida. Contei aquilo para você ver como sou impressionável. Para provar o que pode a simples imaginação. Engordei e fiquei gorda. O regime de emagrecimento começou depois que li uma crônica de Helena Silveira. Diário de uma
não-favelada. É exatamente o oposto do outro. São os dias de uma madame preocupada com modas, comitês; indo a almoços e jantares sem conta. Depois de tanta descrição de canapezinhos, lagostas, 'coupes', sorvetes, cremes, nata, manteiga, chantili,
'marrons', champanha, não há estômago que resista sequer a um simples chá. Estou sem comer há quase uma semana. E não sinto fome nenhuma. Vivo satisfeita. Você quer ler a crônica? Tenho-a em casa".
A amiga não respondeu. Continuei a andar.
Mas será que qualquer estômago tem essa imaginação? Em todo caso, passo a receita para vocês.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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