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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 22)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 20 de janeiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Um automóvel vermelho

Lydia Federici

O marido andava, nos últimos dias, meio misterioso. Saindo e chegando fora de hora. Ione, calada, observava-o em silêncio. À noite, depois da cozinha arrumada, sentava-se na sala e ficava olhando-o de soslaio. Não tinha coragem de falar. Nunca tivera. Sempre esperava que ele apresentasse o problema. Mas o problema, dessa vez, não queria vir à tona.

A história acabou estourando alguns dias depois. Exatamente numa tarde de sábado. Álvaro saíra pouco depois do almoço, sem jeito, balbuciando uma desculpa tão boba e tão gaguejada que ela, sem querer compreender, só ficou sentindo uma dor fina no peito. Não sabia que era assim tão doído. Doído demais. Passou pelo filho que ajudava a limpar a bicicleta do vizinho e foi para o quarto. Deitou-se. Não querendo pensar.

Um buzinar insistente, vindo de longe, parando diante da casa, acabou por chamar-lhe a atenção. Mas foi o grito de espantada alegria do filho que a fez pular da cama. Escancarando a janela, viu a coisa mais bonita deste mundo: o sorriso amplo e comovido de Álvaro aparecendo na janela do carro vermelho. Despencou pela escada, gotas de alegria correndo pelo mesmo sulco deixado pelas lágrimas amargas de minutos antes.

"Era isso?", perguntou. O marido, de pé, mão no trinco cromado, assentiu. Olhava para ela, para o filho, para o carro. Depois de oito anos, tinham finalmente o automóvel mais querido do mundo.

Álvaro não era muito falador. Nem sabia, às vezes, como exprimir suas ideias. Naquela hora tampouco falou coisa que prestasse. Só perguntou, com a voz precisando de uma boa tossida: "É bonito? Gostam?"

Claro que é bonito, Álvaro. Mesmo que fosse feio, seria bonito. É o automóvel com que vocês sonharam durante anos, não? Cada uma de suas partes conta uma história de trabalho e de poupança. Eu sei. As rodas são os sapatos que vocês solaram e ressolaram durante 8 anos, depois de comprada e arrumada a casa, não? A buzina alegre canta, agora, os sacrifícios sem resmungos da não ida aos cinemas, às festas dispendiosas, não? O estofamento branco, forrado de plástico, representa a roupa e os ternos lavados e passados em casa, vestidos não comprados, chocolates não comidos, não é? O escapamento de onde sai fumaça lembra os milhares de cigarros que vocês deixaram de fumar, não lembra?

Vá, Álvaro. Vá passear, com sua pequena família, no automóvel vermelho. Isso. Guie devagar. Bom passeio. Mas cuidado com os loucos que não sabem o que pode valer, para vocês três, o seu pequenino automóvel vermelho.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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