GENTE E COISAS DA CIDADE Na ponta do canal
Lydia Federici
A moça deixou o jornal tombar molemente sobre as pernas. Alisou-lhe as dobras levantadas, num gesto distraído que foi
repetindo desnecessariamente.
Será que vão mesmo? Pensou. Lembrou-se de dona Dora, muito alemã, a enumerar, com clareza fria – e poética – as desvantagens dos canais que, além de interromper e enfear o círculo perfeito da praia de Santos, traziam uma série enorme de prejuízos,
perigos e doenças.
Sorriu. Vivera, quando criança, dentro do canal ou perto dele. Nunca tivera nada de ruim. Sorte, talvez. Do canal só tinha lembranças boas. O primeiro peixinho que, depois de manhãs de perseguição, conseguira pegar com sua touca de borracha. E que,
sentada no limo, sem perceber o esfolado do joelho, via rodar, como louco, no fundo amarelo da touca, no meio da água suja. Podia ainda sentir a alegria vitoriosa que lhe enchera o coração. E a pescaria diária e proibida dos siris, com o pedaço de
carne roubada, a medo, da cozinha: Os tombos nas pedras escorregadias?
Tantas lembranças boas. Que a faziam sorrir. De ruim, mesmo, no canal só tivera uma tarde. Tarde triste, de praia deserta, com mar de ressaca, grosso, revolto e cinzento. A combinar com sua tristeza de moça, com sua revolta de moça sozinha.
Acreditando-se a maior sofredora do mundo por causa de um bocó qualquer. De pé na ponta do canal, as ondas empurravam-lhe os pés descalços e frios. O vai e vem tonteava-a. Sentiu medo. Não da vida. Da morte. Foi seu único dia triste de praia. O
mais perigoso de sua vida. Mas passara. E, para provar que passara, voltou à ponta do canal, rindo com coragem, levantando os ombros às bobagens, inventando a brincadeira da viagem. Sentada na ponta do canal, era o mesmo que estar na quilha de um
navio, com o vento a empurrar os cabelos para trás e as deias tristes para longe.
Sorrindo, deu um tapa no jornal.
Será que vão mesmo cobrir os canais? Fazer belvederes turísticos?
Dona Dora vai ficar contente. Mas como é que a criançada de hoje vai pegar siris? Pescar peixinhos ariscos com latas furadas? Ou peneiras? Como é que, no meio de gente que fala, de gente que pesca com caniço de carretilha sobre os belvederes, a
alma só vai arrumar uma ponta livre de cimento, quilha de navio, para poder sentir o barulho do mar, a carícia do vento? E esquecer?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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