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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 18)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 16 de janeiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Na ponta do canal

Lydia Federici

A moça deixou o jornal tombar molemente sobre as pernas. Alisou-lhe as dobras levantadas, num gesto distraído que foi repetindo desnecessariamente.

Será que vão mesmo? Pensou. Lembrou-se de dona Dora, muito alemã, a enumerar, com clareza fria – e poética – as desvantagens dos canais que, além de interromper e enfear o círculo perfeito da praia de Santos, traziam uma série enorme de prejuízos, perigos e doenças.

Sorriu. Vivera, quando criança, dentro do canal ou perto dele. Nunca tivera nada de ruim. Sorte, talvez. Do canal só tinha lembranças boas. O primeiro peixinho que, depois de manhãs de perseguição, conseguira pegar com sua touca de borracha. E que, sentada no limo, sem perceber o esfolado do joelho, via rodar, como louco, no fundo amarelo da touca, no meio da água suja. Podia ainda sentir a alegria vitoriosa que lhe enchera o coração. E a pescaria diária e proibida dos siris, com o pedaço de carne roubada, a medo, da cozinha: Os tombos nas pedras escorregadias?

Tantas lembranças boas. Que a faziam sorrir. De ruim, mesmo, no canal só tivera uma tarde. Tarde triste, de praia deserta, com mar de ressaca, grosso, revolto e cinzento. A combinar com sua tristeza de moça, com sua revolta de moça sozinha. Acreditando-se a maior sofredora do mundo por causa de um bocó qualquer. De pé na ponta do canal, as ondas empurravam-lhe os pés descalços e frios. O vai e vem tonteava-a. Sentiu medo. Não da vida. Da morte. Foi seu único dia triste de praia. O mais perigoso de sua vida. Mas passara. E, para provar que passara, voltou à ponta do canal, rindo com coragem, levantando os ombros às bobagens, inventando a brincadeira da viagem. Sentada na ponta do canal, era o mesmo que estar na quilha de um navio, com o vento a empurrar os cabelos para trás e as deias tristes para longe.

Sorrindo, deu um tapa no jornal.

Será que vão mesmo cobrir os canais? Fazer belvederes turísticos?

Dona Dora vai ficar contente. Mas como é que a criançada de hoje vai pegar siris? Pescar peixinhos ariscos com latas furadas? Ou peneiras? Como é que, no meio de gente que fala, de gente que pesca com caniço de carretilha sobre os belvederes, a alma só vai arrumar uma ponta livre de cimento, quilha de navio, para poder sentir o barulho do mar, a carícia do vento? E esquecer?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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