GENTE E COISAS DA CIDADE Um menino no canal
Lydia Federici
Quem sabe como ele teria ido parar no canal?
O pai, moço ainda, com um grupo de crianças, ia para a praia. Eram tantos os filhos que não deu pela falta de um. Que ficara pra trás. Que caíra no canal, ou que nele entrara. Quem sabe? Quem vai notar um menino a mais dentro do canal? Eles vivem
ali, à procura de peixinhos.
Só quando o garoto, em pânico, berrou "Paiê", entre o choro entrecortado, foi que se percebeu que havia algo de incomum, naquele menino dentro do "quatro".
O homem olhou para o filho que berrava, boca escancarada, 'short' molhado. "Sobe". Voz fria, indiferente, cansada. Voz de pai de sete filhos que não se assusta à toa.
O garoto tentou subir pela rampa lisa. Escorregou. Tornou a tentar, chorando, apoiando as mãos sobre o cimento liso. Voltou a escorregar, desequilibrado, arrastando os fundilhos no limo verde. Ficou sentado na água suja. Seu choro era impotência.
Medo. Desespero.
A criança olhava para o irmão e para o pai, atarantada, sem saber o que fazer. O homem, calmo, olhou com desgosto para o filho chorão. "Vá até a ponte. Pela escada você sobe". O garoto, sem parar de chorar, pôs-se a andar em direção à ponte
distante. Bem junto da parede arredondada, escorregando, caindo, levantando-se.
Dois rapazes param, olham para o moleque, para o cimento limoso, para a ponte. "Anda pelo meio do canal, nenê". Mas no meio a água tinha mais altura. O garoto, medroso, conserva-se junto à parede, embora caindo, escorregando, mergulhando. Mas
ninguém acha graça.
Uma mulher que vinha da praia, com um bando de guris e gurias, aproveita a ocasião. Dá um tapa na cabeça do mais taludo. "Está vendo o que acontece? Nessa água podre. Passo a correia se pegar algum dentro do canal".
Na ponte, o pai junta os seis filhos e desce, sozinho, pela escada. Firma os pés, dobra o corpo, estende o braço, segura-o pela mão e, com um impulso, arranca-o da água suja. O garoto sobre os degraus da escada ainda a choramingar. Une-se aos
irmãos e, de mãos dadas, guiados pelo pai cansado, atravessam a avenida.
Um chofer de caminhão respira aliviado. "Se o canal estivesse cheio".
Um senhor magrinho não se conforma. "Isso é jeito de pai? Nem piou o molenga. Era moer o filho de pancada. Pra ele aprender. Amanhã está dentro do canal de novo, o moleque sem-vergonha. Assustando a gente. Dando trabalho".
Mas quem ensina criança a não entrar no canal? A culpa é dos peixinhos.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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