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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 15)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 12 de janeiro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Um menino no canal

Lydia Federici

Quem sabe como ele teria ido parar no canal?

O pai, moço ainda, com um grupo de crianças, ia para a praia. Eram tantos os filhos que não deu pela falta de um. Que ficara pra trás. Que caíra no canal, ou que nele entrara. Quem sabe? Quem vai notar um menino a mais dentro do canal? Eles vivem ali, à procura de peixinhos.

Só quando o garoto, em pânico, berrou "Paiê", entre o choro entrecortado, foi que se percebeu que havia algo de incomum, naquele menino dentro do "quatro".

O homem olhou para o filho que berrava, boca escancarada, 'short' molhado. "Sobe". Voz fria, indiferente, cansada. Voz de pai de sete filhos que não se assusta à toa.

O garoto tentou subir pela rampa lisa. Escorregou. Tornou a tentar, chorando, apoiando as mãos sobre o cimento liso. Voltou a escorregar, desequilibrado, arrastando os fundilhos no limo verde. Ficou sentado na água suja. Seu choro era impotência. Medo. Desespero.

A criança olhava para o irmão e para o pai, atarantada, sem saber o que fazer. O homem, calmo, olhou com desgosto para o filho chorão. "Vá até a ponte. Pela escada você sobe". O garoto, sem parar de chorar, pôs-se a andar em direção à ponte distante. Bem junto da parede arredondada, escorregando, caindo, levantando-se.

Dois rapazes param, olham para o moleque, para o cimento limoso, para a ponte. "Anda pelo meio do canal, nenê". Mas no meio a água tinha mais altura. O garoto, medroso, conserva-se junto à parede, embora caindo, escorregando, mergulhando. Mas ninguém acha graça.

Uma mulher que vinha da praia, com um bando de guris e gurias, aproveita a ocasião. Dá um tapa na cabeça do mais taludo. "Está vendo o que acontece? Nessa água podre. Passo a correia se pegar algum dentro do canal".

Na ponte, o pai junta os seis filhos e desce, sozinho, pela escada. Firma os pés, dobra o corpo, estende o braço, segura-o pela mão e, com um impulso, arranca-o da água suja. O garoto sobre os degraus da escada ainda a choramingar. Une-se aos irmãos e, de mãos dadas, guiados pelo pai cansado, atravessam a avenida.

Um chofer de caminhão respira aliviado. "Se o canal estivesse cheio".

Um senhor magrinho não se conforma. "Isso é jeito de pai? Nem piou o molenga. Era moer o filho de pancada. Pra ele aprender. Amanhã está dentro do canal de novo, o moleque sem-vergonha. Assustando a gente. Dando trabalho".

Mas quem ensina criança a não entrar no canal? A culpa é dos peixinhos.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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