GENTE E COISAS DA CIDADE Yemanjá
Lydia Federici
O amigo falou, remexendo a bebida no copo alto:
"Você nunca foi ver, na última noite do ano, a festa de Yemanjá? Não? Mas que santista é você?"
A moça, brincando com as medalhinhas do pescoço, sorriu encabulada.
"É uma das coisas mais interessantes que acontecem por aqui. Você nunca teve a curiosidade de ir espiar? Uma pena. Quer ir hoje? Eu venho buscá-la".
"Não. Eu vou sozinha, se conseguir escapar. Mas como é? Onde é?"
"Na praia. Em toda a orla do mar. Do pontão das barcas do Guarujá até a Biquinha de São Vicente. Como é? Mais difícil de explicar. Só mesmo vendo. É à meia noite. Os crentes se reúnem na praia. De longe, vê-se o tremeluzir amarelo das velas que mal
e mal delineiam os fantasmas de branco. O mar lhes reflete os vultos e a luz. Fica um brilhante facetado. Sobre o qual caem as flores brancas para Yemanjá, a senhora do mar. Há outras oferendas, sim. Muitos estouram garrafas de champanha. Que
espuma e vai toda para o altar de Yemanjá. Não fica uma gota na garrafa segura de pé. Isso é sinal de que Yemanjá se agradou da oferenda e vai atender a graça solicitada. É impressionante. A fé, o cântico monótono, o círculo de velas, as figuras de
branco, o mar coalhado de flores. Todas brancas. Vamos? É festa que merece ser vista".
A moça ouviu, imaginou. Ficou com vontade de ir.
Durante a noite, nas últimas horas do ano, Yemanjá lhe ocupou a mente. Escaparia até a praia, sim. Para ver o que nunca havia visto.
Meia noite foi chegando. A hora de Yemanjá também. E ela, no meio da família, rodeada, solicitada, sem jeito de escapar. "Yemanjá. Eu vou, sim. Espere um pouco, que eu vou".
Meia noite chegou. Velas na praia. Mulheres de branco a cantar. Pétalas brancas nas ondas mansas do mar. "Feliz Ano Novo". Abraços. "Muita saúde e alegria". Beijos. Telefonemas de amigos. Yemanjá recolhendo as oferendas. Yemanjá sorrindo aos
cânticos. Meia noite passando. Ficando longe para trás. A moça, nervosa, inquieta, perdida, sem poder escapar.
Manhã bem cedo, foi à praia. Procurou tocos de vela na areia. Pétalas brancas no mar. Nada. Mar e praia eram praia e mar de sempre.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|