GENTE E COISAS DA CIDADE O Homem da Bicicleta
Lydia Federici
As sirenas dos navios começavam a apitar. O céu, um borrão riscado de traços vermelhos, amarelos. Os estouros dos rojões
faziam o ar tremer.
"Ainda falta um minuto. Toca. Enfia o pé".
O carro entrou na avenida do canal fazendo a curva à toda.
Um ciclista, de camisa branca esvoaçante, ocupava toda a rua ziguezagueando como louco na frente do automóvel. De repente, foi em direção ao canal.
"Breca. Para". Gritos angustiosos que se perderam num segundo, pela noite iluminada e tonitruante. Mas a bicicleta entrara por uma ponte estreita. Uma gargalhada sobrepujou o estouro das bombas, os apitos, as buzinas, os tiros, a gritaria, o nosso
susto momentâneo. Uma gargalhada de boca escancarada, subida do coração num desafio à vida. À morte. A gargalhada de um homem livre e feliz.
"Esse diabo está bêbado". "É louco".
Não. Não estava bêbado. Não era louco.
Era um homem. Apenas um homem feliz, doidamente contente.
Um homem forte. E saudável e vigoroso. Um fraco nunca pedalaria naquele frenesi. Era um homem que não tinha automóvel mas que, satisfeito, usava uma bicicleta. Que o servia plenamente. Talvez não tivesse casa própria. Mas para um teto qualquer ele
estava indo. Se voava é que um beijo de mãe, de esposa, de um filho o estava esperando. Ou então o abraço de um amigo.
Corria porque estava no último minuto de mais um ano. Um ano que ele, bem ou mal, havia, vitoriosamente, vivido. Por isso a sua alegria. Aquela euforia de vencedor que, nem no último minuto, temia o perigo que o podia atropelar. Tinha confiança. Fé
em si próprio.
Era um homem que olhava para a frente. Só para a frente. Que ziguezagueava porque isso lhe dava prazer. Era um homem que, numa gargalhada, terminava um ano e começava outro. Seguro de sua força, de seu vigor.
Era um homem simples que, no minuto em que todos, medrosos, se encolhem, temerosos do destino; ou oram, pelo medo inexplicável que sentem; ou sorriem mentirosos, por uma esperança que sabem perdida, sabia gargalhar. E gargalhava como um deus!
É como esse homem da bicicleta que eu gostaria de terminar este 1961.
É com sua gargalhada de homem livre, despreocupado, destemeroso, forte, feliz, que eu gostaria de principiar este 62.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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