Ilustração: Seri, publicada com o texto
Roldão Mendes Rosa:
na raiz do sonho a poesia
"Embora comungue no altar social e compartilhe de boa fé das crenças de sua época, o poeta é um ser à
parte"
Octávio Paz
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Narciso de Andrade
Foram quarenta anos de intercâmbio de idéias, dúvidas,
expectativas, desencantos, sobretudo, desencantos. Nos trocávamos, e esta troca constitui, quero crer, o cerne da verdadeira amizade: sem evasivas,
sem mistificações, embora nem sempre em tom de assentimento e concordância. Aquele diálogo forte e sincero mantido em ritmo constante de absoluta
fidelidade.
E por ser assim sempre me julguei conhecedor da verdade total daquele poeta de quem,
tantas vezes, fui o primeiro a saber pela sua própria voz, equilibrada e sensível, a mensagem de poesia que criara naquela madrugada. Ou em outra
hora qualquer, que todas são propícias ao exercício do fazer poético. Para quem é poeta de verdade, como ele era.
E no entanto.
Corto propositalmente a seqüência do que vinha dizendo para colocar aqui a voz do
próprio poeta:
A rua é deserta
e deserta é a vida
Incerta é a medida
em que o homem cresce,
incerta a lembrança
que desaparece,
incerta a esperança
que cansa e descansa
enquanto anoitece,
e a treva acontece
e não vem a lua
e a rua é deserta.
Deserta? Olha bem:
o que foi aí vem
pois nada está morto.
Ganha o homem absorto
o riso perdido
e o ido navio
por um ido porto.
Quando toquei na folha de papel em que o poema palpitava ainda quente, senti todo o
frêmito das palavras em sua concretude transformadora:
A rua é deserta
a lua não veio
tua janela aberta
corta a noite ao meio
e fria te entrega
a treva mais fria
que olhos já viram
numa noite cega
Furtei o poema. Levei comigo. Passei depois para o Geraldo
Ferraz. Seu autor não sabia de nada mas eu tinha certeza que Geraldo, muito maior em sensibilidade e entendimento das coisas belas e verdadeiras
do que deixava transparecer em seu semblante fechado e seus modos agressivos, haveria de se comover com o poema. A resposta veio no domingo, na
página literária altamente seletiva e prestigiada, que Geraldo Ferraz mantinha, na época, no jornal A Tribuna, de Santos.
O poeta reaproximava-se de Geraldo e reiniciava a sua colaboração no jornal de onde
viria a ser crítico literário, mais tarde; ele também um devorador infatigável de livros, mestre de comunicações como ciência, um estudioso dedicado
da sociologia e da ciência política, jornalista apaixonado e professor de jornalismo, profundo conhecedor de História, principalmente a história de
sua cidade natal. Porque o poeta nasceu em Santos, numa daquelas ruas características da cidade, ruas que imitam rios porque deságuam no mar -
Roldão Mendes Rosa, o poeta, nasceu a 25 de fevereiro de 1924 na rua do Rosário, já um poema: rosa, rosário,
rosa-rio. E nela residiu grande parte de sua vida.
Hoje, senhoras e senhores, a rua do Rosário, da vetusta e bela cidade de Santos, berço
do poeta, se chama rua João Pessoa. Nada a ver (haver), tudo a perder. Brasis.
Retomo do início: por ter essa aproximação fraternal com o poeta, que para mim cunhou
a expressão poetirmão, julguei-me sempre a par de suas verdades-poesia. No plural sim, porque a verdade se define e se multiplica pelos
caminhos que abrimos e trilhamos para alcançá-la. Se restringirá, quem sabe, nessa busca ardente e dolorosa que nos irmana e nos afasta, nos iguala
e distingue, nos aproxima e nos distancia - do outro e de nós mesmos.
Quase diariamente nos encontrávamos, conversávamos, discutíamos, divergíamos, ciosos
que éramos da preservação de nossas respectivas verdades. Sobretudo, nos desvendávamos.
Vou cortar de novo para que volte a luz
Teu passado na mão se desconjunta
Se queres dele mais que uma lembrança
O passado morreu, não mais se alcança
E o que a morte separa, a mão não junta.
Não procure nessa hora já defunta
O que foste de amor e de esperança.
O que fomos é um tempo que descansa
Entre o fundo silêncio e a vã pergunta.
Entre o fundo silêncio e a vã pergunta, poeta, será? Ante a vã pergunta Alguém já
baixara os olhos e silenciara. Fundo silêncio.
Voltemos: o signo, o terrível signo poético apontando para todas as direções - ora é o
menino que estudou com os maristas (é um bem? é um mal? é um bem e um mal); ora o revolucionário marxista, digo melhor, idealista, querendo as
gentes todas unidas e desfrutando do quinhão merecido nesta vida, neste mundo, nesta terra (é possível? é impossível? é possível e impossível); e é
o homem discreto e cordial até a expansividade, aproximando os amigos uns dos outros (é saudade? é saudade); o mestre que transmitia aos seus jovens
discípulos a lição dos livros e a lição da vida, mas sobretudo exemplificava com o seu próprio modo de viver o quanto deve ter um homem de respeito
pelo próximo e por si mesmo.
Vivendo numa cidade plena de tradições em constante conflito com a realidade (cidade
presente x cidade histórica); por exemplo: o ideal libertário marcante no passado e os anos aviltantes de silêncio e perseguições ainda recentes ou,
ainda apenas exemplo, a presença de trechos urbanos característicos e antigos, com prédios de raro valor histórico, tudo ou quase tudo transformado
em ruínas - esse acervo de destruição pela imprevidência e incúria dos responsáveis (somos todos) amargurava e entristecia o Poeta nascido, como já
se disse, em pleno centro da cidade. E que tentou, inclusive em colaboração com o poder público municipal, nos anos 60, evitar que a coisa
continuasse nesse ritmo negativo de destruição absurda. Fomos companheiros nessa luta da qual saímos gloriosamente derrotados. Como disse o
jornalista Eron Brum: Roldão Mendes Rosa viveu na contramão.
E foi na contramão que construiu sua poesia. Desde jovem, desde aqueles tempos em que
a palavra modernismo apavorava e era proibida nas escolas, no ambiente familiar e nos famigerados cenáculos artísticos e culturais. Pois é:
aquele quase menino, que aos 12 anos ganharia um prêmio de poesia em concurso nacional (primeiro lugar, A Gazeta, 1937), logo, logo passaria
a publicar versos sem rima e sem métrica, novos na forma e novos nas idéias, versos modernistas. A melhor sociedade local tremeu! E depois, e depois
- essa é demais! Lia poemas revolucionários na Praça da República.
Amigos foram presos, houve perseguições, apreensão generalizada, tolhido o simples
exercício da liberdade e o discurso falso de frágeis "elites" tentando atenuar o clima de mal-estar e insegurança. Que a "doutrina" era essa.
Finalmente, o desencanto, e essa é sempre a hora pior. Mas o poeta, por ser quem era,
a tudo resistiu e superou, permanecendo fiel, porém lúcido, a trabalhar sua poesia com os elementos acumulados pelas permanentes e longas leituras,
jamais se afastando do sentido humano que toda arte maior deve ter. Sabia sim o que era poesia, conhecia em profundidade a arte eleita para celebrar
o belo e o verdadeiro que, para ele, significavam um perene intercâmbio com a vida, a existência humana. Em processo de renovação constante,
costumava dizer: "se insisto numa idéia de trinta anos atrás estou com uma idéia velha na cabeça. É preciso pesquisar, estudar, trabalhar, se
renovar".
Assim realizou sua poesia sem jamais esmorecer (é a palavra) não obstante a ausência
de incentivo, o desencanto - a mágica do poeta é transformar a adversidade em sonho, o sonho em realidade e novamente retornar ao sonho. Sempre
resistindo. Roldão Mendes Rosa foi um resistente.
Quarenta anos é uma vida - e foram quarenta anos de convivência quase diária. E no
entanto.
Pois é: a primeira interrupção se deu quando eu falava de novas aproximações, da
intensidade e da lealdade das posições assumidas um para com o outro, mútua e reciprocamente desvendados. Esta certeza carreguei vida afora
principalmente no que se refere à atividade poética. Um contava para o outro o que tinha feito, estava fazendo, pretendia fazer. Enfim, eu tinha
certeza de conhecer, em toda sua extensão, a poesia de Roldão Mendes Rosa.
E, no entanto, quando entrei no seu quarto naquele 26 de janeiro de 1988, quando o
poeta iniciou sua viagem rumo às estrelas, e vi as pastas acumuladas a um canto do cômodo, o volume imenso de originais, aí, e só aí, é que pude
sentir o quanto de entrega, de paixão ardente, de delírio em consciência, de desapego e de fidelidade a um ideal, a um sonho, o que possibilitara
acumular, linha por linha, palavra por palavra, noites e noites seguidas (o dia, cuidando da sobrevivência) a mensagem de poesia nem sempre
concluída, porque a manhã chegava.
Na raiz exposta do sonho, o sentido mais profundo de uma existência.
Ainda não houve condição para um levantamento total e meticuloso, como urge ser feito,
da obra de Roldão Mendes Rosa.
Entretanto já se encontram prontos para próxima publicação, sob apoio cultural da
Secretaria de Cultura de Santos e Universidade Santa Cecília dos Bandeirantes, com organização minha, poemas que
o poeta consideraria, ou considerou, concluídos. Destes, foram escolhidos alguns para este número de Artéria. Suficientes para provar que, na
raiz do sonho, sempre esteve a poesia. A poesia.
TÂNIA VADIGA - SONETO VI
Quem te ouvisse falar, Tânia Vadiga,
de uma coisa talvez não se olvidasse
do móvel horizonte de teus lábios
num já amanhecido céu de inverno,
da linha branca e frágil das palavras
desfeitas em gaivotas, nunca vistas
pelo sonho mais sonho concebido
sequer pelo olho mágico dos deuses.
Quem te ouvisse falar não esqueceria
dessa praia de náufragos aberta
aos que te chamam do mais fundo oceano,
dessa terra que o mar deixou deserta
para que houvesse o espaço que exigias
ao vôo rente e branco de teus dias
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Ilustração: Lúcio Menezes, publicada com o texto
POEMA
Canta que hoje é farra
no mar e na lua.
O morro é um navio
na noite só tua.
Uma voz te chama
numa ausente rua.
É mulher e te ama.
Sem boca te chama
sem corpo está nua.
Tem cabelos de ouro
e carne de lua.
Deitada na cama
de longe te chama
dizendo com o corpo
minha noite é tua.
- nunca fui tão bela
nunca fui tão nua.
Corre marinheiro
corre
que uma voz te chama
de uma ausente rua
Nesta noite se ama
com cama e sem cama
no mar e na lua.
inédito
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Ilustração: Lúcio Menezes, publicada com o texto
POEMA Nº 2
A noite me chama.
Deseja em seu ventre
fecundar um poema.
Procuro ocultar-me
nos olhos dum gato
e vê-la no escuro
beijando meu rastro.
Já não quero a noite.
Outrora deixei-lhe
num tempo de gozo,
semente de prata:
e a lua nasceu.
vesti esse poema
e o levei à rua.
E a noite pedia...
meu nome na porta
meu nome no espelho
meu nome no muro.
Não pude fugir:
vesti outro poema
e o levei ao baile
para que o dançassem.
JABAQUARA
Quantos escravos
dormias
em teu sono
verde várzea?
Quadros negros
recolhias.
Quantos nomes
ocultavas.
Toda fuga
perseguida
em teu chão
se libertava.
Quem hoje me conta
a vida
que em tua vida
pulsava?
Bocas e nomes
desceram
com tuas chuvas
para a terra.
És chão de história
contada.
Papel escrito.
Mais nada.
inédito
TÂNIA VADIGA - SONETO VII
Quem te escuta navega de olhos cegos
velhos mares há muito navegados
e surpreende-se em terras sem memória
lavrando chãos há muito já lavrados.
A quem te segue faz-se puro o tempo
que de impuro se fez quando passado,
faz-se de lua a noite que era escura
e o dia sem ventura, aventurado.
Pensar em ti é desejar-te sempre
sem a saudade que amargura a alma
ou a incerteza que amargura a espera.
Estar contigo é não saber que há morte,
é ver que o tempo as árvores desfolha
e outono em ti rescende a primavera.
POEMA Nº 1
Em busca de mim,
percorro um silêncio
de erguidos punhais.
E corto-me.
Sangue
de memória escorre.
O que eu fui perdeu-se
na cinza das flores,
na cauda do vento,
entre águas e conchas
perdeu-se.
Os antigos ventos
soprarão de novo?
E os peixes, nas ondas,
saberão contar-me?
Corre, sangue! Não
deixes nenhum cílio
seco.
Pedaços de mim,
perdidos, flutuam
no vento, no mar...
Têm o rosto oculto
em lenços de nuvem.
Corre, sangue, corre
atravessa o tempo
dos passos sem eco.
Rio sem limites,
corre.
Meus dedos abertos
como um delta esperam
pedaços de mim
- sementes de poema
inédito
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