Roldão e as imagens da cidade de Santos
Fotos: arquivo, publicadas com a matéria
Poeta Roldão Mendes Rosa Poeta
No livro "Poemas do Não e da Noite", imagens da Cidade e um turbilhão de idéias
que ela inspirava ao jornalista
Narciso de Andrade (*)
Na poesia de Roldão Mendes Rosa, Santos cresce na mesma
proporção em que se apequena na ação de certos políticos. Roldão sempre entendeu que a política tem espaço importante na sociedade. É melhor, bem
melhor, muito melhor sofrer as conseqüências de uma política mal direcionada do que ser constrangido pela prepotência de um regime militar. Nós
tivemos tempo de viver as duas coisas; nós, que eu digo, não fomos apenas Roldão e eu, mas todo o povo brasileiro.
Aquele moço claro, muito claro, nascido, criado e vivido até onde deu na parte mais
antiga da cidade, na sua maneira discreta de ser e existir, jamais se entregou. Outro dia, voz simpática de moça me perguntava pelo telefone quem
era Roldão Mendes Rosa, sabendo-o poeta mas queria saber mais. Na faculdade em que ela estuda a biblioteca tem o nome dele. E pára por aí.
Foi quando ela disse que era filha do Lane Valiengo. Ora, esse Lane, repórter da
melhor qualidade, bem que podia saciar a nobre curiosidade da filha ansiosa por saber quem era, como existira, o que legara à sua terra, aquele
poeta, hoje (ainda bem) nome de biblioteca. O Lane é assim mesmo, um cara super legal, mas meio desligado.
Pois fique sabendo que seu pai conheceu muito bem o Roldão. Entre outras coisas,
trabalharam juntos neste jornal. Batucaram doidamente nas Olivetti da velha redação. Trocaram idéias e podiam fazê-lo porque as tinham na cabeça.
Pergunta pro Lane quem era o Roldão, o quanto sabia de jornal aquele profissional sempre atento à evolução da imprensa, atualizadíssimo,
competente, generoso na distribuição de seus conhecimentos aos alunos da Faculdade de Comunicação da UniSantos, onde lecionou com empenho e paixão
até a luz se apagar.
Um certo dia de 1983, por aí, Roldão me disse que o Lane estava querendo me
entrevistar. Papo furado. A entrevista, tenho certeza, seria com o próprio Roldão, mas ele queria colocar o amigo na jogada. Acertamos o lance
marcando um encontro na casa da Álvaro Alvim, 123, onde morava o poeta por aquelas alturas. O papo começou às nove da noite e só terminou lá pelas
três ou quatro da madrugada. Falamos de tudo, as resistências enfrentadas em ambiente pouco propício às coisas da arte e da literatura,
principalmente se deslocadas das provincianas preferências locais. Certas coisas do pesquisismo foram debatidas e explicadas pelo poeta, o
mais jovem integrante do movimento.
Conversa vai, conversa vem, eis-nos à certa altura a retomar os caminhos de boemia da
juventude naquelas noites de cabarés onde davam as ordens os chamados "elementos facinorosos". Na verdade, era um tempo de muita valentia e pouca
droga. E quem conhecia o código da noite podia conviver com toda essa gente sem ser importunado.
Na verdade, fugindo desse tema delicado, a noite santista tinha renome internacional,
nos cassinos - Ilha Porchat, Guarujá, Atlântico, por aí vai - cada noite era um acontecimento. Tudo isso nós conversamos sob a batuta do Roldão, a
propor os temas e provocar a participação de todos. Que havia outros, Laura, sua mulher, Carlos, filho, estão todos na gravação que guardo comigo e
só não ouço neste momento porque estou longe em terras mineiras.
E de poesia vocês não falaram? Gente, seria possível ter o Roldão ao lado e não falar
de poesia? Falamos, claro, e foi a parte mais intensa daquela conversa noite a dentro.
Mas aqui prefiro abrir os Poemas do Não e da Noite e, ao sabor do acaso, juro,
bato justamente na página 132, que se encaixa à perfeição no espírito daquela conversa porque o poema tem passagens assim:
Esta noite
procura-se uma verdade
em qualquer parte da noite lá dentro
Há salas inteiras de verdades.
Cheiro forte de crepúsculo
desprende-se dos arquivos.
Este poema de 1968 representa um fragmento de estudo para Museu do Futuro, que não
chegou a ser concluído. A característica do trabalho de Roldão era a exuberância de inspiração, mil caminhos em várias direções no mesmo poema, como
ele dizia: uma loucura.
Quando me deparei com seus originais para o livro que viria a ser Poemas do Não e
da Noite, publicado depois daquele 26 de janeiro 1988, quase entrei em desespero. Só o autor, e apenas ele, poderia encontrar a linha certa para
a eclosão final do poema subjacente ao turbilhão de idéias, imagens, metáforas a puxar para todos os lados a mão do vate santista.
Agarrei-me a essa mão e busquei ser fiel ao desejo de só publicar aquilo que
considerasse realmente concluído. Quantas vezes debatemos essa nossa posição quando víamos a pressa de publicar de tantos jovens simpáticos e
senhoras respeitáveis destas redondezas à beira do Atlântico. Sempre consideramos a poesia com intensa paixão e absoluto respeito.
Com o livro aberto em minha frente nesta manhã toda azul do Sul de Minas, penso nessa
Santos que tanto amamos e que Roldão ensinou a entender:
Ouve a aprende a cidade real,
Ela não é apenas a rua em que passas
a caminho de casa, nem a casa em que moras,
nem os telhados vistos do alto.
A cidade é o conhecimento de suas faltas e lutas.
Procura encontrá-la em ti mesmo.
Enquanto a vires com os olhos,
não poderás dizer que a conheces.
Quem vê um corpo e sua roupa
nada sabe do homem.
Apenas um livro. Mas quantas vertentes a serem exploradas.
(*) Narciso de Andrade é
poeta e escritor
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