Imagem: reprodução parcial do texto original
Dois motivos
Roldão Mendes Rosa
Interpretação nova
- Plim, plim, plim. Plim. Plim.
Borrasca.
Plim. Plim, plim, plim.
O telegrafista calca o botão transmissor, nervosamente. marinheiros acodem às vozes de comando.
Galgam escadas. Ferem o ar com pontas de corda. Emitem sinais de convenção.
Borrasca. Balbúrdia.
- Plim, plim, plim. Plim. Plim. Plim. Plim, plim, plim.
Na cabine telegráfica, o dedo profissional não desanima. Procura-se restabelecer a calma entre a
tripulação. Emborcados pela concha do céu tropical, gritam mulheres, homens e crianças, implorando proteção.
- Mamãe eu morro.
- Me tragam meu filho.
- Meu Deus, que tragédia.
Borrasca. Balbúrdia. Baldados esforços.
- Plim, plim, plim... Incansável o aparelho Morse.
O vento tem a fúria dos loucos, amigos, e é mais forte que a voz do marinheiro que grita no
tombadilho.
Os tripulantes sondam a distância, com uma ponta de esperança nos olhos, onde uma mancha se vai
definindo nas linhas de um cruzador.
- Cruuuuzadoooor à viiiistaaaa...
Há no convés um moço de olhos enlutados, pisados, muito calmo e muito pálido, que tosse num lenço
listrado. A vida, para ele, não merece assim tanta importância para que se grite, se grite, grite.
O socorro chega com o cruzador cinzento. Balbúrdia.
Balbúrdia. Balbúrdia. Finalizando o trabalho dos marinheiros, na distribuição dos salva-vidas, e o desespero dos tripulantes, o tubo lança-torpedos
do cruzador - na interpretação moderna do S. O.S. - manda, furando as águas verdes, a mensagem de auxílio que leva o navio pro fundo do mar.
***
Mais nenhuma boca jogou palavras amargas de encontro ao
vento louco, nem o marinheiro continuou a gritar no tombadilho, porque o mar engoliu o desespero dos homens e os náufragos tiveram o peito furado de
balas.
Não ficou ninguém prá chorar.
Nessa tarde os marinheiros receberam melhor ração e alguns gravaram no braço o nome do navio
afundado. O comandante fez um discurso como nunca e foi muito aplaudido. Houve, depois, música a bordo e os marinheiros dançaram como nunca.
Dª. Elvira na Rua Estreita
O ar macio da noite refresca-lhe o rosto encarquilhado, onde as rugas são incansáveis em prolongar
os traços finos e tortos que lhe correm na face. D. Elvira ajeita o corpo dorido no banco de pau, entrecorta um bocejo na palma da mão e encosta a
cabeça no tapume de tábuas largas e curtas.
Trouxe, para ler, o último número do romance com que o rapazinho miúdo, amarelo, míope e
desdentado, não falta toda a semana. Mas hoje d. Elvira não lerá a história da trágica Marta - a que se perdeu de amores - debaixo da luz crua do
combustor que ilumina a rua estreita. Rua estreita - uma fita sinuosa, de areia, apertada entre as malas malcheirosas.
Os braços ressentem o trabalho de todo o dia, de volta com a roupa empilhada no chão, esperando a
vez de mergulhar na água que enche o tanque. Água que sobe, em pequenos baldes, do poço. Braços queimados do sol, se agitando, esfregando lençóis e
fronhas, toalhas de linho e as cuecas de seda do doutor Ataulfo.
Há razão pra que d. Elvira solte a cabeça prá trás. As pálpebras, trementes, escondem de vez os
olhos raiados de sangue. Olhos fechados. Por dentro das pálpebras o lampião verde desaparece, perde sua forma, deixa de ser lampião verde. D. Elvira
sonha. São agora quatro varas brancas, de cera, ardendo numa chama tremida e amarela. Quatro velas. D. Elvira não compreende a razão de quatro velas
chamejando no porão, erguidas em cada ângulo do caixão negro, com debruns de ouro. Por isso d. Elvira se levanta. Caminha pro porão. Suspende o
lenço que encobre o rosto do morto. Sacode os ombros do defunto, perdida num pranto convulsivo.
- Beraldo! Você não escuta?
Os olhos do morto se abrem, vidrados. São negros e grandes os olhos do morto. percorrem o rosto de
d. Elvira, muito abertos. As mãos do morto são magras, longas e pálidas as mãos do morto. E se movimentam, se levantam, se encontram no braço de d.
Elvira e o apertam, apertam, apertam. D. Elvira tenta uma explicação:
- Sou sua mãe. Você não repara que me está machucando? Quem morre fica direitinho e sem palavra,
meu filho.
São manápulas de ferro estreitando o braço de d. Elvira. um grito agudo, muito alto e muito
comprido, salta-lhe da boca e atravessa a noite.
A mulata dengue, trejeitosa, vestido justo, armado pelo corpo franzino, que passa pela rua com os
lábios berrantes de carmim barato, acode ao grito que d. Elvira deixou escapar da garganta e abana-lhe o corpo no banco de pau. D. Elvira esfrega os
olhos e apanha o fascículo que rolara no chão e se enchera de terra.
- Foi bom me acordar, dona Margarida. Chi! que baita sonho ruim!
- Tinha número no sonho?
- Número mesmo não tinha, mas defunto tinha.
- Pois é a mesma coisa. Defundo... é alifante e alifante é 12. A quinhentão de premero ao quinto,
são... cinco, déiz... quinze... e mais destão são... dois e quinhento. Pronto! 2$500.
- Mas quanto!
- Até que nem é muito, dona Elvira. Prá quem tá no costume, como eu, de largá os seus niquezinhos
no biché...
- Não é "biché", dona, é guichete!
- É a mesma coisa. Mas quem costumada, como dizia, a jogá todo o santo dia que Deus bota no mundo,
2$500 não é nada, não. Só que amanhã eu não tenho os 2$500 prá botá prá fora. Si dona Elvira fizesse o favô... depois nóis arrepartia, né?
- Ó! mas foi brincadeira... eu não sonhei nada, não, dona Margarida. Pode crê qui era bobage minha. |