Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult002d.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/10/07 18:34:23
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETIRMÃO
Roldão Mendes Rosa (4)

Leva para a página anterior
Textos publicados no jornal santista A Tribuna, em 14 de dezembro de 1941:
 


Imagem: reprodução parcial do texto original

Dois motivos

Roldão Mendes Rosa

Interpretação nova

- Plim, plim, plim. Plim. Plim.

Borrasca.

Plim. Plim, plim, plim.

O telegrafista calca o botão transmissor, nervosamente. marinheiros acodem às vozes de comando. Galgam escadas. Ferem o ar com pontas de corda. Emitem sinais de convenção.

Borrasca. Balbúrdia.

- Plim, plim, plim. Plim. Plim. Plim. Plim, plim, plim.

Na cabine telegráfica, o dedo profissional não desanima. Procura-se restabelecer a calma entre a tripulação. Emborcados pela concha do céu tropical, gritam mulheres, homens e crianças, implorando proteção.

- Mamãe eu morro.

- Me tragam meu filho.

- Meu Deus, que tragédia.

Borrasca. Balbúrdia. Baldados esforços.

- Plim, plim, plim... Incansável o aparelho Morse.

O vento tem a fúria dos loucos, amigos, e é mais forte que a voz do marinheiro que grita no tombadilho.

Os tripulantes sondam a distância, com uma ponta de esperança nos olhos, onde uma mancha se vai definindo nas linhas de um cruzador.

- Cruuuuzadoooor à viiiistaaaa...

Há no convés um moço de olhos enlutados, pisados, muito calmo e muito pálido, que tosse num lenço listrado. A vida, para ele, não merece assim tanta importância para que se grite, se grite, grite.

O socorro chega com o cruzador cinzento. Balbúrdia. Balbúrdia. Balbúrdia. Finalizando o trabalho dos marinheiros, na distribuição dos salva-vidas, e o desespero dos tripulantes, o tubo lança-torpedos do cruzador - na interpretação moderna do S. O.S. - manda, furando as águas verdes, a mensagem de auxílio que leva o navio pro fundo do mar.

***

Mais nenhuma boca jogou palavras amargas de encontro ao vento louco, nem o marinheiro continuou a gritar no tombadilho, porque o mar engoliu o desespero dos homens e os náufragos tiveram o peito furado de balas.

Não ficou ninguém prá chorar.

Nessa tarde os marinheiros receberam melhor ração e alguns gravaram no braço o nome do navio afundado. O comandante fez um discurso como nunca e foi muito aplaudido. Houve, depois, música a bordo e os marinheiros dançaram como nunca.

Dª. Elvira na Rua Estreita

O ar macio da noite refresca-lhe o rosto encarquilhado, onde as rugas são incansáveis em prolongar os traços finos e tortos que lhe correm na face. D. Elvira ajeita o corpo dorido no banco de pau, entrecorta um bocejo na palma da mão e encosta a cabeça no tapume de tábuas largas e curtas.

Trouxe, para ler, o último número do romance com que o rapazinho miúdo, amarelo, míope e desdentado, não falta toda a semana. Mas hoje d. Elvira não lerá a história da trágica Marta - a que se perdeu de amores - debaixo da luz crua do combustor que ilumina a rua estreita. Rua estreita - uma fita sinuosa, de areia, apertada entre as malas malcheirosas.

Os braços ressentem o trabalho de todo o dia, de volta com a roupa empilhada no chão, esperando a vez de mergulhar na água que enche o tanque. Água que sobe, em pequenos baldes, do poço. Braços queimados do sol, se agitando, esfregando lençóis e fronhas, toalhas de linho e as cuecas de seda do doutor Ataulfo.

Há razão pra que d. Elvira solte a cabeça prá trás. As pálpebras, trementes, escondem de vez os olhos raiados de sangue. Olhos fechados. Por dentro das pálpebras o lampião verde desaparece, perde sua forma, deixa de ser lampião verde. D. Elvira sonha. São agora quatro varas brancas, de cera, ardendo numa chama tremida e amarela. Quatro velas. D. Elvira não compreende a razão de quatro velas chamejando no porão, erguidas em cada ângulo do caixão negro, com debruns de ouro. Por isso d. Elvira se levanta. Caminha pro porão. Suspende o lenço que encobre o rosto do morto. Sacode os ombros do defunto, perdida num pranto convulsivo.

- Beraldo! Você não escuta?

Os olhos do morto se abrem, vidrados. São negros e grandes os olhos do morto. percorrem o rosto de d. Elvira, muito abertos. As mãos do morto são magras, longas e pálidas as mãos do morto. E se movimentam, se levantam, se encontram no braço de d. Elvira e o apertam, apertam, apertam. D. Elvira tenta uma explicação:

- Sou sua mãe. Você não repara que me está machucando? Quem morre fica direitinho e sem palavra, meu filho.

São manápulas de ferro estreitando o braço de d. Elvira. um grito agudo, muito alto e muito comprido, salta-lhe da boca e atravessa a noite.

A mulata dengue, trejeitosa, vestido justo, armado pelo corpo franzino, que passa pela rua com os lábios berrantes de carmim barato, acode ao grito que d. Elvira deixou escapar da garganta e abana-lhe o corpo no banco de pau. D. Elvira esfrega os olhos e apanha o fascículo que rolara no chão e se enchera de terra.

- Foi bom me acordar, dona Margarida. Chi! que baita sonho ruim!

- Tinha número no sonho?

- Número mesmo não tinha, mas defunto tinha.

- Pois é a mesma coisa. Defundo... é alifante e alifante é 12. A quinhentão de premero ao quinto, são... cinco, déiz... quinze... e mais destão são... dois e quinhento. Pronto! 2$500.

- Mas quanto!

- Até que nem é muito, dona Elvira. Prá quem tá no costume, como eu, de largá os seus niquezinhos no biché...

- Não é "biché", dona, é guichete!

- É a mesma coisa. Mas quem costumada, como dizia, a jogá todo o santo dia que Deus bota no mundo, 2$500 não é nada, não. Só que amanhã eu não tenho os 2$500 prá botá prá fora. Si dona Elvira fizesse o favô... depois nóis arrepartia, né?

- Ó! mas foi brincadeira... eu não sonhei nada, não, dona Margarida. Pode crê qui era bobage minha.

Leva para a página seguinte da série