Os
emissários transpuseram o lagamar, fizeram em canoa a travessia
do rio salobro e, na outra margem, tomaram a trilha apenas marcada pelos
pés dos silvícolas. Caminharam entre banhados cobertos de
mangue que, com a raizana craquenta, parecia agarrar-se ansiosamente ao
tijuco preto.
Dali a pouco,
os índios, lestos andarilhos, chegaram a outro rio, de águas
cristalinas e puras, que vinha lá de cima, do encontro dos morros.
Saltaram-no a vau, os frocos de espuma à altura do peito, para refrescarem
o corpo amolentado pelo bochorno.
Viram-se entre
os contrafortes da serra de Paranapiacaba. Diante deles, erguia-se enorme
muralha escura, toldada de névoas nos cimos, com lanhos vermelhos
de desmoronamentos e, lá longe, aquela pincelada de prata - a cachoeira
que se atirava aos precipícios - o Itutinga.
Contornaram
os espigões, que a densidade da mata tornava sombrios, apesar de
o sol matinal andar dourando as cristas da floresta. Grimparam pelas inextricáveis
encostas, usando nesse afã todos os recursos ao seu alcance. Os
pés firmavam-se em calhaus limosos, não raro soltos, que
se desprendiam e rolavam, aos saltos e aos tombos, para o vale lá
embaixo, onde a neblina mal velava o verde crespo das samambaias e as copas
deste ou daquele arbusto carregadinho de flores. Então, desamparados,
tinham de saltar, no último instante, para outra pedra que, igualmente,
se deslocava sob suas plantas, obrigando-os a socorrer-se dos braços
e ficarem pendurados, balançando no ar, à procura de novo
ponto de apoio.
As pernas tinham
de escarranchar-se, a fim de saltar uma beiradinha de barranco que, muitas
vezes, se desmoronava. A subida, então, era feita à custa
de braços. As mãos largavam um cipó, que rebentava,
ou um galho, que lascava com o peso, para se agarrarem a uma touceira de
capim, pronta a desprender-se, ou uma touça de gravatás,
onde muito bem podia estar enroscada, de tocaia, uma jararaca.
- Com a breca!
- exclamou o beirão, aliviado.
Esfalfados,
ei-los no pico da serra, descortinando planícies de novo aspecto,
onde, caminhando, ouviam o murmúrio de misteriosas lacrimais, o
chiar das cigarras e a grazinada dos passarinhos.
O estrangeiro
sentou-se à beira de um olho-d'água e pôs-se a beber
na concha das mãos unidas. Terminando, passou o braço dobrado
pela testa, alisou as barbas arrepiadas, cheias de ciscos e gravetos, e
exclamou:
- Safa!
Santo
André da Borda do Campo localizada em Paranapiacaba - O historiador
e pesquisador que foi Washington Luís escreveu importantes trabalhos
particularmente sobre os primórdios de São Paulo. Sobre a
localização da região central (ou urbana, como diríamos
hoje) da quse lendária Santo André, assim se expressa ele
após suas pesquisas: "João Ramalho nasceu em Vousela, numa
pequena vila situada em montanhas, exatamente como Santo André,
que ele veio fundar na Serra de Paranapiacaba". Ilustração
de Jean Luciano e legenda original para o livrete Cubatão
na Obra de Afonso Schmidt (Prefeitura
Municipal de Cubatão, 1974, Cubatão/SP)
João
Belbode Maldonado, o Ramalho, foi o primeiro homem branco a transpor a
serra de Paranapiacaba e entrar pelo planalto, onde a terra se apresenta
empolada de colinas, coberta de vegetação franzina e pobre.
De novo, na trilha dos índios, lá foram eles em fila, um
atrás do outro, naquele passo elástico em que podiam caminhar
dia e noite sem se cansar, vencendo com rapidez consideráveis distâncias.
No trajeto,
atravessaram a vau alguns cursos de água, maiores e menores. Já
com o Sol a esconder-se atrás do Jaraguá, viram-se à
beira do córrego Ipiranga, de águas barrentas. Prosseguiram
na jornada em direção de alguns cabeços arredondados,
onde, na azulescência da lonjura, se erguiam estrigas de fumaça
que o vento esgarçava.
De um lado
e outro da trilha, por trás das defesas naturais e de tranqueiras
de galhos secos para ali carregados, foram aparecendo as primeiras malocas,
onde moravam diversas famílias, com o terreiro único e a
fogueira habitual. Mais adiante, uma derrubada de velhas árvores
para a plantação da roça. Ou o terreno negro de antiga
coivara, onde as ervinhas começavam a espiar entre os carvões
extintos, sob a coberta da cinza.
De quando em
quando, cruzavam com homens carregando ao ombro caças que tinham
retirado dos mundéus, ou samburás de peixes tirados dos paris
armados nas margens dos rios.
Por fim, nas
vizinhanças do Guaré, viram as tranqueiras que defendiam
Inhapuambuçu, o reduto do cacique Tibereçá, nome que
significava o olho-da-terra. Súbito, foram cercados por índios,
que lhes perguntaram aonde iam e o que pretendiam. Satisfeitos com a resposta,
as sentinelas permitiram a sua passagem e eles chegaram à taba do
maioral de Piratininga.
A ocara,
ao clarão inquieto da fogueira, apresentava-se concorrida e festiva.
Rufavam uaís, chocalhavam maracás, gritavam membis.
E, à volta do brasido, homens e mulheres farandulavam, batendo os
pés, agitando os cocares de penas coloridas.
Os viajantes
do mar, acompanhados do português, foram entrando e se acocorando
pelos cantos, onde havia caça e peixes assados, para satisfazerem
o apetite. João, saboreando mandioca assada, acompanhada pela cuia
de mel, pensava em qualquer coisa a que ele próprio não se
atrevia a dar um nome.
De repente,
Potira, mais graciosa do que nunca, ao saber a notícia da sua chegada,
veio correndo da oca paterna, entrou na ocara e pôs-se
a percorrer os agrupamentos de homens e mulheres. Circunvagou o olhar,
à procura de alguém e, descobrindo, afinal, o branco, correu
para ele, doida de alegria. O Ramalho, que a esperava em silêncio,
levantou-se e disse uma frase, que lhe havia custado a compor:
- Meu amor,
cá estou eu... morro de saudades de ti!
- Que quer
dizer "saudade"? - perguntou ela.
- É
uma doce palavra portuguesa que não tem tradução na
tua língua, como em nenhuma outra...
- Vem comigo,
quero levar-te a meu pai e senhor. |