Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cubatao/enigma10.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/06/03 17:46:29
Clique aqui para voltar à página inicial de Cubatão
HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
X - Inhapuambuçu                   (de Afonso Schmidt) 
Os emissários transpuseram o lagamar, fizeram em canoa a travessia do rio salobro e, na outra margem, tomaram a trilha apenas marcada pelos pés dos silvícolas. Caminharam entre banhados cobertos de mangue que, com a raizana craquenta, parecia agarrar-se ansiosamente ao tijuco preto.

Dali a pouco, os índios, lestos andarilhos, chegaram a outro rio, de águas cristalinas e puras, que vinha lá de cima, do encontro dos morros. Saltaram-no a vau, os frocos de espuma à altura do peito, para refrescarem o corpo amolentado pelo bochorno.

Viram-se entre os contrafortes da serra de Paranapiacaba. Diante deles, erguia-se enorme muralha escura, toldada de névoas nos cimos, com lanhos vermelhos de desmoronamentos e, lá longe, aquela pincelada de prata - a cachoeira que se atirava aos precipícios - o Itutinga.

Contornaram os espigões, que a densidade da mata tornava sombrios, apesar de o sol matinal andar dourando as cristas da floresta. Grimparam pelas inextricáveis encostas, usando nesse afã todos os recursos ao seu alcance. Os pés firmavam-se em calhaus limosos, não raro soltos, que se desprendiam e rolavam, aos saltos e aos tombos, para o vale lá embaixo, onde a neblina mal velava o verde crespo das samambaias e as copas deste ou daquele arbusto carregadinho de flores. Então, desamparados, tinham de saltar, no último instante, para outra pedra que, igualmente, se deslocava sob suas plantas, obrigando-os a socorrer-se dos braços e ficarem pendurados, balançando no ar, à procura de novo ponto de apoio.

As pernas tinham de escarranchar-se, a fim de saltar uma beiradinha de barranco que, muitas vezes, se desmoronava. A subida, então, era feita à custa de braços. As mãos largavam um cipó, que rebentava, ou um galho, que lascava com o peso, para se agarrarem a uma touceira de capim, pronta a desprender-se, ou uma touça de gravatás, onde muito bem podia estar enroscada, de tocaia, uma jararaca.

- Com a breca! - exclamou o beirão, aliviado.

Esfalfados, ei-los no pico da serra, descortinando planícies de novo aspecto, onde, caminhando, ouviam o murmúrio de misteriosas lacrimais, o chiar das cigarras e a grazinada dos passarinhos.

O estrangeiro sentou-se à beira de um olho-d'água e pôs-se a beber na concha das mãos unidas. Terminando, passou o braço dobrado pela testa, alisou as barbas arrepiadas, cheias de ciscos e gravetos, e exclamou:

- Safa!

Santo André da Borda do Campo localizada em Paranapiacaba - O historiador e pesquisador que foi Washington Luís escreveu importantes trabalhos particularmente sobre os primórdios de São Paulo. Sobre a localização da região central (ou urbana, como diríamos hoje) da quse lendária Santo André, assim se expressa ele após suas pesquisas: "João Ramalho nasceu em Vousela, numa pequena vila situada em montanhas, exatamente como Santo André, que ele veio fundar na Serra de Paranapiacaba".
Ilustração de Jean Luciano e legenda original para o livrete Cubatão na Obra de Afonso Schmidt
(Prefeitura Municipal de Cubatão, 1974, Cubatão/SP)

João Belbode Maldonado, o Ramalho, foi o primeiro homem branco a transpor a serra de Paranapiacaba e entrar pelo planalto, onde a terra se apresenta empolada de colinas, coberta de vegetação franzina e pobre. De novo, na trilha dos índios, lá foram eles em fila, um atrás do outro, naquele passo elástico em que podiam caminhar dia e noite sem se cansar, vencendo com rapidez consideráveis distâncias.

No trajeto, atravessaram a vau alguns cursos de água, maiores e menores. Já com o Sol a esconder-se atrás do Jaraguá, viram-se à beira do córrego Ipiranga, de águas barrentas. Prosseguiram na jornada em direção de alguns cabeços arredondados, onde, na azulescência da lonjura, se erguiam estrigas de fumaça que o vento esgarçava.

De um lado e outro da trilha, por trás das defesas naturais e de tranqueiras de galhos secos para ali carregados, foram aparecendo as primeiras malocas, onde moravam diversas famílias, com o terreiro único e a fogueira habitual. Mais adiante, uma derrubada de velhas árvores para a plantação da roça. Ou o terreno negro de antiga coivara, onde as ervinhas começavam a espiar entre os carvões extintos, sob a coberta da cinza.

De quando em quando, cruzavam com homens carregando ao ombro caças que tinham retirado dos mundéus, ou samburás de peixes tirados dos paris armados nas margens dos rios.

Por fim, nas vizinhanças do Guaré, viram as tranqueiras que defendiam Inhapuambuçu, o reduto do cacique Tibereçá, nome que significava o olho-da-terra. Súbito, foram cercados por índios, que lhes perguntaram aonde iam e o que pretendiam. Satisfeitos com a resposta, as sentinelas permitiram a sua passagem e eles chegaram à taba do maioral de Piratininga.

A ocara, ao clarão inquieto da fogueira, apresentava-se concorrida e festiva. Rufavam uaís, chocalhavam maracás, gritavam membis. E, à volta do brasido, homens e mulheres farandulavam, batendo os pés, agitando os cocares de penas coloridas.

Os viajantes do mar, acompanhados do português, foram entrando e se acocorando pelos cantos, onde havia caça e peixes assados, para satisfazerem o apetite. João, saboreando mandioca assada, acompanhada pela cuia de mel, pensava em qualquer coisa a que ele próprio não se atrevia a dar um nome.

De repente, Potira, mais graciosa do que nunca, ao saber a notícia da sua chegada, veio correndo da oca paterna, entrou na ocara e pôs-se a percorrer os agrupamentos de homens e mulheres. Circunvagou o olhar, à procura de alguém e, descobrindo, afinal, o branco, correu para ele, doida de alegria. O Ramalho, que a esperava em silêncio, levantou-se e disse uma frase, que lhe havia custado a compor:

- Meu amor, cá estou eu... morro de saudades de ti!

- Que quer dizer "saudade"? - perguntou ela.

- É uma doce palavra portuguesa que não tem tradução na tua língua, como em nenhuma outra...

- Vem comigo, quero levar-te a meu pai e senhor.