O
casamento realizou-se numa Lua nova. Houve ruidosas festas. Os guaianás
mantinham costumes rígidos. Guardavam a sua moral, austera, como
outros povos. Só com a organização da colônia,
mais tarde - diz um cronista - começaram a depravar-se. Portanto,
João e Potira casaram-se de acordo com as leis de Tupã e
a elevada tradição da sua gente. Assim começou a história
de um grande povo - a nossa História, a História do Brasil.
Nesta altura,
tem início a nova existência de João Ramalho. Depois
das bodas, os esposos foram para perto de Paranapiacaba, construíram
a habitação e plantaram a roça. O beirão de
Vouzela, nascido nos fins do século XV, não tinha tantas
exigências que não pudesse viver naquele meio. Adaptou-se
logo aos usos e costumes da gente primitiva e, dentro de pouco, desapareceu
no meio da indiada.
Não
adotou o canitar e a tanga de penas. Com certeza, vestiu-se de peles mais
ou menos costuradas, até que a doce Potira lhe tecesse umas peças
de roupa daquele algodão que já existia aqui, antes do descobrimento.
Quanto a calçado, indispensável nas correrias de europeu
desacostumado a calhaus e espinhos, como também a cobras, provavelmente
ele os fabricava de couro de porco do mato. Na geração seguinte,
isso já não seria uma novidade.
Assim, ocupado
na caça, na pesca e nos serviços de roça, o tempo
foi passando suavemente ao lado da amorável Potira. Começaram
a vir os filhos com regularidade, como a floração dos ipês
e dos jacarandás. A oca fez-se lar, o casal transformou-se
em família.
Anos depois,
a casa já era grande, de taipa, coberta de palha, com largo alpendre
diante da porta. As parasitas da serra abriam por toda parte corimbos de
ouro. Surgiram redes de barras franjadas, potes de água e de vinho
de frutas.
Dentro, não
havia compartimento, mas o chão de terra batida era em parte revestido
de esteiras de taquara trançada. Redes de embira com largas franjas
de cor oscilavam, presas nos ângulos. Peles curtidas amontoavam-se
nos cantos, para o sono e o descanso.
No fundo, quase
em aberto, ficava a cozinha, também de chão batido, com o
fogão de pedras e as grelhas de varas já muito chamuscadas.
Panelas, potes, alguidares de barro e, do lado de fora, o forno que o Ramalho
construíra, lembrando-se, talvez, da sua infância em Vouzela.
Ali eram assados veados e porcos do mato, assim como alguns peixes de maior
vulto, linhados no Anhembi.
Para a caça
e a pesca, o genro do cacique ocupava alguns índios que todas as
manhãs iam visitar os mundéus, os fojos, os covos e os paris,
de onde voltavam arcados ao peso de uma caça morta, atravessada
nos ombros, ou de um samburá de bagres e traíras.
Cunhãs
e cunhantãs, que moravam na mesma maloca, rodeavam de mimos
a prestimosa Potira. Plantavam o milho, a mandioca, o cará, o inhame,
a taioba e o mangarito. Quando a Lua estava de feição, raspavam
as mandiocas, ralavam-nas, e, depois de espremê-las na prensa, em
tipitis de cipós trançados, levavam a massa ao forno adequado
e torravam a farinha, tanto a farinha d'água como a manema, feita
de mandioca amolecida pela imersão de muitos dias no ribeiro próximo.
E eram beijus de goma e de tapioca, alguns deles torrados duas vezes, com
mel e ervas de cheiro.
Os primeiros
caribocas da região, filhos de português e índia, começaram
a brincar no terreiro, onde viviam animais domesticados e aves de estimação,
sob o olhar das mimosas cunhantãs. Primeiro André,
depois Margarida, Vitório... E a prole foi crescendo de ano para
ano. E a gangorra a subir e a descer, entre gritos e risadas. E o chicote-queimado,
animando o terreiro.
João
Ramalho, desde os primeiros tempos, organizara o seu almanaque. Era uma
porunga de tampa, que ele conservava pendurada no canto. Ao vir de cada
Lua nova, acrescentava uma pedrinha branca. Quando essas pedrinhas perfaziam
o número de trinta, tirava-as e as substituía por uma pedrinha
preta. Assim, estava mais ou menos a par da passagem dos meses e dos anos.
Afora as derrubadas
para as roças, depois semeadas ou plantadas pelas mulheres, o beirão
realizava demorados passeios, visitando as aldeias próximas, cujos
maiorais eram seus aparentados. Não raro, ia à taba do sogro,
e encontrava índios itinerantes, que contavam novidades.
Certa manhã,
sua atenção foi atraída por um tapuio, que chegava,
viajando ao longo do Paraíba. Era facilmente reconhecível
por usar batoque e tambetás, enfeites que os guaianás não
adotavam. De cócoras, falava uma língua diferente, que os
circunstantes se esforçavam por compreender.
Contava ele
que, havia quatro luas, aportara nas suas praias uma esquadra composta
de muitos navios. Depois de estacionar diante de um morro, partiu rumo
ao nascente e, só então, foi ancorar em pequena baía,
naturalmente por ser porto seguro. Nessa enseada, os brancos desceram e
plantaram uma pedra com dizeres. Num dos ilhéus, o pajé dos
brancos realizou cerimônia da sua religião. Dois índios
visitaram o barco-chefe e foram muito bem tratados. Por fim, todos aqueles
brancos quiseram saber onde havia minas de ouro e brilhantes como os que
usavam nos seus enfeites...
João
Ramalho ouviu a história, não disse palavra, mas afastou-se
pensativo. Aquela loucura pelo ouro e pedras preciosas acabaria numa guerra
feroz entre os brancos, asiáticos, africanos... Todos os homens
da Terra a se entredevorarem por causa de umas palhetinhas douradas que
ele, para distrair-se, catava com as mãos num córrego, quando
ia ao Jaraguá...
Mas a história
daquela esquadra, fosse de Portugal ou de qualquer outro reino, não
lhe saía da cabeça. Regressando às suas pousadas,
dirigiu-se à cozinha, onde Potira, rodeada pelos filhos, o aguardava
para o almoço. Sentados aqui e ali, ou de cócoras, comeram
saboroso pacu de forno, que lhes chegara de Araritaguaba. Depois, deliciaram-se
com goiabas, sapotas e bacuparis. E tomaram cuias de mel, com beijus de
tapioca.
Refeito, João
Ramalho foi ao canto, tirou a porunga, derramou as pedras no chão,
contou-as, recontou-as e concluiu:
- Deve ser
outra esquadra que se destinava às Índias e que por aqui
veio arribar, como aconteceu com aquela que me trouxe. Quanto à
data, pelas minhas contas, deve ter sido aí por abril de 1500... |