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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
XI - A porunga-calendário       (de Afonso Schmidt) 
O casamento realizou-se numa Lua nova. Houve ruidosas festas. Os guaianás mantinham costumes rígidos. Guardavam a sua moral, austera, como outros povos. Só com a organização da colônia, mais tarde - diz um cronista - começaram a depravar-se. Portanto, João e Potira casaram-se de acordo com as leis de Tupã e a elevada tradição da sua gente. Assim começou a história de um grande povo - a nossa História, a História do Brasil.

Nesta altura, tem início a nova existência de João Ramalho. Depois das bodas, os esposos foram para perto de Paranapiacaba, construíram a habitação e plantaram a roça. O beirão de Vouzela, nascido nos fins do século XV, não tinha tantas exigências que não pudesse viver naquele meio. Adaptou-se logo aos usos e costumes da gente primitiva e, dentro de pouco, desapareceu no meio da indiada.

Não adotou o canitar e a tanga de penas. Com certeza, vestiu-se de peles mais ou menos costuradas, até que a doce Potira lhe tecesse umas peças de roupa daquele algodão que já existia aqui, antes do descobrimento. Quanto a calçado, indispensável nas correrias de europeu desacostumado a calhaus e espinhos, como também a cobras, provavelmente ele os fabricava de couro de porco do mato. Na geração seguinte, isso já não seria uma novidade.

Assim, ocupado na caça, na pesca e nos serviços de roça, o tempo foi passando suavemente ao lado da amorável Potira. Começaram a vir os filhos com regularidade, como a floração dos ipês e dos jacarandás. A oca fez-se lar, o casal transformou-se em família.

Anos depois, a casa já era grande, de taipa, coberta de palha, com largo alpendre diante da porta. As parasitas da serra abriam por toda parte corimbos de ouro. Surgiram redes de barras franjadas, potes de água e de vinho de frutas.

Dentro, não havia compartimento, mas o chão de terra batida era em parte revestido de esteiras de taquara trançada. Redes de embira com largas franjas de cor oscilavam, presas nos ângulos. Peles curtidas amontoavam-se nos cantos, para o sono e o descanso.

No fundo, quase em aberto, ficava a cozinha, também de chão batido, com o fogão de pedras e as grelhas de varas já muito chamuscadas. Panelas, potes, alguidares de barro e, do lado de fora, o forno que o Ramalho construíra, lembrando-se, talvez, da sua infância em Vouzela. Ali eram assados veados e porcos do mato, assim como alguns peixes de maior vulto, linhados no Anhembi.

Para a caça e a pesca, o genro do cacique ocupava alguns índios que todas as manhãs iam visitar os mundéus, os fojos, os covos e os paris, de onde voltavam arcados ao peso de uma caça morta, atravessada nos ombros, ou de um samburá de bagres e traíras.

Cunhãs e cunhantãs, que moravam na mesma maloca, rodeavam de mimos a prestimosa Potira. Plantavam o milho, a mandioca, o cará, o inhame, a taioba e o mangarito. Quando a Lua estava de feição, raspavam as mandiocas, ralavam-nas, e, depois de espremê-las na prensa, em tipitis de cipós trançados, levavam a massa ao forno adequado e torravam a farinha, tanto a farinha d'água como a manema, feita de mandioca amolecida pela imersão de muitos dias no ribeiro próximo. E eram beijus de goma e de tapioca, alguns deles torrados duas vezes, com mel e ervas de cheiro.

Os primeiros caribocas da região, filhos de português e índia, começaram a brincar no terreiro, onde viviam animais domesticados e aves de estimação, sob o olhar das mimosas cunhantãs. Primeiro André, depois Margarida, Vitório... E a prole foi crescendo de ano para ano. E a gangorra a subir e a descer, entre gritos e risadas. E o chicote-queimado, animando o terreiro.

João Ramalho, desde os primeiros tempos, organizara o seu almanaque. Era uma porunga de tampa, que ele conservava pendurada no canto. Ao vir de cada Lua nova, acrescentava uma pedrinha branca. Quando essas pedrinhas perfaziam o número de trinta, tirava-as e as substituía por uma pedrinha preta. Assim, estava mais ou menos a par da passagem dos meses e dos anos.

Afora as derrubadas para as roças, depois semeadas ou plantadas pelas mulheres, o beirão realizava demorados passeios, visitando as aldeias próximas, cujos maiorais eram seus aparentados. Não raro, ia à taba do sogro, e encontrava índios itinerantes, que contavam novidades.

Certa manhã, sua atenção foi atraída por um tapuio, que chegava, viajando ao longo do Paraíba. Era facilmente reconhecível por usar batoque e tambetás, enfeites que os guaianás não adotavam. De cócoras, falava uma língua diferente, que os circunstantes se esforçavam por compreender.

Contava ele que, havia quatro luas, aportara nas suas praias uma esquadra composta de muitos navios. Depois de estacionar diante de um morro, partiu rumo ao nascente e, só então, foi ancorar em pequena baía, naturalmente por ser porto seguro. Nessa enseada, os brancos desceram e plantaram uma pedra com dizeres. Num dos ilhéus, o pajé dos brancos realizou cerimônia da sua religião. Dois índios visitaram o barco-chefe e foram muito bem tratados. Por fim, todos aqueles brancos quiseram saber onde havia minas de ouro e brilhantes como os que usavam nos seus enfeites...

João Ramalho ouviu a história, não disse palavra, mas afastou-se pensativo. Aquela loucura pelo ouro e pedras preciosas acabaria numa guerra feroz entre os brancos, asiáticos, africanos... Todos os homens da Terra a se entredevorarem por causa de umas palhetinhas douradas que ele, para distrair-se, catava com as mãos num córrego, quando ia ao Jaraguá...

Mas a história daquela esquadra, fosse de Portugal ou de qualquer outro reino, não lhe saía da cabeça. Regressando às suas pousadas, dirigiu-se à cozinha, onde Potira, rodeada pelos filhos, o aguardava para o almoço. Sentados aqui e ali, ou de cócoras, comeram saboroso pacu de forno, que lhes chegara de Araritaguaba. Depois, deliciaram-se com goiabas, sapotas e bacuparis. E tomaram cuias de mel, com beijus de tapioca.

Refeito, João Ramalho foi ao canto, tirou a porunga, derramou as pedras no chão, contou-as, recontou-as e concluiu:

- Deve ser outra esquadra que se destinava às Índias e que por aqui veio arribar, como aconteceu com aquela que me trouxe. Quanto à data, pelas minhas contas, deve ter sido aí por abril de 1500...