Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cubatao/enigma09.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/06/03 16:00:11
Clique aqui para voltar à página inicial de Cubatão
HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - O ENIGMA DE...
IX - Os fados conduzem-no pela mão 
(de Afonso Schmidt) 
De madrugada, com a Lua a pratear as goiabeiras, os índios de serra acima puseram-se a caminho. Passando pela ocara quase deserta, a graciosa Potira procurou o moço branco, que conhecera na véspera. Encontrando-o, adormecido, nas vizinhanças do borralho, sobre uma esteira, foi despedir-se dele. Encostou a cabeça ternamente na sua e, por um instante, ali se conservou deliciada. Mas os parceiros já deviam estar à espera, tinha de alcançá-los. Então, tirou dos cabelos singela flor de manacá e depositou-a na mão entreaberta no dorminhoco. Perpetrada a travessura, saiu a correr até alcançar os companheiros.

Quando João acordou ao primeiro raio de sol, com os gritos das aves na caiçara e a grazinada das cunhãs e dos curumins à roda dos tições quase extintos, assando mandiocas e carás, admirou-se de ver aquela flor presa nos seus dedos, mas logo compreendeu, ou adivinhou, quem lá a deixara como lembrança. Acercou-se de uma velha e perguntou:

- Potira? Potira?...

A velha falou, falou, mas ele não entendeu. No entanto, pelos seus repetidos gestos, compreendeu que a jovem guaianá e a sua comitiva já estavam de viagem para os campos enevoados, onde faz frio e a samambaia viceja nos barrancos dos riachos.

Nesse dia, começou para ele nova existência. Ia tomar banho no mar e em caminho procurava entender o que diziam os índios, na ânsia de se iniciar na língua deles, pois esperava poder falar com Potira, se chegasse a encontrá-la.

Quando a Lua nova pairou pela segunda vez sobre as frondes trêmulas dos jerivás, ele já compreendia as conversas, nas mais das vezes as mesmas, ao seu redor e, sempre que podia, arriscava uma palavra a propósito. Disso, ninguém se admirou, pois, para os índios, era natural que todos os homens falassem a sua língua, até mesmo os brancos.

Certa noite, em que João estava de cócoras ao pé do fogo, Pirambóia, o feiticeiro, passou e, vendo-o, estacou no caminho para lhe dizer:

- Teus irmãos brancos mentiram; não fizeram nada do que prometeram. Nossos guerreiros os abandonaram na curva do rio, onde se colhem palhetas de ouro com os dedos.

- E agora? - perguntou João, penalizado.

- Ficaram lá, como socós, vergados à beira da água, revolvendo, revolvendo para sempre o tijuco...

Teve uma risada seca e lá foi, como pendurado no bastão de cambuí. João pensou:

- A cólera dos índios nunca é contra este ou aquele, mas contra a nação inteira dos que os ofendem. Começo a sentir-me em perigo.

Dali por diante, observou certa mudança na atitude dos que o cercavam. De madrugada, procurava os companheiros habituais para ir ao banho de mar e era informado de que eles já haviam partido. Junto à fogueira, ninguém lhe oferecia a paca moqueada ou a tainha cozida inteira sob as cinzas ardentes. Quanto ao pote de jacuba, nunca mais se encontrava no lugar em que ele o ia procurar. Conversas animadas interrompiam-se bruscamente à sua passagem. Que motivo forte havia para que não lhe aplicassem a justiça da tribo? E por quanto tempo ficaria assim?

Passou a fugir da ocara, tão concorrida, onde havia divertimentos e os moços disputavam o transporte de pesadíssimas toras. Vinham do mato com os paus às costas, correndo e bufando, para atirá-los nas imediações da fogueira que, nas noites seguintes, era alimentada por essa lenha. Os mais fortes e ágeis eram saudados, festejados. E tudo redundava em pretexto para música e cantigas, para danças em que todos tomavam parte.

Levava horas nos limites da taba, visitando os pedrouços coroados de sucarás. Alongava o passeio até a caiçara, feita de galhos secos e que representava a primeira obra de defesa, no caso (até certo ponto freqüente) de uma nação inimiga pretender instalar-se naqueles privilegiados sítios.

Pensou, pensou, mas não encontrou saída. Certa noite, notou aprestos de gente que ia para longe, para os campos de Piratininga, a fim de desempenhar uma missão qualquer.

Correu a falar a Pirambóia e foi encontrá-lo na sua oca, rodeado de homens e mulheres. Ele erguia os braços magros, encordoados de veias, e dizia:

- Tupã poderoso, fazei que os nossos guerreiros sejam invencíveis e que as nossas terras ricas de caça, como os nossos mares ricos de peixes, não sejam escravizados! Teremos de resistir à invasão de homens do mar, que nos procuram para impor novos deuses e nova maneira de viver. O sangue de nossos filhos correrá como rios vermelhos...

Ao notar a presença de João calou-se. Depois, falou-lhe:

- Por que não vais com teus irmãos? Eles estão contentes e te esperam!

João respondeu:

- Não, meu pai! Prefiro ir para os campos de Piratininga...

Pirambóia sentou-se, meteu a cabeça entre os joelhos e pareceu dormir. A seguir, como acordando, sentenciou:

- Homem branco, podes partir com os nossos guerreiros. Potira, filha do cacique Tibereçá, levou no coração a tua lembrança!

Quando a Lua empalideceu no céu, numeroso grupo de guerreiros partiu para a serra, rumo dos campos de Piratininga. João Ramalho ia com eles.