De
madrugada, com a Lua a pratear as goiabeiras, os índios de serra
acima puseram-se a caminho. Passando pela ocara quase deserta, a
graciosa Potira procurou o moço branco, que conhecera na véspera.
Encontrando-o, adormecido, nas vizinhanças do borralho, sobre uma
esteira, foi despedir-se dele. Encostou a cabeça ternamente na sua
e, por um instante, ali se conservou deliciada. Mas os parceiros já
deviam estar à espera, tinha de alcançá-los. Então,
tirou dos cabelos singela flor de manacá e depositou-a na mão
entreaberta no dorminhoco. Perpetrada a travessura, saiu a correr até
alcançar os companheiros.
Quando João
acordou ao primeiro raio de sol, com os gritos das aves na caiçara
e a grazinada das cunhãs e dos curumins à roda
dos tições quase extintos, assando mandiocas e carás,
admirou-se de ver aquela flor presa nos seus dedos, mas logo compreendeu,
ou adivinhou, quem lá a deixara como lembrança. Acercou-se
de uma velha e perguntou:
- Potira? Potira?...
A velha falou,
falou, mas ele não entendeu. No entanto, pelos seus repetidos gestos,
compreendeu que a jovem guaianá e a sua comitiva já estavam
de viagem para os campos enevoados, onde faz frio e a samambaia viceja
nos barrancos dos riachos.
Nesse dia,
começou para ele nova existência. Ia tomar banho no mar e
em caminho procurava entender o que diziam os índios, na ânsia
de se iniciar na língua deles, pois esperava poder falar com Potira,
se chegasse a encontrá-la.
Quando a Lua
nova pairou pela segunda vez sobre as frondes trêmulas dos jerivás,
ele já compreendia as conversas, nas mais das vezes as mesmas, ao
seu redor e, sempre que podia, arriscava uma palavra a propósito.
Disso, ninguém se admirou, pois, para os índios, era natural
que todos os homens falassem a sua língua, até mesmo os brancos.
Certa noite,
em que João estava de cócoras ao pé do fogo, Pirambóia,
o feiticeiro, passou e, vendo-o, estacou no caminho para lhe dizer:
- Teus irmãos
brancos mentiram; não fizeram nada do que prometeram. Nossos guerreiros
os abandonaram na curva do rio, onde se colhem palhetas de ouro com os
dedos.
- E agora?
- perguntou João, penalizado.
- Ficaram lá,
como socós, vergados à beira da água, revolvendo,
revolvendo para sempre o tijuco...
Teve uma risada
seca e lá foi, como pendurado no bastão de cambuí.
João pensou:
- A cólera
dos índios nunca é contra este ou aquele, mas contra a nação
inteira dos que os ofendem. Começo a sentir-me em perigo.
Dali por diante,
observou certa mudança na atitude dos que o cercavam. De madrugada,
procurava os companheiros habituais para ir ao banho de mar e era informado
de que eles já haviam partido. Junto à fogueira, ninguém
lhe oferecia a paca moqueada ou a tainha cozida inteira sob as cinzas ardentes.
Quanto ao pote de jacuba, nunca mais se encontrava no lugar em que ele
o ia procurar. Conversas animadas interrompiam-se bruscamente à
sua passagem. Que motivo forte havia para que não lhe aplicassem
a justiça da tribo? E por quanto tempo ficaria assim?
Passou a fugir
da ocara, tão concorrida, onde havia divertimentos e os moços
disputavam o transporte de pesadíssimas toras. Vinham do mato com
os paus às costas, correndo e bufando, para atirá-los nas
imediações da fogueira que, nas noites seguintes, era alimentada
por essa lenha. Os mais fortes e ágeis eram saudados, festejados.
E tudo redundava em pretexto para música e cantigas, para danças
em que todos tomavam parte.
Levava horas
nos limites da taba, visitando os pedrouços coroados de sucarás.
Alongava o passeio até a caiçara, feita de galhos secos e
que representava a primeira obra de defesa, no caso (até certo ponto
freqüente) de uma nação inimiga pretender instalar-se
naqueles privilegiados sítios.
Pensou, pensou,
mas não encontrou saída. Certa noite, notou aprestos de gente
que ia para longe, para os campos de Piratininga, a fim de desempenhar
uma missão qualquer.
Correu a falar
a Pirambóia e foi encontrá-lo na sua oca, rodeado
de homens e mulheres. Ele erguia os braços magros, encordoados de
veias, e dizia:
- Tupã
poderoso, fazei que os nossos guerreiros sejam invencíveis e que
as nossas terras ricas de caça, como os nossos mares ricos de peixes,
não sejam escravizados! Teremos de resistir à invasão
de homens do mar, que nos procuram para impor novos deuses e nova maneira
de viver. O sangue de nossos filhos correrá como rios vermelhos...
Ao notar a
presença de João calou-se. Depois, falou-lhe:
- Por que não
vais com teus irmãos? Eles estão contentes e te esperam!
João
respondeu:
- Não,
meu pai! Prefiro ir para os campos de Piratininga...
Pirambóia
sentou-se, meteu a cabeça entre os joelhos e pareceu dormir. A seguir,
como acordando, sentenciou:
- Homem branco,
podes partir com os nossos guerreiros. Potira, filha do cacique Tibereçá,
levou no coração a tua lembrança!
Quando a Lua
empalideceu no céu, numeroso grupo de guerreiros partiu para a serra,
rumo dos campos de Piratininga. João Ramalho ia com eles. |