Imagem originalmente publicada em 11 de janeiro de 1945
Imagem: reprodução parcial da página com a matéria
Acampamentos de trabalhadores na Serra do Mar
As grandes obras em construção na Via Anchieta - Até o fim do ano será aberto o tráfego da Capital a Cubatão - Mourejam no alto e na raiz da Serra perto de 2 mil operários - O "arigó", tipo clássico do trabalhador de estradas - Rigorosa
fiscalização dos preços de gêneros, oficialmente tabelados - Verificação de pesos em favor do operário - Carne verde a Cr$ 3,80 o quilo - Operários ganhando em média de Cr$ 2,80 por hora, a 10 horas de serviço por dia - Como os trabalhadores
recebem seus salários - Assistência médica inteiramente gratuita - Onde uma escola é mantida simplesmente por amor à instrução
Quando for entregue ao tráfego a Via Anchieta, a grande artéria que o Governo de São Paulo, através do Departamento de
Estradas de Rodagem, da Secretaria da Viação e Obras Públicas, está construindo entre o litoral e o planalto, poucos talvez se lembrarão da extraordinária história de trabalho, habilidade, coragem e perseverança que ali compõem, nos dias que
correm, a inteligência e o braço brasileiro. A monumental rodovia atesta, por si só, pelo que já apresenta de construído, em construção ou em projeto, tudo quanto possui um povo de energia, engenho, arrojo e arte.
A despeito dos maiores obstáculos, consequentes à necessária economia ou carência de materiais e à falta de mão de obra numerosa e habilitada, desenrola-se dia a dia a gigantesca radial,
deslizando na planície, serpeando pela serra, na ânsia de chegar ao mar. São largas faixas paralelas, inteiramente concretadas, que, vencendo o planalto, se elevam à crista dos morros ganhando os viadutos, ou se despenham grotões abaixo, varando
compridos túneis, tudo na vertiginosa concretização de um dos mais audazes planos da engenharia paulista. Em alguns trechos, como no Alto da Serra, separam-se as vias geminadas, superpondo-se rapidamente uma à outra, para logo adiante se
entrecruzarem e de novo se justaporem, seguindo a mesma reta.
Na Serra é que se constroem agora as grandes obras de arte, viadutos e túneis de vastas proporções. Trabalha-se para vencer um desnível de 700 metros, o que torna essas as maiores obras
do mundo, só havendo que se lhe assemelhe nos Estados Unidos, onde uma grande rodovia foi lançada a 300 metros de desnível.
O trabalho é intenso e variado. Transitam centenas de caminhões, carregando materiais, operários que pavimentam um trecho da via; outros que britam pedras a masseto ou arrebentam rochas
a picareta; outros ainda que escavam e cortam morros, ou lhes perfuram com brocas elétricas as entranhas de pedra para a abertura de túneis.
Com todo o trabalho, já se registrou até hoje um movimento de terra de 2 milhões de metros cúbicos. E embora haja ainda importantes obras para muito tempo, já se pode anunciar que,
segundo prognósticos dos técnicos, ao cabo de um ano, ou mais precisamente, lá por setembro ou outubro, a monumental Via Anchieta passará a servir integralmente o Estado, da Capital até Cubatão.
A organização do trabalho na Via Anchieta - Quando se iniciou a construção da Via Anchieta, o contrato de trabalhadores era feito por empreiteiras ou empresas particulares, que os
recrutavam e destinavam àquele local, de acordo com as necessidades do serviço. De uns meses para cá, passaram os operários a ser ajustados diretamente pelo Departamento de E. de Rodagem, suprimindo-se o agenciamento, o que permitiu uma economia
mensal de cerca de 40 mil cruzeiros em favor do erário estadual.
Foi esta uma medida de todo o ponto benéfica, pois a apresentação, agora espontânea, de trabalhadores, aumentou extraordinariamente, deixando mesmo certa margem para seleção de
elementos. Assim, pode o DER concentrar na serra e no planalto, em pouco tempo, considerável contingente de operários, tão certo é que em toda grande obra de qualquer parte do mundo a boa mão de obra raramente corresponde, em número e qualidade, às
exigências de técnica e rapidez do serviço.
Contrat[ad]os diretamente pelo DER, empregam-se ali mais de 1.200 operários -
cavouqueiros, britadores, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, mecânicos, motoristas, eletricistas, encanadores, soldadores e outros que, somados aos 600 ou mais de empreita particular, formam com suas famílias uma população calculada de 5 mil
almas, disseminadas pela serra e na planície.
A habitação e o homem - Nas encostas dos morros, ou lá embaixo, nos plainos, ao sopé da Serra do Mar, estendem-se os acampamentos dos trabalhadores da Via Anchieta. São vários
agrupamentos de casas, na maioria construídas de pau a pique, barro socado e cobertas de sapé, outras de tábuas e telhadas, distinguindo-se numerosas pintadas de branco, onde residem os operários do DER. As demais pertencem às turmas dos
empreiteiros.
Casinhas singelas, de fácil levantamento e desmontagem, como convém a populações instáveis, que são em geral os trabalhadores de rodovias ou ferrovias. Algumas providas de luz elétrica e
água encanada, todas porém de perfeita segurança e limpeza.
Os homens que as habitam são homens de todas as regiões do Brasil e também de outras nacionalidades. Elementos vigorosos, membrudos, pés de boi, de face acobreada, labutando de peito
aberto, de sol a sol, há todavia um dentre eles que sobressai por suas comprovadas virtudes de disciplina e tenacidade, é o patrício do sul de Minas, vulgarmente cognominado "arigó", tipo clássico de trabalhador de estradas que, calma, porém
energicamente, leva de vencida as mais duras tarefas, acatando as ordens superiores sem respingar ou recalcitrar em ocasião alguma.
Ao alto, vista de um dos acampamentos de operários da Via Anchieta; em baixo, o repórter da "Agência Nacional" em companhia de engenheiros do
DER à saída de um túnel em construção na Serra do Mar
Fotos e legenda publicadas com a matéria
O ganho e a subsistência - Os operários percebem pelos dias ou horas que trabalham durante o mês. Assim, um deles, britador de lajes, com quem se entrevistou o repórter da Agência
Nacional, que vence Cr$ 2,80 por hora, a 10 horas de serviços por dia. É mais ou menos essa importância que em geral ganham os trabalhadores braçais.
Os apontadores fornecem duas vezes por semana, como adiantamento, "vales" aos operários, correspondentes a 70% do seu saldo, "vales" estes que, apresentados por seu portador nos
escritórios do DER, à raiz da Serra, se convertem em dinheiro. Como os operários são na maioria analfabetos, adotaram os engenheiros-chefes um curioso e inteligente expediente de identificação, qual seja o da impressão digital de cada trabalhador
aposta ao respectivo documento. Sendo estes documentos verdadeiros cheques ao portador, conferem também ao operário o direito de adquirir com eles, nas farmácias e armazéns fornecedores, o que necessita em medicamentos, gêneros e outros artigos e
objetos, tanto que se denominam "vales de arranchamento". Constituem, além do mais, meio prático de abastecimento e pagamento de saldos em favor do empregado.
Em virtude da transferência dos serviços de agenciamento de trabalhadores diretamente para o DER que, conforme acima se disse, de há algum tempo os ajusta sem intermediários, ocorreu,
como era natural, certo atraso no pagamento de salários, a contar de três meses a esta parte, surgiu a ideia dos adiantamentos com o auxílio dos referidos vales, à vista dos quais pode o trabalhador embolsar 70% dos seus saldos, dispondo nos
escritórios do DER dos restantes 30%R, importância que lhe será integralmente paga uma vez elaborada a folha mensal de pagamento.
Quando se admite um trabalhador que não tenha com que viver, recebe ele desses vales, por conta do futuro saldo, podendo assim obter nas casas fornecedoras tudo quanto precisa para
instalar-se, vestir-se e alimentar-se, a si e à sua família.
Os vales têm curso livre em todo o pequeno comércio local, de Cubatão ao Alto da Serra, representando dinheiro em estado potencial, já que em tanto se transformam, quando assim o deseje
o seu portador.
Rigorosa verificação de pesos e fiscalização de preços - Dispõem os trabalhadores, para seu abastecimento, de seis ou mais armazéns, de propriedade particular, que ali se
estabeleceram de livre iniciativa. Provas de idoneidade comercial são exigidas dos negociantes, que devem ainda submeter-se ao regime de controle de pesos posto em vigor pelos engenheiros-chefes do DER.
A esta altura é de toda a justiça destacar a real probidade, o zelo extremo demonstrados por estes ilustres técnicos, na permanente defesa dos interesses de seus subordinados, que contam
neles verdadeiros amigos velando por seu bem-estar e, principalmente, pela integridade de suas finanças.
Despendem eles, devotadamente, tempo precioso na organização e fiscalização de abastecimento, não raro em prejuízo de seus misteres de ordem técnica, pois nada lhes distrai o honesto e
rígido propósito de prover os trabalhadores e suas famílias de tudo, e a preços estritamente legais. Das dificuldades e contratempos inerentes ao abastecimento do pessoal terá ideia aproximada quem se dispuser a figurar uma cidade de uns 5 mil
habitantes cuja subsistência fosse diariamente assegurada mediante providências diretas e exclusivas do prefeito e seus auxiliares imediatos.
Tal sucede na Via Anchieta.
Os preços das mercadorias pautam-se exatamente pela tabela oficial, que é a que vigora em Santos. Cada armazém é obrigado a afixá-la, para que o comprador confira o custo dos gêneros.
Esta tabela é periodicamente alterada, segundo as oscilações de preços ocorrentes no mercado, mantendo-se inteiramente atualizada.
Faz-se também o controle da observância da tabela, por intermédio de um fiscal idôneo, designado pelo DER. A fim de coibir qualquer fraude na pesagem dos mantimentos, tiveram os
engenheiros do DER a cautelosa iniciativa de instalar a alguns passos de cada armazém uma balança, aonde os trabalhadores, deixando a venda, vão, querendo, a conferir o peso das mercadorias compradas. O conferente de pesos é em geral um acidentado
ou convalescente, reaproveitado temporária ou definitivamente nesse serviço, em que não aplica senão muita atenção e escrúpulo. Os negociantes apanhados em infração de preços ou pesos são seriamente admoestados, sendo-lhes na reincidência
sumariamente fechadas as portas de seus armazéns.
Uma breve amostra da saudável severidade com que se exerce esta fiscalização e se obriga ao cumprimento de acordos para fornecimento de gêneros está em casos como o de um comerciante
que, a pesar seu, teve de vender pelo preço tabelado certo artigo que comprara em alta, e ainda num acordo feito com certo marchante. Este se comprometera a fornecer aos armazéns carne verde à razão de Cr$ 3,50 o quilo para ser revendida aos
trabalhadores a Cr$ 3,80, que é o preço em vigor. Em dado momento se desinteressara do negócio, alegando encarecimento do produto. Pediu dispensa. Não concordaram os engenheiros, considerando que a carne é elemento indispensável ao trabalhador
braçal e o seu consumo estava sendo sustentado unicamente por aquele fornecedor. O homem não teve outra saída senão honrar o acordo até o fim...
Assistência médica inteiramente gratuita - Em defesa do padrão sanitário de seus trabalhadores, o DER instalou no dorso da Serra dois hospitais: um especializado no tratamento da
malária e o outro, para clínica geral. Uma vez ajustado, é o operário examinado pelos médicos do Serviço de Malária, exame este destinado a averiguar se não se trata de um portador de impaludismo.
Com as medidas profiláticas postas em vigor, arrefeceu sensivelmente o surto malárico na região. E graças à eficácia do tratamento, não se verificou, desde o início das obras, nenhum
caso fatal.
Como nos dias de chuva, em que não trabalha e ganha a importância equivalente a cinco horas de serviço, percebe o trabalhador, nos casos de doença, paga igual. Estes auxílios ele os
recebe durante todo o período de tratamento, que é, ademais, inteiramente gratuito.
Os acidentados são prontamente hospitalizados, sendo as indenizações efetuadas de acordo com a lei. O seu reaproveitamento, quando se trata de acidentes que os incapacitem para o mesmo
serviço, faz-se em outras tarefas, para as quais estejam aptos. Aliás, este capítulo do trabalho jamais defrontou sérios problemas aos engenheiros do DER. Em vista da grande precaução e habilidade na execução das obras, reduzem-se ao mínimo as
possibilidades de risco, sendo raríssimos os acidentes graves.
Uma escola mantida por amor à instrução - Não descurando do bem-estar material, cuidam ainda os engenheiros de amparar as necessidades espirituais da não pequena população
infantil que se conta entre os trabalhadores e suas famílias. Assim, apoiaram entusiasticamente uma iniciativa dos empreiteiros, para se cotizarem no sentido de fundar e manter uma escola primária destinada às crianças da Via Anchieta. Foi assim
estabelecida a escola e contratada uma professora, cuja remuneração é assegurada pelo rateio mensal feito entre os empreiteiros, engenheiros e funcionários do DER, iniciando-se imediatamente as aulas.
No próximo ano letivo, deverá a escola funcionar numa sala especialmente construída no Alto da Serra, em local mais ou menos equidistante das casas dos alunos. De funcionamento regular,
observa o regime escolar em vigor no Estado, tanto que no dia em que lá esteve a reportagem da Agência Nacional - época de férias - achava-se fechada, para o regulamentar descanso semestral dos alunos e da professora.
É tal o interesse dos engenheiros pela alfabetização das crianças que tudo facilitam para que possam elas diariamente assistir às aulas. Além da condução que asseguram à professora,
muitas vezes, em dias de chuva, transportam nas suas camionetes alunos que moram em pontos mais retirados. Há outra circunstância demonstrativa desta notória boa vontade: é o seu esforço em empregar nas obras próximas à escola os chefes de família
com filhos ali matriculados.
Contam porém as crianças com outra unidade de ensino primário para a sua instrução. É o Grupo Escolar de Cubatão, a dois ou três quilômetros da Serra.
As autoridades do ensino, evidentemente, não deixarão de ponderar a conveniência de criação de novas unidades escolares nos acampamentos da Via Anchieta, hoje habitados por cerca de
cinco mil almas, entre trabalhadores, suas famílias e agregados.
O que hoje se faz ali nesse sentido é fruto de uma compreensão verdadeiramente humana e patriótica do dever de se valorizar a criança brasileira pela educação, qualquer que seja a sua
condição ou índole. |