"Há pouco mais de 30 anos o rio era cercado por vegetação
e possuía muitas espécies de peixe..."
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Rio Cubatão, passado e presente
1950: Tarde de verão. Um bando de garças procura pequenos
peixes nas margens do Rio Cubatão. Vários pássaros, como sabiás, sanhaços e curiós, cantam nas matas ao redor. Num barco
de madeira, o grupo de pescadores faz silêncio. Sabem que cardumes de robalo percorrem as águas salobras. Já fisgaram alguns utilizando iscas vivas.
O Sol começa a procurar o poente. O menino Cajé mergulha com seus amigos e é observado pelo garoto João, de 16 anos, que
também pesca com sua varinha. O quadro é de rara beleza: um reflexo dourado invade as águas e o cheiro forte de vegetação impregna o ar. O silêncio
só é quebrado pelo salto das tainhas ou pelas algazarras dos meninos.
1984: O cheiro de óleo é sentido por toda parte. A fumaça
impede até a completa visão do rio, já que ninguém mais se arrisca a percorrê-lo em embarcações. As margens estão negras, forradas por óleos e
outros poluentes. O barulho dos caminhões e das indústrias substitui o canto dos pássaros. Não há mais aves ou sequer vegetação nas margens. Nas
águas, o oxigênio é raro. O leito do rio é depósito de um verdadeiro coquetel de agentes químicos. Os peixes sumiram faz tempo. O
Rio Cubatão está morto. E pior: ainda leva a morte para além de sua foz.
Entre os anos 50 e os dias de hoje muita coisa mudou em Cubatão. Dos tempos das fartas
pescarias, dos bananais e dos pés de tangerina, resta pouco. O quadro agora é outro. Foram implantadas 24 indústrias, num
total de 111 unidades de produção. Surgiram e se extinguiram milhares de empregos. O pólo industrial foi de vital importância para o desenvolvimento
econômico da Baixada Santista.
Na esteira desse desenvolvimento surgiram, entretanto, diversos problemas,
principalmente de ordem social e ambiental. O desemprego que se seguiu à fase de implantação das fábricas originou o processo de ocupação dos morros
e mangues e os resultados são os deslizamentos na serra e a recente tragédia de Vila Socó, onde morreram, oficialmente, 93
pessoas.
Os danos ao meio-ambiente foram imensos: a morte da vegetação na Serra do Mar, os
altos índices de poluição na atmosfera resultaram em riscos incalculáveis à população. Os dez estados de alerta e o de emergência, decretados pelo
Governo, comprovam a destruição. Hoje, a Cetesb e os próprios industriais afirmam que não houve planejamento na implantação do pólo.
A poluição não é só da atmosfera. O solo e as águas também são seriamente atingidos. E
um dos termômetros da Cidade, o Rio Cubatão, mostra que o meio-ambiente vai muito mal. O rio está praticamente morto a partir do ponto em que recebe
os poluentes lançados pelas fábricas. As conseqüências? Toda a região é afetada por esta tragédia permanente.
Segunda-feira passada um desastre ecológico chocou toda a Baixada. Foram 550 toneladas
de óleo que vazaram da barcaça Gisela e contaminaram o já poluído estuário. Incêndio, pânico, prejuízos e peixes morrendo em vários pontos.
Os manguezais atingidos seriamente e os pescadores artesanais temerosos diante de um futuro cada vez mais negro. Literalmente negro.
No entanto, já nos perguntamos quantas toneladas de óleo e poluentes o Rio Cubatão
lançou e ainda lança no estuário? Num breve levantamento chega-se a números bastante elevados. Uma média mensal de 8 mil toneladas entre óleo, borra
de petróleo, graxas, fenóis, cromo, óxido de ferro, amônia, restos de estireno, água aquecida, entre outros.
A maior parte desta descarga acaba assentando no leito do Rio Cubatão. Fica depositada
no fundo lodoso, formando uma camada que torna proibitiva qualquer ação de dragas que venham a revolver o material que, uma vez em suspensão, pode
causar danos ainda desconhecidos em relação à extensão das áreas afetadas. Outra parte, entretanto, flui diretamente para o estuário através da foz
do rio, situada no Largo do Caneu.
O óxido de ferro produzido pela Cosipa, por exemplo, é
lançado junto à foz do Rio Cubatão e deságua diretamente no estuário. Trata-se da extinta fumaça vermelha que tanto revoltou a comunidade de Cubatão
e demais municípios da Baixada, pelo odor forte e mal-estar que provocava. A siderúrgica não lança mais o óxido de ferro pelas chaminés que expeliam
800 quilos do poluente. A filtragem faz com que o óxido caia num córrego interno e flua para o rio. A Cosipa produz 40 toneladas desse resíduo todos
os dias. Recentemente, a estatal anunciou que pretende encontrar um meio de reaproveitar o óxido de ferro, por se tratar de um mineral valioso.
Engenheiros do Setor de Controle Ambiental da RBPC
afirmaram que a refinaria ainda lança 9 mil metros cúbicos por hora, de efluentes líquidos não tratados no leito do Rio Cubatão. A unidade da
Petrobrás por outro lado, utiliza as águas do rio para sistemas de refrigeração. Para isso implantou, há anos, uma barragem que impede a penetração
de água salobra, o que prejudicaria seus equipamentos.
A Cosipa também utiliza água do Rio Cubatão para operações internas. Tanto que é
totalmente contrária a uma diminuição da vazão, que poderia acontecer caso boa parte das descargas contaminadas do Rio Tietê deixassem de ser
bombeadas para a Represa Billings. Como se sabe, metade das águas da Billings desce para o Rio Cubatão por tubulações existentes na Serra do Mar.
Antes, porém, produzem energia na Usina Henry Borden. Se diminui o despejo de esgoto, a vazão é reduzida e a água do mar
poderá atingir, vencendo a resistência da correnteza, o ponto de captação da Cosipa.
A água salgada afetaria então os equipamentos da siderúrgica. Com a atual vazão do Rio
Cubatão, garantida pelos despejos da Billings, a companhia não corre este risco. Metade do esgoto da Grande São Paulo, entretanto, continua sendo
lançada no estuário e, dali, para as praias, manguezais, costões e núcleos carentes fixados a nível do mar, como as favelas do Guarujá e Vicente de
Carvalho.
Como se constata, o Rio Cubatão ainda é uma das maiores fontes de poluição para toda a
Baixada Santista. Pelo seu leito, antes palco de pescarias e brincadeiras de crianças, correm agora agentes mortíferos cujas conseqüências são
verificadas todos os dias na região, principalmente pelos que dependem da pesca artesanal para sobreviverem.
"...agora suas margens vivem cobertas de óleo e em seu leito não há mais vida,
apenas produtos químicos"
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Um manancial, apesar de tudo
O Rio Cubatão é a prova de como o homem utiliza desrespeitosamente seus recursos
naturais. Antes de poluí-lo e matá-lo com quantidades e variedades não calculadas de agentes químicos, usa sua água para o consumo de quase um
milhão de pessoas. As cachoeiras que vemos quando descemos pela Via Anchieta são os mananciais que formam o rio.
Percorrendo o Caminho dos Pilões observamos o correr barulhento das límpidas águas que vão de encontro às pedras erodidas
do leito.
Naquele ponto, o Rio Cubatão corre livre da poluição ladeado pelos contrafortes da
Serra do Mar, cuja vegetação ainda resiste apesar das constantes investidas do homem predador que, a golpes de machado, derruba árvores centenárias.
Até chegarem à unidade de captação da Sabesp, as águas devem enfrentar uma nova ação destruidora: os ladrões de areia.
A inconseqüência do homem parece não ter limites. Destrói o que ele mesmo vai
consumir. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) proíbe a retirada de areia do leito de rios que são
utilizados como mananciais de abastecimento da população. Mas as investidas continuam. Quando não levam a areia do leito (de melhor qualidade para a
construção civil), extraem a das margens. Denunciando a irregularidade, o vereador Romeu Magalhães, do PDS, disse: "Como a lei proíbe exatamente a
retirada de areia do leito, eles tiram das margens, o que não consta na legislação".
Há até bem pouco tempo, dois imensos lixões estavam situados justamente nas margens do
Rio Cubatão, antes do ponto de captação da Sabesp, o que é um crime. Mas as águas ainda recebem esgoto das moradias próximas e também das
cotas, núcleos encravados nas encostas da Serra do Mar. Na unidade de captação da Sabesp, o líquido é tratado e distribuído
para Santos, São Vicente, Cubatão e parte de Praia Grande.
O superintendente regional da concessionária, Maurílio Mauriano, garante a boa qualidade da água.
Antes de receber as descargas de diversas indústrias, o Rio Cubatão ainda é piscoso.
No Caminho dos Pilões, na Ponte Preta e mesmo após a unidade de captação da Sabesp, encontram-se carás e outras espécies,
que constituem importante suplementação alimentar aos moradores de núcleos como o Pinhal do Miranda e as cotas. Aos
domingos, centenas de pessoas banham-se no trecho não poluído. O rio é utilizado até pouco depois de receber os dejetos da Billings. O presidente da
Câmara, Florivaldo de Oliveira Cajé, é um dos que pescam pequenos bagres naqueles trechos.
Caminho para a morte - Observando as águas límpidas do Caminho dos
Pilões, o correr barulhento junto às pedras, sentimos o impulso de dizer: "Não vá. A morte o espera". Dá vontade de
segurar o rio. Mas nada mais real e irreversível do que a correnteza. E lá vai o Rio Cubatão para morrer sufocado pelas toneladas de óleos, graxas,
cromo, óxidos etc. O que ele pode despejar no mar vai para o estuário e dali chega às praias. As substâncias mais pesadas ficam no seu leito, que
hoje é um túmulo a massacrar a consciência de alguns homens e a liberdade de todos nós.
Nas lembranças de menino de Cajé, Gigino e João Vieira, estão
as imagens das fartas pescarias e brincadeiras intermináveis nas tardes mornas de verão. Eles, que como tantos outros, viram o rio vivo e agora o
vêem morto. A maior tristeza, porém, é saber que seus filhos, e muito menos seus netos, nunca poderão desfrutar dos mesmos prazeres, das mesmas
alegrias, que todo o desenvolvimento tecnológico não conseguiu ou não quis preservar para as gerações. |