Carregadores da Bahia
Imagem: reprodução da página 198 do 2º volume da edição de
1941, da Cia. Editora Nacional
Capítulo XXIV
Cabo Frio
Alcançar o Norte brasileiro por mar não é tarefa difícil depois de 1839. No Rio de Janeiro, raramente se passam três dias sem que um vapor,
estrangeiro ou nacional, se dirija para a cidade da Bahia. Tomando-se um desses, em poucas horas estaremos em frente a Cabo Frio, cujas gigantescas
massas arredondadas de granito, assinalam o ponto onde a linha da costa inflete para o Norte, formando quase um ângulo reto.
Há alguns anos passados, a fragata inglesa Thetis de viagem para sua pátria no fim de um cruzeiro no Pacífico, naufragou em Cabo Frio. Este
navio, deixando o porto do Rio, onde tocara, encontrou mau tempo. Depois de lutar contra este, até que se presumisse que a costa estava bem visível,
continuou seu curso. A escuridão da noite era impenetrável e, estando o vento forte, o vapor corria oito ou dez nós por hora quando, sem a mais leve
noção ou apreensão do perigo da parte de qualquer dos tripulantes, lançou-se sobre esses escolhos de pedra.
Os oficiais e a tripulação, no choque e consternação do momento, tiveram unicamente tempo de se
transferirem para as partes contíguas do promontório, antes que a fragata despedaçada fosse ao fundo. Muitos dos que se achavam à bordo foram salvos
agarrando-se nas partes superiores da rocha, fora do alcance das ondas, onde, na mais forçada posição, foram obrigados a permanecer por toda uma
terrível noite.
Um bom farol foi depois disso construído em Cabo Frio, que presentemente torna a aproximação do navegante quase tão segura de noite como de dia.
Campos
Passamos o Rio Paraíba, a vinte milhas de cuja foz está a florescente cidade de Campos, antigamente chamada São Salvador. A vasta região que
circunda esta cidade é conhecida por Campos dos Goitacazes, do nome dos seus habitantes indígenas. É uma rica região do país e, por sua beleza, foi
comparada aos Campos Elíseos.
Campos está situada na margem Oeste do rio. A cidade tem ruas regulares e bem pavimentadas, com
algumas belas casas. Seu comércio é extenso, empregando um grande número de sumacas costeiras para exportar seu açúcar, sua aguardente, seu café e
seu arroz. O açúcar de Campos, dizem alguns, é o melhor do Brasil.
Litoral da Província do Espírito Santo
Não muitas léguas além da desembocadura do Paraíba, viajamos pela costa do Espírito Santo. Esta província compreende a antiga capitania do mesmo
nome, e parte da de Porto Seguro. Embora fosse este o trecho da costa descoberta por Cabral e colonizada pelos primeiros donatários, ainda assim é
apenas esparsamente habitado, e não recebeu os melhoramentos que se encontram em outros trechos.
Seu solo é fértil, e especialmente adaptado à cultura da cana-de-açúcar, juntamente com a maior
parte dos produtos tropicais. Suas florestas fornecem preciosas madeiras e úteis essências e suas águas são abundante em peixes preciosos. Há,
porém, ainda vastas regiões de seu território unicamente percorridas por tribos selvagens, que ainda fazem ocasionais incursões para a pilhagem dos
postos de colonização.
Foram recentemente realizados levantamentos nos rios Doce e S. Mateus, e pensam ser viável tornar
esses cursos navegáveis para pequenos vapores. Companhias organizadas tiveram estas empresas a seu cargo, e propuseram abrir novos e diretos meios
de transporte entre a costa e a província de Minas Gerais. Se essa empresa for bem-sucedida, será de grande importância, não somente para as
províncias do Espírito Santo e Minas Gerais, como também para a cidade da Bahia, para a qual grandes quantidades dos produtos exportados seriam
diretamente transportados.
Príncipe Maximiliano de Neuwied
A distância do Rio de Janeiro à Bahia é de cerca de oitocentas milhas. Não há nenhuma grande cidade ou porto florescente na
costa, nem uma simples estrada direta através do seu interior. O único autor que viajou por essa parte do Brasil por terra, foi o príncipe
Maximiliano de Neuwied. Poucos naturalistas demonstraram maior entusiasmo, e poucos viajantes mais perseverante empenho do que Sua Alteza, ao passar
por essas selvagens e incultas regiões [T81].
É difícil fazer uma ideia dos empecilhos, obstáculos e perigos que ele teve de vencer. Mas tal foi o interesse e o entusiasmo com que o príncipe
efetuou a sua viagem, que descreveu a sua situação, dizendo: "Embora dilacerado e maltratado
pelos espinhos, ensopado pelas chuvas, exausto pela incessante transpiração causada pelo calor, apesar de tudo isso o viajante se sente transportado
na contemplação de uma vegetação tão magnífica".
Suas viagens pelo Brasil se realizaram entre 1815 e 1818, e a opulenta e interessante obra em que
deu ao mundo os resultados das mesmas fornece-nos até a presente data a melhor narrativa que se possui dos cenários e dos habitantes desse trecho do
litoral do Brasil.
Nenhuma região do país foi menos agitada pelas revoluções da última metade do século. Sob o atual
regime, tem havido um progresso gradativo; todavia até 1839, toda a província do Espírito Santo não possuía uma única tipografia, e muitas de suas
igrejas, construídas pelos primeiros colonizadores, estão caindo em ruínas. Mas quando lemos as recentes estatísticas sobre educação, verificamos
que houve progressos, mesmo nesses sossegados recantos do mundo.
Em 1837, havia apenas sete escolas primárias na província; mas, em 1855, o ministro do Império
registra vinte e nove sustentadas pelo Tesouro Imperial, para não falar das que estão sob a direção das autoridades provinciais e da iniciativa
particular.
Vários melhoramentos internos se realizaram; e esperamos que não esteja muito longe o dia em que o Espírito Santo venha a ter bem cultivado o seu
fértil solo, tão bem adaptado ao café e à cana-de-açúcar.
Índios, origens e civilização
Frequente alusão temos feito às tribos aborígenes do Brasil. Sua história encheria muitos volumes. O mesmo interesse ligado aos Incas e aos assuntos
com eles relacionados, aos Montezumas e aos milhões que tinham em seu poder, não se liga às tribos ou nações que habitavam o Brasil na época de sua
descoberta. Os poucos remanescentes das antigas idades que foram descobertos no Norte são sem dúvida documentos do Império dos Incas a Leste dos
Andes.
Schoolcraft, o erudito e dedicado estudioso das antiguidades dos índios, mostrou, penso eu, claramente que o germe da civilização mexicana foi a
cultura do milho, que, para dar resultado em quantidades e qualidade exige, pelo menos por alguns meses, um trabalho continuado. Assim os antigos
mexicanos, mesmo que fossem nômades em certo período de tempo, deveriam ter sido chamados ao local de onde retiravam o seu principal sustento.
A falta de chuvas exigia esforços para irrigação artificial e para a construção de jardins
flutuantes sobre os lagos que adornam o grande Vale de Azteca. Estes não podiam ser abandonados sem o maior dos sacrifícios, e assim se gerou
insensivelmente uma comunidade — uma colonização. Se a história primitiva da grande nação peruana, que contava com três vezes a população do México,
pudesse ser conhecida, encontraríamos sem dúvida que a sua civilização originou-se dos esforços para o alimento tirado do cultivo do litoral do
Pacífico, árido e sem chuva, valendo-se da irrigação artificial.
Quando se lhe desenvolveu a força do espírito e do saber, puderam forçar a passagem até uma região
mais favorecida, rechaçando outras tribos. Assim, com o tempo, estenderam as suas conquistas, sua relativa civilização e sua religião Sabeana por um
território compreendendo a região que vai da costa ocidental do Pacífico até as vertentes orientais dos Andes, e do Equador até Valparaíso.
As tribos do Brasil, no entanto, devido à irrigação natural e aos produtos espontâneos das suas florestas e planícies, não tiveram motivos para
desenvolver esse esforço mental pela existência, que muitas vezes resulta em civilização. Não foram colonizados; nem eram habitual e totalmente
nômades, tendo cada tribo certos limites, onde permaneciam até que daí fossem expulsos por uma força superior.
Certas fibras (plantago), a banana, o cajueiro, o inhame e sobretudo a mandioca, e mais de
duzentas espécies de palmeiras, forneceram-lhes alimento, bebida e roupa. A pequena cultura a que se davam era a da raiz da mandioca, que, plantada
no terreno roçado, cresce entre os troncos e raízes das árvores sem maior cultivo.
A mais generosa dádiva, porém que a benigna providência concedeu ao Brasil foi a palmeira. O viajante nas províncias interiores e no litoral, longe
das cidades, é surpreendido pela grande aplicação desse "Monarca do Reino Vegetal" para as necessidades do homem.
E se um monarca representa um papel tão importante na vida pública dos europeus e seus
descendentes, sua alteza tomou e continua a tomar parte em toda a atividade da casa e do campo entre os aborígenes do Brasil. Ainda hoje, fornece a
casa dos índios amazonenses, roupa, alimento, bebida, sal, instrumentos de pesca, utensílios de caça e instrumentos musicais, e quase todo o
necessário à vida, exceto a carne.
Tomemos por exemplo a cabana de um índio Uaupé, num dos afluentes do Rio Negro. As estacas são
fornecidas pela reta e uniforme palmeira denominada Leopoldina pulchra; o teto é composto das folhas da palmeira Caraná; as portas e
madeiramento dos caules rachados da Iriartea exhoriza.
A enorme casca que cresce por baixo dos frutos de uma outra espécie de palmeiras é algumas vezes
usada como uma espécie de avental. A rede do índio, a corda do arco, e suas linhas de pesca são tecidas e trançadas com as partes fibrosas de
diferentes palmeiras. O pente, com que as mulheres de algumas das tribos adornam suas cabeças, é feito da madeira dura de uma palmeira; e os anzóis
de peixe são feitos dos espinhos da mesma planta.
O índio faz das espatas fibrosas da Manicaria saccifera, gorros para suas cabeça, ou pano em
que enrola os seus mais ricos ornamentos de penas. De oito espécies pode obter líquidos intoxicantes; de muitas outras mais (não incluindo o
coqueiro, encontrado no litoral) retira óleos e colhe frutos; e de uma delas (Jará assú) obtém, queimando os grandes cachos dos pequenos
coquinhos, um substituto para o sal. Com outra, ele forma um cilindro para comprimir a polpa da mandioca, porque resiste por muito tempo à ação do
sumo venenoso.
As grandes espatas lenhosas da Maximiliana regia são "usadas
pelos caçadores para cozinhar carne, porquanto, cheias d'água, sustentam o fogo" (Wallace).
Essas espatas são também empregadas para carregar terra, e algumas vezes como berços. As flechas são feitas das protuberâncias espinhosas da Patavá,
e as lanças e os pesados arpões são feitos da Iriatea ventricosa; os longos canudos de soprar pelos quais os índios enviam as flechas
envenenadas que abatem os pássaros, os intrépidos javalis, e mesmo as antas de pele espessa, são fornecidos pela palmeira Setigera: os grandes
instrumentos musicais semelhando um fagote, usados na demonolatria dos uaupés, são também feitos de caules de palmeiras.
Poder-se-ia supor que um povo, assim suprido de quase todas as necessidades da vida, teria demonstrado boas maneiras e docilidade, e figurado entre
os mais pacíficos dos habitantes do Novo Mundo. Pelo contrário, os aborígenes do Brasil foram um povo guerreiro e feroz, ignorantes das artes da
paz, do mais vingativo e sanguinário caráter. Muitas dessas tribos eram canibais; umas comiam seus inimigos em grandes cerimônias; outras faziam
guerra com o fim de obter alimento humano; e outras ainda devoravam seus parentes e amigos como uma prova de honra e distinguida consideração.
Até o dia de hoje, no remoto interior, nas águas superiores do Amazonas, existem, em estado tão
selvagem como quando a América do Sul foi descoberta, tribos, cujas propensões antropófagas são tão completamente toleradas como se os europeus
nunca tivessem colocado os pés no continente.
Estaríamos inclinados a não acreditar nas narrações de todos os primitivos navegadores que tocaram
na costa brasileira, a respeito do canibalismo de seus naturais, se este não fosse inteiramente confirmado em nossos dias a quarenta dias de viagem
(na velocidade comum dos viajantes) da foz do Amazonas ao rio Purus, onde se encontram os Catauixis, e perto deles outras tribos de índios que,
escreve Wallace (perfeito e fidedigno explorador), "são canibais, matando e comendo índios de
outras tribos, e conservando a carne assim obtida fumegada e seca".
Até quanto se pode saber, havia mais de cem diferentes tribos habitando o Brasil na época da descoberta da América do Sul. A grande maioria dessas
tribos pertenciam a uma só raça, e eram chamados no litoral, Tupi, Tupinaki, Tupinambi, ou qualquer coisa semelhante, de modo que forme um composto
da raiz Tup.
No Sul, nas cabeceiras do Prata, eram chamados Guarani. Estavam localizados de maneira curiosa,
habitando uma estreita faixa ao longo de todo o litoral, desde a foz do Amazonas até a atual província de São Paulo. Daqui se estendiam para o
interior até o Paraguai, e subindo as suas águas através das regiões em que se entrelaçam as nascentes do Prata e do Amazonas, donde se suspeita
tivessem eles se originado; daí serem encontrados no Mamoré(?), Madeira, Tapajós e outros rios, abaixo do Amazonas até a grande ilha de Marajó.
Este povo fala com efeito a mesma língua, denominada pelo dr. Latham
[T82] em seu tratado
sobre as línguas do Amazonas, tupi-guarani. Este culto filólogo diz que ao Norte até o Equador, e ao Sul até Buenos Aires, a língua
tupi-guarani era encontrada. Presentemente, existem, cercadas por essa raça amplamente espalhada, numerosas tribos de outros aborígenes, que falam
línguas totalmente distintas e diferentes.
Essas tribos diferentes, conforme asseguraram os jesuítas e os mercadores, compreendem, até certo
ponto, a língua tupi-guarani, embora sua própria língua fosse tão diferente que é raro possuírem uma palavra em comum. Os sacerdotes, os mercadores
e os caçadores de escravos seguiam suas rotas através estas tribos e, cada um, em sua missão totalmente diferente, ajudava a formação de uma forma
notável de linguagem, que foi chamada Língua Geral ou Língua Franca, que servia de veículo comum de comunicação, desde o Orinoco até o Prata, entre
povos cujas línguas permanecem desconhecidas.
O mercador, o explorador científico e o funcionário do Governo brasileiro, até
hoje, mantêm comunicação com os selvagens do Japurá, do Paraná, do Xingu e do Araguaia, por meio da Língua Geral. A base desta, como já dissemos, é
a língua guarani ou tupi-guarani [A57].
Estas tribos envolvidas pelos tupis, algumas vezes, embora raramente, conseguem alcançar a costa.
Assim, os Aimorés, tribo canibal que adquiriu tão terrível celebridade, apareceu no litoral muito tempo depois da descoberta do Brasil. As tribos da
costa respeitam-nos com horror, e consideram-nos seres irracionais, ignorantes da construção de cabanas e da arte de adornar os corpos com a rica
plumagem do papagaio e da arara de vivas cores.
Tinham uma característica ainda mais distinta, que consistia num irresistível medo da água, que os
impedia de perseguir os inimigos quando estes nadavam num rio ou precipitavam-se num lago.
Assaltaram Porto Seguro e Ilhéus com tal ferocidade que Bellegarde diz que o trabalho cessou em
todas as plantações por falta de trabalhadores mandados a combatê-los. Foram depois desbaratados e quase todos dispersados, e apenas permaneceram
como seus descendentes os Botocudos, algumas centenas dos quais - pacificamente agora - ainda erram pelas margens dos rios Doce e Belmonte. Esses
índios, como muitos dos selvagens da América do Sul, usam os mais absurdos ornamentos de madeira leve (aloe) que eles com prazer botam e
tiram das fendas que praticam nas orelhas e nos lábios.
Mas uma pergunta naturalmente surge: Que é feito das numerosas tribos que habitavam o litoral e as províncias onde atualmente domina uma população
civilizada? Onde estão os tupi-guaranis?
Muitos erram pelas remotas partes do Império; os vícios e as doenças da Europa, assim como a guerra
e a marcha da civilização, varreram-nos de suas antigas posições. O Guarani do Sul do Brasil, sob a direção dos jesuítas, alcançaram um certo grau
de adiantamento; mas o desumano caçador de escravos português, que prosseguiu no seu caminho até a Bolívia, com mãos implacáveis, dissolveu as
missões e conduziu os índios ao cativeiro, sucumbindo estes debaixo das ordens dos seus cruéis senhores.
Dos tupinambás e dos tamoios, que habitavam as atuais províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais,
aqueles foram exterminados, e estes foram tão constantemente combatidos e destroçados na guerra pelos colonos que, embora por muito tempo
faltando-lhes a unidade, foram finalmente persuadidos, pela eloquência de um influente e eminente chefe (Japi Assú — um segundo Orgetorix) a
emigrarem para o distante Norte, a mais de três mil milhas de suas antigas habitações, e estabeleceram-se na margem Sul do Amazonas, desde a sua
confluência com o Madeira, em vários pontos, e descendo-o até à ilha de Marajó.
Seus descendentes são encontrados atualmente na região que fica entre o Tapajós e o Madeira, entre
os lagos e canais da grande ilha dos tupinambás. São atualmente chamados os mandurucus, — os índios mais guerreiros da América do Sul. Vivem
em vilas, em cada uma das quais existe uma como que fortaleza onde todos os homens dormem à noite. Essa construção é adornada interiormente com as
cabeças dissecadas de seus inimigos, enfeitadas de penas. Esses medonhos ornamentos têm as feições e os cabelos muito bem conservados.
As tribos existentes, em suas maneiras e costumes, são estreitamente aliadas ao nosso índio norte-americano, mas com essa diferença: que os
selvagens, ao Sul do Equador, foram todos encontrados não possuindo absolutamente qualquer ideia religiosa. Nenhum deles, quando pela primeira vez
visitados, parecia ter a mais fraca concepção do Grande Espírito, que caracteriza tão admiravelmente a teologia simples dos aborígenes do
Mississippi e do São Lourenço. Tentativas para civilizá-los têm falhado, salvo quando são recolhidos em estado de menoridade, como o foram pelos
jesuítas, ou sob a rígida disciplina do exército brasileiro.
O etnologista curioso encontrará, nas tribos das águas do Alto Amazonas, o homem vermelho ainda não tocado pela civilização. Wallace — que andou por
alguns anos entre esses filhos das selvas — nos tem dado muita informação a respeito deles, e diz que um dos fatos singulares, relacionados com
esses índios, é a semelhança que existe entre alguns de seus costumes e os das nações mais distanciadas deles.
Assim, a gravatana ou canudo de soprar, reaparece nos sumpitan de Bornéu; as grandes
casas dos Uaupés e Mandurucus assemelham-se estreitamente as do Dyaks da mesma região; e muitos tipos de pequenas cestas e caixas de bambu de Bornéu
e Nova Guiné são tão semelhantes, em sua forma e construção, às dos índios amazonenses, que se poderia supor pertencerem a tribos vizinhas.
Assim, também, os Mandurucus, como os Dyaks, guardam as cabeças de seus inimigos fumegadas e secas
com igual cuidado, conservando inteiros os cabelos e a pele e pendurando-as em volta de suas casas. Na Austrália é usado o pau de atirar (throwing-stick)
pois, num dos remotos afluentes do Amazonas (o Purus) vemos uma tribo de índios (os Purupurus) diferindo de todas as outras em redor, por substituir
o arco por uma arma tão somente encontrada numa região tão remota da terra, entre um povo tão distinto deles em quase todas as suas características
físicas.
O total da população indígena é desconhecido, e há apenas cerca de dezenove mil catequizados ou índios cristãos, registrados pelo ministro do
Império.
Os Abrolhos
Na rota marítima do Rio até a Bahia, há quatro pequenas ilhas, chamadas os Abrolhos, ("Abra os olhos") que são perigosas proeminências de uma orla
de rochedos, que se mostram entre os 17º e 25º de latitude Sul, a uma distância de duas a dez léguas do continente.
Além destas, há também um regular recife de rochas correndo bem perto da costa, e geralmente
paralelo a esta, ao longo de toda a costa do Cabo Frio ao Maranhão. Espírito Santo, Porto Seguro, Ilhéus e, na verdade, quase todos os portos ao
longo da costa, são formados por aberturas através desse recife.
Vista geral da Bahia
Imagem: reprodução da página 199 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
A cidade da Bahia
Depois de três ou quatro dias de viagem, a ponta inferior da Ilha de Itaparica, com suas numerosas palmeiras, aparece no horizonte e, apenas por um
curto espaço de tempo, surge diante dos olhos escondendo o perfil das abóbadas brancas e das torres das igrejas de São Salvador, da Bahia, a segunda
cidade do Império.
Chegado o vapor fui, por gentileza do sr. Nobre, o guarda-mor, imediatamente levado para a costa no seu escaler oficial. Os muros de uma fortaleza
circular que se ergue do fundo das águas, construído pelos holandeses, levantam as suas carrancas sobre a embarcação; enquanto as fortalezas dos
morros dominam o porto e toda a cidade.
Desembarcando na Alfândega, passei pela cidade baixa, com suas ruas estreitas (em alguns trechos existe apenas uma) correndo paralelas com a praia.
Ao longo da Rua da Praia estão localizados a Alfândega e o Consulado, pelo qual todos os produtos da região devem passar previamente para serem
exportados. Alguns dos trapiches vizinhos são de uma imensa extensão, e dizem figurar entre os maiores do mundo.
Em redor dos desembarcadouros, centenas de canoas, lanchas e várias outras pequenas embarcações, descarregam suas cargas de frutos e produtos. Em
uma parte da praia está uma larga abertura, que é usada como praça do mercado. Perto deste, um belo e moderno edifício espaçoso foi construído para
uma Bolsa. Está bem suprido de jornais de todas as partes do mundo, e ocupa ótima posição. As principais casas comerciais, situadas na Rua Nova do
Comércio, compõem o mais belo bloco de edifícios do Brasil — talvez de toda a América do Sul. Estes edifícios poderiam adornar os bairros comerciais
de Londres, Paris ou Nova York.
A cidade baixa não foi calculada para causar uma favorável impressão no estrangeiro. Os altos edifícios são quase todos velhos, embora geralmente
apresentando alegres fachadas. As ruas nesse bairro são muito estreitas, desiguais e mal pavimentadas, e por vezes tão imundas como as de Nova York.
Estão repletas de mendigos e carregadores de todas as espécies.
Aqui ficamos informados de uma das peculiaridades da Bahia. Devido às irregularidades de seu
terreno e a forte declividade que separa a cidade alta da baixa, não é possível o uso de carruagens de rodas. Nem mesmo um carro ou carretazinha é
vista destinada a remover cargas de um lugar para outro. Tudo que requer troca de lugar em todo o comércio e negócios comuns deste porto de mar — e
é o segundo em tamanho e importância na América do Sul — deve ser na cabeça e nos ombros dos homens. As cargas são aqui mais comumente carregadas
nos ombros, visto que a principal exportação da cidade é açúcar em caixas e algodão em fardos, que é impossível carregar na cabeça como sacas de
café.
Grandes quantidades de negros altos e atléticos são vistos movendo-se em pares ou bandos de quatro, seis ou oito, com suas cargas suspensas entre
eles por fortes varapaus. A maioria deles é vista sentada em tais varapaus, trançando palha, ou dormindo deitados nos becos e nas esquinas das ruas,
lembrando negras serpentes enroladas à luz do sol. Os dorminhocos têm geralmente alguma sentinela pronta para chamá-los quando se precisa dos seus
serviços, e ao sinal dado, levantam-se como o elefante para a sua tarefa.
Como os carregadores de café do Rio, eles muitas vezes cantam e gritam quando andam; mas o seu modo
de andar é necessariamente lento e medido, semelhando antes a uma marcha fúnebre do que o duplo passo apressado dos seus colegas fluminenses. Outra
classe de negros se ocupa em carregar passageiros numa espécie de assento tipo sedan denominado "cadeira".
É em verdade um trabalho penoso e algumas vezes perigoso para uma pessoa branca subir a pé as encostas íngremes onde fica a cidade alta, mormente
quando os poderosos raios de sol estão dardejando, sem dó, sobre a cabeça. Nenhum ônibus ou cabriolé se encontra para fazer o serviço.
De acordo com este estado de coisa, o transeunte encontra perto de cada esquina ou ponto de maior
frequência, uma longa fileira de cadeiras acortinadas, cujos portadores, de chapéu na mão, aglomeram-se apressados em volta dele, embora sem a
desfaçatez dos condutores de carros da América do Norte, dizendo: "Quer cadeira, sr.?" Depois que fez a sua escolha e sentou-se à vontade, os
condutores levantam a sua carga e marcham, aparentemente tão satisfeitos pela oportunidade de carregar um passageiro, como este com a sorte de ser
carregado.
Ter uma ou duas cadeiras, e negros para levá-las, é tão necessário a uma família na Bahia, como ter
carruagens e cavalos em outro qualquer lugar. O trajo dos condutores, e o grande custo das cortinas e ornamentos das cadeiras, indicam a categoria e
o tom da família que os possui.
Provavelmente se encontrará uma altiva crioula negra Mina, que se gaba de ser chamada pelo nome de baiana. Seu turbante, seu xale, seus ornamentos e
seu passo elástico sobre chinelas de salto, mostram uma graça nativa inatingível pela moda moderna.
Sinto não ter nenhum desenho da Bahia tirado de bordo — pois deste ponto a cidade parece verdadeiramente magnífica em suas proporções; mas
a grande gravura, feita de um daguerreótipo, dá essa vista da metrópole religiosa do Brasil, estendendo-se em seus morros
em forma de terraços em torno de Monserrate.
A subida íngreme em que vemos os condutores de cadeiras, é a mesma que Henry
Martyn [T83]
subiu em 1805, tão pitorescamente descrita no diário que foi incorporado às páginas da sua biografia. A cidade baixa, com exceção da Rua Nova do
Comércio, mudou muito pouco desde a visita desse devotado missionário.
Algumas das ruas que ligam as cidades altas e baixas sofrem um curso em zigue-zague ao longo das escarpas, outras cortam elevações quase verticais
para evitar, tanto quanto possível, a sua forte declividade. Nem mesmo no alto dessas colunas a superfície é plana. Nem mesmo Roma pode gabar-se de
tantos morros como os que aqui se acham reunidos, formando o recinto da Bahia. Sua extensão entre seus limites extremos — Rio Vermelho e Monserrate
— é de cerca de seis milhas.
A cidade não é em parte alguma larga, e na maior parte é composta apenas de duas outras ruas
principais. A direção destas ruas muda com as várias voltas e os ângulos necessários para não abandonar o alto do promontório. Intervalos frequentes
entre as casas construídas ao longo da parte mais alta permitem ver a mais pitoresca vista da baía, de um lado, e do interior do outro.
O aspecto da cidade é antigo. Grandes somas têm sido gastas no seu calçamento — porém tendo mais em
vista conservar as ruas contra os danos das chuvas, do que fornecer estradas para qualquer gênero de carruagem. Aqui e ali podem ser vistas antigas
fontes de cantaria, situados num vale de maior ou menor profundidade, para servir de ponto de captação para as águas que descem morro abaixo; mas em
parte alguma se vê um aqueduto importante, se bem que recentes obras hidráulicas, com motores a vapor fabricados na França, tenham sido realizadas
do lado Leste do Noviciado, que permitirá um benéfico suprimento de água potável para a cidade alta.
Contemplando a Bahia vista do teatro (o grande edifício no alto da esplanada) somos levados aos mais primitivos tempos da história colonial do
Brasil. O antigo forte arredondado no meio das ondas é um episódio do breve poderio da Holanda nessa porção da América, construção sobre a qual o
tempo não fez grandes alterações.
Negra baiana
Imagem: reprodução da página 201 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Baía de Todos os Santos
A Baía de Todos os Santos foi descoberta em 1503 por Americus Vespucius, que estava então viajando sob o patrocínio do rei de Portugal, d. Manoel.
Em 1510, um navio sob o comando de Diogo Alvares Corrêa naufragou perto da entrada dessa baía. Os Tupinambás, que habitavam a costa, caíram sobre
ele e destruíram todos os sobreviventes do naufrágio, exceto o capitão do navio.
Os índios pouparam Diogo — provavelmente, como alguns supõem, por causa da sua
atividade em ajudar-lhes a salvar objetos no naufrágio. Teve a boa fortuna de obter um mosquete e alguns barris de pólvora e balas. Aproveitou logo
uma ocasião para atirar num pássaro, e os índios, terrificados pela explosão, não menos que por seus efeitos, chamaram-no então "Caramuru", o "homem
do fogo".
Obteve então o favor deles, assegurando-lhes que, embora fosse um terror para seus inimigos, podia ser um valioso auxiliar para seus amigos. De
acordo com isso, acompanhou os tupinambás numa expedição contra uma tribo vizinha com que estavam em guerra. A primeira descarga do mosquete de
Caramuru garantiu-lhe a posse do campo inimigo, e seus adversários, atemorizados, desapareceram para sempre.
Pouco mais foi necessário para assegurar-lhe uma perfeita supremacia entre os indígenas. Como prova disto, foi logo felicitado com propostas de
vários chefes, que lhe ofereceram suas filhas em casamento. Diogo escolheu Paraguaçu, filha do principal chefe Itaparica, cujo nome foi perpetuado
na designação da grande ilha em frente da cidade, sendo que o de Paraguaçu, a noiva, foi dado a um dos rios que deságuam na baía.
Construiu um povoado a que denominou São Salvador
[A58], em sinal de
gratidão por se ter salvo do naufrágio. Essa colônia foi localizada no lugar denominado Graça, no Morro da Vitória, subúrbio da cidade, também às
vezes chamado Vila Velha.
Lenda do Caramuru
Passados alguns anos, um vapor vindo da Normandia ancorou em frente da cidade de Caramuru e entrou em comunicação com a costa. Diogo resolveu voltar
à Europa; e tendo carregado o navio, embarcou para Dieppe e Lisboa. Os franceses, todavia, não permitiram que o fizesse e preferiram fazer dele um
herói na sua capital. Paraguaçu foi a primeira índia que apareceu em Paris. Uma esplêndida festa foi dada por ocasião do seu batismo, quando foi
batizada como Catarina Alvares, por causa da rainha Catarina de Medicis. O rei Henrique II, acompanhado de sua real esposa, funcionou na ocasião
como padrinho e fiador.
O governo francês contratou com Caramuru mandar navios que o levariam ao seu país de adoção, e
voltariam com pau-brasil e outros artigos, que seriam dados em troca de mantimentos e enfeites. Ao mesmo tempo, fiel à sua intenção primitiva, Diogo
Alvares procurou informar a d. João III, de Portugal, da importância de colonizar a Bahia. Um jovem português, que justamente terminara seus estudos
em Paris e voltava a Portugal, foi o portador de sua mensagem. Este jovem (Pedro Fernandes Sardinha) tornou-se depois bispo da Bahia.
Os nativos regozijaram-se com a volta de Caramuru, e sua colônia agora aumentara rapidamente e estendia a sua influência em todas as direções.
Por esse tempo, o rei de Portugal melhor garantiu a colonização do Brasil; dividiu o país em doze capitanias, cada qual com cinquenta léguas de
extensão na costa, e sem limite para o interior. Cada capitania foi concedida a um donatário, cujo poder e autoridade eram absolutos. Francisco
Pereira Coutinho, que veio a tomar posse da Bahia, era um homem arrojado e arbitrário em extremo. Tornou-se invejoso da influência de Diogo Alvares,
e começou a persegui-lo e oprimi-lo, e finalmente mandou-o para bordo de um vapor como prisioneiro.
Este procedimento exasperou os índios, que combinaram uma vingança. Atacaram a colônia e mataram Coutinho. Diogo Alvares foi novamente restabelecido
na sua primitiva supremacia.
A crescente importância do país, juntamente com rumores de violências praticadas pelos donatários, levou d. João III a nomear um governador geral do
Brasil, para residir em São Salvador e ter jurisprudência sobre todos os donatários.
Em 1549, Tomé de Souza, o primeiro governador geral, desembarcou com cerimônias militares em Vila Velha, mas, passado um mês, tratou de escolher
outro lugar para o começo de suas operações. Foi esse no atual local da Catedral, do Palácio do Governo e outros edifícios públicos.
Caramuru era agora um ancião, mas foi de grande valia para o governador geral concluir com os nativos um tratado de paz. Em quatro meses, cem casas
foram construídas, e várias plantações de açúcar foram fundadas nos arredores.
Depois disso, a cidade de São Salvador, tendo sido feita capital da América Portuguesa, e permanecendo sob o patrocínio direto da mãe-pátria,
aumentou em tamanho e importância.
Igreja visitada por Henry Martyn
Imagem: reprodução da página 212 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Ataque dos holandeses
O ano de 1624 testemunhou as primeiras depredações dos holandeses sobre a então tranquila e próspera cidade da Bahia. Sem a menor notícia de
provocação, uma frota da Holanda entrou no porto, atacou a cidade, queimou as embarcações e desembarcou homens para tomar a fortaleza de Santo
Antônio e, depois de alguma luta, tomou posse da cidade. Esta, saquearam, nem mesmo poupando as igrejas. Os ocupantes erigiram imediatamente
fortificações adicionais e construíram muitas casas novas. Aprisionaram todos os navios portugueses e espanhóis que chegavam ao porto, não sabendo
que a cidade mudara de chefes.
Portugal era nessa época tributário da Espanha. As notícias da perda da Bahia causaram grande consternação em Madrid, tanto mais tendo em vista que
fora divulgado que os ingleses estavam prestes a unir as suas forças com os holandeses e proclamar o Eleitor Palatino Rei do Brasil.
A corte espanhola adotou medidas dignas de sua superstição e seu poder. Foram despachadas
instruções aos governadores de Portugal, pedindo-lhes para examinar os crimes que provocaram essa visita da vingança divina, e puni-los
imediatamente. Foram ordenadas novenas em todo o reino; e algumas ladainhas e orações, compostas para a ocasião, foram ditas depois da missa. De
nove em nove dias haveria uma solene procissão do povo em todas as cidades e vilas, e dos monges em todos os conventos. O sacramento foi exposto em
todas as igrejas de Lisboa, e cem mil coroas foram oferecidas nessa cidade para ajudar o governo a recuperar São Salvador.
Uma grande frota marítima, de quarenta navios, carregando oito mil soldados, viajou sob as ordens de d. Fradique de Toledo e d. Manoel de Menezes, a
qual, em março de 1625, apareceu diante da Bahia; depois de alguma demora, cujo objetivo era saber se os holandeses tinham recebido reforços, d.
Fradique, satisfeito por saber que não, entrou no porto com trombetas soando flâmulas ao vento, e os navios prontos para a ação.
Também os navios holandeses, as muralhas e os fortes, foram enfeitados, com suas bandeiras e
flâmulas içadas, para receber amigos ou desafiar inimigos, quaisquer que fossem os recém-chegados. A cidade fora fortificada com grande cuidado,
segundo os melhores princípios da engenharia — uma ciência, na qual nenhum povo tinha nesta época tanta experiência como os holandeses. Estava
defendida por noventa e duas peças de artilharia, e do novo forte construído na praia atiravam balas candentes.
Depois de uma severa escaramuça, os holandeses, tendo esperado em vão pela frota da Holanda, propuseram uma capitulação, que foi aceita.
Os holandeses tentaram retomar a cidade em 1638, chefiados pelo conde Mauricio de Nassau, que estava então de posse de Pernambuco e de uma grande
parte da costa adjacente. Foram repetidamente derrotados na Bahia, mas foram bem-sucedidos algum tempo em outros pontos.
O primitivo ataque, da parte dos holandeses, resultou de motivos puramente mercenários. Foi planejado e executado sob os auspícios da célebre
Companhia das Índias Ocidentais. Bem sucedidos, a princípio, os holandeses não se contentaram em saquear os habitantes, mas determinaram fazer seu o
próprio solo. Suas invasões foram resolutamente rechaçadas pelos portugueses, e a guerra, em diferentes épocas, estendeu-se por toda a costa da
Bahia ao Maranhão.
Em 1636, o conde Mauricio de Nassau foi enviado para assumir o comando das tropas e governar o novo império. Sob sua direção, ativas medidas foram
postas em execução; fortes, cidades e palácios foram construídos, e o país foi explorado em busca de minas. A agricultura foi tentada com mão forte,
e é fácil imaginar que mudanças teriam sido introduzidas nessas férteis regiões pelos industriosos holandeses, não tivesse o destino da guerra lhes
sido contrário. Nos terrenos baixos, nos pântanos e nos cursos que circundam a cidade de Pernambuco, eles teriam sobretudo triunfado.
Mas os brasileiros, sob seus vigilantes chefes, Camarão, Henrique Dias (aquele um índio, este um negro), Souto e Vieira, mantiveram tão incessantes
ataques contra os holandeses que, por fim, em 1654, foram estes expulsos de Pernambuco e, em 1661, abandonaram, por negociações, todas as pretensões
ao Brasil.
É interessante pensar que, quaisquer motivos que pudessem ter incitado os holandeses comerciais a atacar o Brasil, os cristãos desse pequeno e bravo
país protestante não se descuidaram em seguir os colonizadores; e daí, em Pernambuco e vizinhanças, terem sido estabelecidas estações missionárias
fiéis e, quando os holandeses foram finalmente expulsos do país, alguns dos sacerdotes vieram para Nova Amsterdã, e um deles foi o primeiro pastor
da Igreja Reformada Holandesa fundada em Flatbush, Long Island.
Depois de então, os holandeses cessaram os seus ataques à Bahia; esta cidade cresceu em riqueza e prosperidade e foi a sede do vice-reinado até
1763, data em que foi transferida para o Rio de Janeiro.
A posição da Bahia, em frente da costa da África, fez com que ela fosse desde os primeiros tempos, um importante ponto de reunião para os que se
empenhavam no comércio de escravos. As ideias ofensivas, presentemente associadas com o tráfico entre todas as nações instruídas, estão
extraordinariamente em contraste com a aparência de filantropia sob a qual foi originariamente empreendida. Que digna empresa, mandar navios
resgatar os pobres pagãos cativos e trazê-los onde possam ser cristianizados pelo batismo e, ao mesmo tempo, emprestar uma ajuda aos que tiveram a
bondade de comprá-los, tirando-os do cativeiro pagão para levá-los a um país cristão! Expressivo de tais ideias, o benigno título pelo qual a compra
e venda de seres humanos era conhecido durante os séculos 17 e 18, comércio para o resgate de escravos.
A Bahia aumentou em população e riqueza, e em 1808 sua prosperidade foi mais aumentada ainda pela Carta Régia, que abriu os portos do Brasil ao
mundo.
Esta cidade foi a última a permanecer fiel a Portugal, pois, embora a independência do Império fosse declarada em setembro de 1822, unicamente em
julho de 1823, e depois de muita luta, foi que o exército português evacuou São Salvador da Bahia. A rebelião de 1837 foi extremamente horrível mas
o Governo Imperial obteve finalmente a vitória, e desde esse dia a Bahia continuou pacífica, fazendo rápidos progressos.
Capital espiritual do país
Não acredito que haja qualquer cidade no Brasil que interesse tanto o estrangeiro como a Bahia. É a capital espiritual do país, sendo a residência
do arcebispo. As igrejas, os conventos e outros edifícios públicos, são de grandes proporções, porém apresentam aspecto provinciano. O povo é alegre
e sociável e, nas minhas extensas viagens por todo o Império, não encontrei em lugar nenhum uma sociedade igual à da Bahia.
Na casa do cônsul americano, sr. Gillmer, está-se sempre seguro de encontrar brasileiros dos mais
refinados e bem-educados. Esse cavalheiro é um dos poucos cônsules americanos que, pelo conhecimento da língua da terra em que reside, pela
sociabilidade de caráter e facilidade de maneiras, e pelo orgulho do seu país, representa devidamente uma grande nação.
O sr. Gillmer residia há muito na Bahia e, por suas excelentes qualidades, ganhou o coração dos
brasileiros. As semanas passadas em sua agradável família deram-me uma oportunidade para fazer muitas relações entre os cidadãos da Bahia e dos
estrangeiros residentes nesta cidade.
A residência do sr. Gillmer está situada num agradável ponto da cidade, onde a vegetação e as
flores são abundantes. Cada noite as brisas carregam os mais suaves perfumes, e cada manhã o sol parece revelar novas belezas nos botões que se
abrem em lindas flores. Da mesma forma, a casa do sr. Nobre era circundada pela sombra de árvores frutíferas, e seu grande salão semanalmente se
enchia de músicos amadores e profissionais, que davam os mais encantadores saraus musicais.
Muito cedo de manhã, olhei da janela da casa do cônsul e vi sobre os ramos de uma árvore de fruta-pão embaixo de mim, um beija-flor quietamente em
seu delicado ninho. No meio da folhagem parecia um fragmento de lápis lazuli circundado de esmeraldas, pois o seu dorso é do mais carregado azul. Em
qualquer parte do Brasil vê-se abundantemente essa pequena joia alígera, em suas muitas variedades, ao passo que na América do Norte, desde o México
até o 57° de latitude, dizem haver apenas uma espécie do beija-flor.
O sr. Gosse chama a espécie de rabo longo (Trochilus polàtmus) a joia da ornitologia
americana; e bem merece o título, se considerarmos os raios de rico verde dourado, púrpura escuro, azulado escuro brilhante, e o magnífico
verde-esmeralda, que irradiam dessa joia dotada de asas. Os machos figuram entre as criaturas mais beligerantes — raramente encontrados sem estar em
terríveis combates.
Pesca da baleia
Entretanto, a cidade não se distingue tanto pela abundância dos seus beija-flores, como é sua baía célebre como estação de baleias. A pesca das
baleias e um negócio regular na Bahia, e quase todas as semanas, dos numerosos terraços, milhares de admiradores podem contemplar as excitantes
fases da captura destes monstros do mar. Porque frequentam este porto, não sei, a não ser que o seu alimento predileto abunde em suas águas. Se
descermos as alamedas de tília até o Rio Vermelho, poderemos ter uma oportunidade (além de ver o dispositivo para extrair óleo) de testemunhar a
chegada triunfante de um desses leviatães mortos.
Centenas de pessoas — especialmente as de cor — apertam-se em redor para testemunhar as lutas de
morte dos monstros e para conseguir obter pedaços de sua carne, que cozinham e comem. Grande quantidade dessa carne é cozida nas ruas e vendida
pelas quitandeiras. Numerosos porcos também regalam-se na carcaça da baleia; e aqueles que não são muito cuidadosos na escolha que fazem de carne de
porco no mercado, durante a estação da pesca de baleia, ficam sujeitos (nolens volens) a sentir no porco alguma coisa "muito semelhante a
gosto de baleia". Essa pescaria de baleia já foi a maior do mundo. No fim do século dezessete, foi arrendada pela Coroa por trinta mil dólares
anuais.
Arredores da Bahia
Do Rio Vermelho subimos por um caminho sinuoso até o Morro da Vitória, passando no caminho pelos cemitérios inglês e americano. Este é o único
cemitério que pertence aos cidadãos da União, e o nosso país de há muito deve à cortesia dos cônsules ingleses os espaços de terra destinados a
enterrar os cidadãos norte-americanos. Este cemitério foi devido à generosidade particular, e especialmente à energia e à contribuição liberal do
sr. Gillmer. Mas, não era justo nem razoável que ele sustentasse toda a carga.
Em vão apelou para o nosso governo para que ajudasse a conservar esse lugar de descanso para os
nossos mortos, e o resultado é que, não conseguindo auxílio oficial, está o cemitério em tristes condições. A política da Grã-Bretanha é nobre a
esse respeito. Em qualquer lugar levanta capelas e estabelece cemitérios para tais fins; e, embora necessariamente os Estados Unidos não possam
reconhecer qualquer ligação entre a Igreja e o Estado, mesmo assim, um lugar decente para o enterro dos mortos em países estrangeiros, é assunto de
comezinha humanidade que exige imediata atenção do governo. Conheci alguns pais norte-americanos que teriam dado milhares se pudessem saber ao menos
o lugar onde descansam os restos de filhos amados que, morrendo em hospitais, foram enterrados nas valas comuns daqueles cuja nacionalidade não
possui um cemitério para seus membros.
No Morro da Vitória, podem ser encontrados os mais belos jardins que nos oferece a Bahia, os passeios mais encantadores, e os melhores locais
sombrios. Aqui, também, estão as melhores casas, o melhor ar, a melhor água e a melhor sociedade. As muralhas de dois antigos e enormes fortes
também aumentam muito a nota romântica e o interesse histórico do lugar. Com sua magnífica vista das águas azuis e das ilhas verdejantes, é um lugar
que compõe uma beleza panorâmica da mais rara qualidade.
Foi aqui que Henry Martyn, que acidentalmente tocou neste porto, em sua passagem para a Índia, há
mais de meio século passado, suspirou e cantou:
"O'er
the gloomy hills of darkness
Look my soul; he still, and gaze".
Que a situação moral do lugar tenha sofrido qualquer mudança de muita monta (a
não ser um menor fanatismo e uma maior indiferença) não é para presumir, pois não atuaram forças que pudessem ocasionar tais mudanças. Em todos os
lugares ainda existem as provas que deram lugar à observação de Martyn [T83]
"Cruzes existem em abundância; mas quando será demonstrada a Doutrina de semelhantes cruzes?"
Não contemplei qualquer outra parte do Brasil com o mesmo interesse para mim despertado pelas muralhas, jardins, capelas e conventos visitados por
Henry Martyn. O Hospital dos Leprosos e a capela onde ele, suave e amorosamente, se bem que firmemente, proclamou seu protesto contra a religião
corrompida, ainda lá estão; a capela, todavia, há muito não está em uso.
As plantações de pimenta foram arrancadas, os craveiros da Índia de que ele nos fala, ainda estão
florescendo. Alguns dos conventos em que entrou estão presentemente sem os seus moradores monásticos; pois, sob alguns aspectos, melhores dias
desceram sobre o Brasil e muitos destes imensos edifícios, outrora concedidos a ordens opulentas e indolentes, são presentemente utilizados como
colégios, liceus, bibliotecas e hospitais.
O convento onde os futuros missionários que se destinavam exclusivamente à Pérsia ensinavam, ao pôr
do sol e quando as sombras envolviam os claustros, Vulgata na mão, "a fé outrora confiada aos santos" a esses singulares e sombrios frades,
ainda ergue as suas paredes esbranquiçadas — paredes que ouviram os ensinamentos e as preces que Henry Martyn murmurou para que a benção de um puro
Evangelho descesse sobre o Brasil.
Foram as preces de Henry Martyn esquecidas perante o Deus das Multidões? Queremos considerar as
súplicas dos primitivos Huguenotes no Rio de Janeiro, a dos fiéis missionários da Igreja Reformada da Holanda em Pernambuco, e as preces de Henry
Martyn na Bahia, como não perdidas, mas como já tendo descido, e estando ainda por descer, em ricas bênçãos sobre o Brasil.
Minha entrevista com o rev. sr. Edge, o capelão inglês, foi extremamente agradável. É um ex-aluno de Cambridge, e tem vistas católicas adiantadas. A
capela se enchia aos sábados mais do que qualquer outra em que estive no Brasil. Em uma excursão que fiz em sua companhia executei sob um sol
ardente, o desenho da capela acima, que fica perto da moradia roceira, mencionada por Martyn, onde viu primeiro o cravo e a pimenta. Essa primeira
visita de Henry Martyn no Brasil, foi à casa de Antonio José Corrêa, que acredito ter sido situada onde o Hospital de Monserrate hoje se encontra.
O dia estava lindo, e andamos por uma bem extensa e pavimentada rua chamada "Calçada", que nos leva bem para o interior. Nos subúrbios do litoral os
coqueiros crescem em grande profusão, e a jaqueira ondula sua folhagem verde e resplandecente acima da infinita variedade de plantas que adornam
esta região do Sul.
Passamos pelo Convento Carmelita e continuamos até a estrada que leva ao Hospital das Febres: aqui
descemos e dirigimo-nos para a língua de terra chamada Monserrate, sobre a qual há pitorescas fortificações, uma fileira de casas de verão, do sr.
Gillmer distinguida por uma bandeira americana, e no ponto extremo uma pequena capela católica romana, de mais de duzentos anos, em cujo limiar
decifrei esta inscrição:
"A Virgem foi concebida sem pecado original".
Porque os católicos romanos se apegam com tal tenacidade ao dogma da imaculada concepção, que nada
contém de essencial para a salvação, nunca pude compreender.
Visitamos o bem montado hospital que fica próximo, que é particularmente destinado aos que foram atingidos pela febre amarela; mas seus ataques
foram muito pequenos nos últimos anos, embora em 1855, o cólera fosse bastante fatal para os pretos e para o geral da população mestiça.
Ainda assim, quando consideramos que numa população de quase um milhão, na província, apenas
novecentos foram atacados de cólera, a percentagem é pequena comparada com a de Nova York em 1833, e quase nada quando comparada com a epidemia da
mesma doença em St. Louis em 1846 e 1850.
Na primavera de 1857, os jornais dos Estados Unidos espalharam notícias sobre o surto da febre
amarela no Rio de Janeiro, onde, num curto espaço de tempo, vinte e cinco pessoas morreram per diem. Pode ser provado pelas atuais
estatísticas que nenhuma cidade de igual população nos Estados Unidos tem condições sanitárias boas como o Rio de Janeiro.
Nossa Senhora de Monserrate
Imagem: reprodução da página 215 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Monserrate
A vista da Baía de Monserrate é verdadeiramente magnífica. As linhas curvas dos alvos edifícios — uns no alto, outros a beira-mar — separados sempre
por uma larga e viçosa cintura de vegetação, pontilhada de casas, as fortalezas, as embarcações, as ondas eriçadas de espuma, sobre as quais os
barcos de baleias perseguem a sua gigantesca presa, a distante Ilha de Itaparica e, ao longe, o oceano azul, tudo forma um cenário que no momento
nos enche de satisfação, e vive depois na intimidade da memória como uma excelente e linda imagem.
Há poucas cidades que podem apresentar um panorama de mais admirável beleza do que a Bahia, para
quem a contempla de uma certa altura sobre o mar. Mesmo o Rio de Janeiro pode dificilmente ser citado nessa comparação. A capital do país vence na
variedade infinita de seus lindos arredores; mas na Cidade Arcebispal a beleza se concentra e apresenta-se num só golpe de vista. No Rio, para
agradável moradia, um bairro compete com outro, cada um oferece suas razões de preferência; mas na Bahia, todas as superioridades parecem estar
reunidas num só bairro, e o estrangeiro não pode ficar na dúvida: esse bairro é o Morro da Vitória.
Na base de suas fraldas, justamente na borda da baía, está uma suntuosa residência coberta de árvores floridas e de frutos, onde as fontes murmuram
docemente acompanhando a cadência musical das ondas que se quebram na praia vizinha.
Talvez seja importuno, para alguns dos meus leitores, saber em que esse lindo lugar é uma fábrica
de tabaco em pó, onde se faz célebre areia preta que goza de um monopólio no Brasil. Fabricantes e tomadores de tabaco em pó eram encontrados entre
os aborígenes; mas esse especial rapé foi invenção de um suíço de Neufchâtel, que com o mesmo obteve uma grande fortuna.
Por seu desejo, depois de enriquecer seus parentes, deixou somas generosas para a dotação de
hospitais em seu cantão nativo, e também para fins de beneficência na Bahia. O principal estabelecimento (há filiais no Rio e em Pernambuco) está
sob a superintendência de M. Barrelet, de Neufchâtel, em cuja amável família recebi uma acolhida tão desejável por um cristão em país
estrangeiro.
A instrução primária na Bahia ocupa uma situação superior no Império, e os baianos têm grande orgulho em mostrar as estatísticas de suas várias
instituições. O jovem dr. Fairbanks acompanhou-me uma manhã ao principal hospital e à escola médica. Nesta encontrei quase trezentos estudantes
assistindo às aulas. Alguns dos professores — nacionais e estrangeiros — são homens de talento e saber, e o curso é provavelmente igual ao de
qualquer escola médica do mundo ocidental. Na biblioteca anexa à instituição vi algumas obras muito volumosas e caras sobre anatomia, em língua
russa. Tinham sido recentemente enviadas de São Petersburgo e estavam em muito boas condições.
Instituições
Próximo, vê-se a antiga Catedral, um imenso edifício, que foi construído com grandes despesas, e é superior a qualquer igreja no Brasil, excluindo
talvez a ainda não concluída Candelária do Rio. Numa ala deste edifício, donde se pode desfrutar uma vista dominante do porto, está localizada a
biblioteca pública. Contém muitos milhares de volumes, grande parte dos quais em francês; e possui também manuscritos muito valiosos.
O bibliotecário é o exmo. sr. Chevalier, de Lisboa, o perfeito erudito e cavalheiro que, como
ministro plenipotenciário, representou o Brasil em Washington em 1845. Estive profundamente interessado num grande e bem ilustrado volume, que me
foi mostrado pelo sr. Chevalier, e que era uma narração dos Holandeses no Brasil publicada em Amsterdã na primeira metade do século 17.
Na imediata vizinhança da Catedral estão o palácio arcebispal, o seminário, e o antigo Colégio Jesuíta, agora utilizado como hospital militar. Esse
edifício, juntamente com a Igreja de Nossa Senhora da Conceição na Praia (suas torres se veem à direita da grande vista da
Bahia), pode-se quase dizer que foi construído na Europa: pelo menos, a cantaria principal foi para ele aparelhada, armada e numerada no outro
lado do Atlântico, e importada pronta para imediata construção. O palácio do presidente está também a pequena distância deste local. É um sólido
edifício, de antiga data, localizado numa das faces de uma praça aberta.
Os presidentes das províncias são nomeados pelo imperador, e sua escolha de modo algum está restrita aos habitantes da província a governar. Daí
estarem os estadistas brasileiros sujeitos a muitas mudanças de residência: mas pode ser que haja vantagens nisto, pois dizem que as escolhas recaem
sobre pessoas estranhas à província, de modo "que a influência de relações de família e
amizades pessoais não podem sofrer tentações de parcialidade na distribuição de dádivas e emolumentos sob sua direção".
O presidente é, de fato, um vice-rei protegido pela sua guarda pessoal; e parece-me que os poderes com que é elevado a tais funções representam um
dos elementos mais conservantistas da Constituição Brasileira.
Festas oficiais — Aniversário do imperador
O meu colega dr. Kidder estava na Bahia na data aniversária do nascimento do imperador e a feliz descrição que nos deu desta cena, permitirá fazer
uma ideia de semelhantes celebrações em todo o Império:
"Os baianos estavam se preparando para celebrar o nascimento de seu jovem imperador, no dia 2
de dezembro. Este aniversário é, por toda a nação, a data favorita entre os vários dias de grande gala, ou feriados políticos. Os brasileiros
celebram seis dessas datas. O dia 1º de janeiro encabeça a lista com os cumprimentos de Ano Novo a Sua Majestade. O dia 25 de março, em que se
comemora a adoção da Constituição. O 7 de abril e o aniversário da ascensão do imperador ao trono. O 3 de maio é o dia da abertura das sessões da
Assembleia Nacional. O 7 de setembro é o aniversário da Declaração da Independência Nacional; e o último é o 2 de dezembro, aniversário do
imperador.
"Em todos estes dias, exceto o 3 de maio, Sua Majestade reúne a corte no palácio do Rio de Janeiro.
Os presidentes das províncias, como representantes especiais da Coroa, seguem o exemplo de seu soberano, convocando reuniões nas diversas capitais
provinciais; mas não lhes é permitido honras imperiais, mesmo indiretamente. O lugar de honra na "sala de cortejo" é sempre conferido ao retrato de
Sua Majestade. Perto deste, como representante especial do trono, o presidente toma seu lugar, acompanhado ocasionadamente pelo bispo. Diante deste,
em passo medido, passam os dignitários convidados, na ordem de seu grau e distinção, prestando sua obediência um por um ao retrato imperial. Depois
dessa cerimônia, são trocados cumprimentos entre as pessoas presentes, e a reunião dissolve-se.
"Não era nenhuma celebração comum que estava para se realizar dessa vez. Durante a última legislação da Assembleia Nacional no Rio de Janeiro, fora
mais do que dado a entender que se duvidava da lealdade dos baianos em geral. Não satisfeito com tais insinuações, tinham resolvido aproveitar o
ensejo para fazer uma exibição que, por sua magnificência sem exemplo, não só demonstrasse sua fidelidade ao trono, como deixasse a própria
metrópole na sombra.
"Além do cortejo usual, haveria cerimônias por três dias sucessivos e iluminação durante muitas
noites. No primeiro dia haveria o grande Te Deum, com sermão; no segundo, um baile militar no palácio; e no terceiro, uma incomparável
exibição de fogos de artifício, no Morro da Vitória, no Campo de São Pedro.
"E o dia 2 de dezembro chegou. Não estava encoberto pelos mantos frios de um inverno do norte, com ventos sibilantes e neve amontoada. Não, o Norte
é muito mais diferente do Sul do que supõe a imaginação do leitor, e o aspecto desse dia de dezembro ainda melhor o demonstraria. Precedido apenas
por um curto crepúsculo, o sol ergue para cima os seus mais suaves raios, avermelhando as nuvens do horizonte oriental.
"Imediatamente, de seu leito do oceano, ergue-se majestoso no seu caminho vertical, olhando para
baixo para uma das mais belas cenas naturais, jamais oferecidas ao olhar humano. A ilimitada expansão do Atlântico a Leste — a larga e linda baía ao
Sul e a Oeste, com suas ilhas ornadas de palmeiras e montanhas em redor — era bem o lugar apropriado para o delicioso conjunto da cidade, repousando
como uma rainha de beleza entre as alamedas que se debruçam das soberbas eminências em que se distribuem suas casas, seus templos, e seis soberbos
zimbórios.
"A data foi saudada pelo troar dos canhões de várias baterias e dos navios de guerra. Já nessa hora viam-se as embarcações de todas as nações surtas
no porto, alegremente enfeitadas com bandeiras, sinais e flâmulas das mais variadas cores.
"Estando muito ocupado pela manhã, não cheguei à Catedral em tempo de ouvir o discurso que precedeu ao Te Deum, que terminou às três horas.
Neste momento houve uma descarga de foguetes em frente à Catedral e uma salva geral de artilharia dos canhões dos fortes e navios.
"A cena foi então transferida para o Palácio do Governo, antiga residência dos vice-reis, onde o
cortejo se realizou. Ao mesmo tempo, as tropas da cidade, em número de dois mil e quinhentos homens, desfilaram na Praça do Palácio e nas ruas que
ligavam a Catedral a este logradouro. Essas ruas, bem como todas as outras ruas principais, foram adornadas de tapetes de seda adamascada pendurados
das janelas — sendo as cores nacionais, amarelo e verde, frequentemente admiradas. A iluminação à noite em toda a cidade, especialmente no Passeio
Público foi, de todas as partes da celebração, a mais interessante para mim.
"Esse ponto de reunião pública da Bahia está localizado na mais íngreme e dominante colina de toda a cidade. Uma de suas faces dá para o oceano, a
outra sobre a baía, e apenas uma simples grade de ferro impede o visitante contra o perigo de cair no escarpado precipício com que se limita toda a
parte fronteira.
"Quanto à sua exposição ao ar, esse local não é sobrepujado mesmo pela Battery de Nova York;
quanto a sua admirável altura, este último local perde no confronto. O espaço dado à Battery é maior, mas a variedade e riqueza das árvores e
flores do Passeio Público da Bahia compensam inteiramente a sua deficiência a este respeito.
"Aqui se viam, sob a escura e densa folhagem das mangueiras, das tílias, das árvores de fruta-pão,
dos cajueiros, e inúmeras outras árvores tropicais, milhares de focos de luz. Muitas dessas lanternas estavam penduradas em extensas linhas de
globos transparentes, construídos para irradiar as principais cores do arco-íris, e balouçando graciosamente à brisa da tarde que passava conduzindo
a fragrância das flores entreabertas.
"A calma das noites de verão sempre produz um encantamento sobre os nossos sentidos, mas havia uma expressão especial naquele espetáculo. Não
somente o observador se podia deleitar com as variadas e engenhosas exibições de luz artificial em torno dele, como também, erguendo seus olhos para
o empíreo, podia aí contemplar a obra do Todo Poderoso, tão gloriosamente desdobrada nas brilhantes constelações do céu austral.
"A riqueza, o luxo e a beleza das baianas nunca se ostentaram com tanta felicidade como no seio da
multidão que, formada de milhares de pessoas, assistia e tomava parte no espetáculo.
"Que melhor ocasião se ofereceria do que aquela para um espírito disposto a filosofar sobre as
coisas humanas! Da velhice até à alegre juventude, nenhuma idade ou situação da vida deixava de estar ali representada. O militar e o civil, o
titular, o milionário e o escravo, todos se misturavam num prazer comum. Nunca tão numerosa frequência de elementos femininos havia sido observada
emprestando a graça a uma festividade pública.
"Mães, filhas, esposas, irmãs, que raramente tinham permissão para deixar o ambiente doméstico,
exceto para comparecer à missa da manhã, penduravam-se aos braços de seus cavalheiros, e olhavam com indisfarçável espanto para os encantos que mais
pareciam mágica de tudo o que viam diante de seus olhos e em volta de si.
"As cabeleiras negras e ondeantes, os olhos mais negros ainda e faiscantes, de uma beldade
brasileira, juntamente com sua face às vezes também levemente sombreada, mostravam-se com grande encanto, tanto maior porque não as escondiam as
abas do chapéu da moda. As dobras graciosas de suas mantilhas, ou do rico e finíssimo véu que algumas vezes as substitui, usado de maneira
indescritível, por cima do largo, alto e artístico chapéu que lhe adorna a cabeça, dificilmente pode ser imitado por uma moda estrangeira. Todavia,
o forte de uma dama brasileira está no seu violão, e nas doces modinhas que ela canta acompanhando-lhe as notas.
"No monumento de mármore erigido em comemoração da visita de d. João VI à Bahia, foram colocadas inscrições luminosas e, ao mesmo tempo,
desdobrados, em letras grandes e brilhantes, elogios a d. Pedro II.
"Num outro quarteirão, sobre o alto parapeito que dá para a baía e para o mar, construíram um artístico pavilhão, no estilo de um templo ateniense.
Em frente ao mesmo, suportado por colunas centrais, foi colocado um retrato em tamanho natural de Sua Majestade. Nos salões desse palacete
estacionaram bandas de música, a que rodeavam damas e pessoas graduadas da província.
"O retrato do imperador foi velado por uma cortina até certa hora da noite, em que o presidente fez
seu aparecimento e, rapidamente descobrindo-o, deu sucessivos vivas à Sua Majestade, à família imperial, à Nação Brasileira e ao povo da Bahia,
todos correspondidos por ensurdecedoras aclamações da multidão que ali se achava, enquanto que o céu se iluminava com as explosões de mil foguetes.
Na quarta-feira, os festejos em comemoração do grande aniversário nacional terminaram por fogos de artifício. O Passeio Público foi iluminado mais
profundamente do que nos dias anteriores, e todos os jornais que cercam o Campo de São Pedro foram iluminados com archotes e fogueiras. Um grande
estrado foi armado no centro dessa praça, sobre o qual o retrato do imperador foi novamente exibido, tendo o arcebispo auxiliado o presidente a
desvendar a cortina que o envolvia, na hora marcada. A concorrência ainda foi maior que nas noite anteriores.
"O tempo se mostrou ininterruptamente sereno e belo, mas nem a concepção nem a exibição dos fogos
de artifício mereceram altos elogios. Mas mesmo assim, toda a multidão se foi pouco a pouco retirando, como nas noites anteriores, sem a menor
perturbação da ordem. Esse fato é um feliz sintoma dos hábitos ordeiros do povo.
"Nunca assisti a uma função no Brasil que, em seu conjunto, tivesse mais me interessado que esta. A
sua superioridade é manifesta sobre os festivais religiosos comuns. De fato, a simples circunstância de ser uma celebração cívica, destituída de
qualquer finalidade religiosa, basta para recomenda-la à admiração dos que frequentemente ficam chocados com as misturas heterogêneas do solene e do
ridículo que muitos julgam ser essencial à pompa e ao esplendor das comemorações religiosas."
"Fábrica de imagens"
Além do lindo morro da Vitória, num recanto da cidade baixa, entre outras curiosidades, pode-se ver o que se denomina: "fábrica de imagens".
Não é minha intenção tratar mais amplamente do culto religioso na cidade da Bahia, pois é o mesmo em toda a extensão do Império. Santos, crucifixos,
e todas as miudezas e atavios da Igreja Romana são exibidos nessa loja, numa profusão como nunca vi, indicando que o comércio desses artigos é aqui
mais florescente do que em qualquer outro lugar.
Não é só em nome que a Bahia goza da supremacia religiosa no Brasil. É a sede do único arcebispado
do Império. Suas igrejas excedem em número e suntuosidade as de qualquer outra cidade; e dizem que seus conventos têm mais frades e mais freiras do
que os de todo o Império.
Santo Antônio
Não posso, porém, passar adiante sem me referir a Santo Antônio de Argoim, que parece ser o santo predileto do calendário no Brasil. Sua imagem está
no Convento dos Franciscanos, e a sua história é a que se segue:
"Em 1595, uma frota, sob a direção de alguns luteranos, partiu da França, com a intenção de se
apoderar da Bahia. Na sua viagem, atacou Argoim, pequena ilha na costa africana pertencente aos portugueses e, após, cometer várias depredações,
carregou consigo, entre outras coisas sagradas, uma imagem de Santo Antônio.
"Já em pleno oceano, a frota foi atingida pelas tempestades que afundaram várias naus. As que escaparam a essa fatalidade tiveram suas tripulações
assoladas pela peste, durante a qual, por despeito para com a religião Católica Romana, a supradita imagem foi atirada ao mar, depois de ter sido
batida com repetidas cutiladas. A nau que a trouxe chegou a um porto de Sergipe, e toda a tripulação foi feita prisioneira. Seus homens foram
mandados para Bahia, e a primeira coisa que aí viram na praia foi justamente a imagem que tanto haviam maltratado. Fora trazida pelas ondas para
enfrentá-los!"
"Um digno cidadão obteve a imagem e colocou-a numa capela particular; mas quando os franciscanos
souberam que se havia realizado um milagre, solicitaram a imagem, levando-a em procissão até o seu convento. Tão grande foi então a fama desses
acontecimentos, que o rei Filipe ordenou a instituição de uma grande procissão para comemorá-lo.
"E, é estranho dizer, a popularidade fez para com a imagem aquilo que a
pior hostilidade dos heréticos não conseguiu fazer. Seus amigos, os frades, sentiram-se envergonhados com o seu velho e feio aspecto, e puseram-na
de lado para ceder o seu lugar a uma imagem mais vistosa e moderna, que foi batizada com o seu nome e suposta ter herdado as suas virtudes. Tendo
sido apresentada sob esse aspecto aos habitantes da Bahia, Santo Antônio foi então alistado como soldado da fortaleza próximo à barra que tem seu
nome.
"Nesse posto, recebeu o soldo regular, que foi pago até ser promovido ao posto de capitão pelo governador, d. Rodrigo da Costa. O decreto dessa
promoção tenho-o diante dos olhos, e é tão curioso que eu vou transcrever as suas últimas linhas. Depois de referir o voto da Câmara Municipal que
não foi cumprido, o governador acrescenta:
"Por consequência, e porque mais do que nunca precisamos dos favores do santo acima mencionado,
tanto nas presentes guerras em Portugal como nas que ainda se poderão dar na Bahia, a dita Câmara me solicitou, em comemoração daquele seu voto, que
concedesse ao dito e glorioso Santo Antônio o posto e o soldo de capitão da mesma fortaleza onde, até o presente só tem merecido o soldo de soldado.
"Em obediência a essa petição, e sujeito à aprovação do rei, eu concedo ao glorioso Santo Antônio o posto de capitão na mencionada fortaleza, e
ordeno que o solicitador do Convento Franciscano seja autorizado a receber, em nome do mesmo, o soldo regular de capitão".
"Bahia, 16 de julho de 1705.
Rodrigo da Costa."
Ora, o milagre de Santo Antônio foi realmente notável. Mas as investigações da ciência moderna, e
um pouco mais de experiência, esclareceram o mistério. Em palestra com um cavalheiro, não católico, da Bahia, acerca da singular viagem de Santo
Antônio até às costas do Brasil, ele, gravemente, com surpresa minha, afirmou ser, indubitavelmente, uma história bona fide que a imagem
acutilada tivesse flutuado nas ondas até o Hemisfério Ocidental: tudo podia ser explicado por leis naturais. Poucos dias depois deu-me para ler as
palavras que vão em seguida, as quais constituem sem dúvida uma nova confirmação das teorias do comandante Maury sobre os ventos e as correntes
oceânicas:
"Não é para surpreender que, naqueles dias de grande credulidade e ignorância o aparecimento da
imagem de Santo Antônio no litoral baiano tivesse sido considerado como um milagre, expressamente feito para punir os piratas pelo sacrilégio
que haviam cometido. Sobre o aparecimento da referida imagem na praia, depois de ter vindo flutuando desde a África, não pode haver a menor dúvida;
e, como prova de sua completa possibilidade, podemos apresentar a seguinte notável coincidência:
"Há cerca de quinze anos atrás, o falecido visconde do Rio Vermelho, cavalheiro da mais absoluta confiança, proprietário de uma vasta empresa de
pesca nesta costa, situada poucas milhas ao Norte da cidade da Bahia, próximo a Itapican, declarou ao autor destas linhas que a imagem da proa de um
navio, algum tanto queimada pelo fogo, foi levada à sua residência depois de recolhida na praia (onde havia dado à terra) e colocada no seu jardim.
"Pouco tempo depois, um pintor da cidade da Bahia, que estava trabalhando em casa do visconde,
vendo a figura de proa, imediatamente a reconheceu como uma que ele mesmo havia pintado, alguns meses atrás, para um navio que depois partiu em
direção à costa d'África, e por cuja existência muito se receou, não se tendo recebido notícia alguma do seu paradeiro. Soube-se posteriormente que
o navio em questão se tinha incendiado junto ao litoral africano, a figura de proa, tendo trazido, fato bastante singular, a primeira prova material
do desastre.
"É provável que essa figura de proa, feita de cedro leve, tendo um pedestal de madeira resistente, com cavilhas e ligações de ferro, possa ter
flutuado numa posição quase vertical, apresentando assim uma maior superfície à ação dos alísios do Nordeste, o que concorreu para acelerar a sua
travessia sobre as ondas do Atlântico".
No Rio de Janeiro, Santo Antônio vem ocupando, desde muito tempo, o posto de coronel do exército, percebendo o soldo relativo a essa patente. Como
ele pode entrar na posse desses vencimentos é difícil para nós entender; mas pode se fazer alguma luz sobre o assunto quando se sabe que o dinheiro
passa pelas mãos de seus procuradores terrenos — os frades franciscanos — e como despesas pode-se levar em conta as quantias destinadas às
vestimentas, limpeza etc., do santo.
São Tomé no Brasil
As tradições relativas à visita de São Tomé ao Brasil são comuns em diversas localidades do Império. Muitas foram elaboradas pelos jesuítas e são
correntes entre as pessoas crédulas. Observe-se a lógica com que o afamado jesuíta Simão de Vasconcelos prova que São Tomé deve ter estado com
certeza na América do Sul.
"Com que aparências de razão", descreve o
jesuíta, "poderiam ser os índios da América condenados se o Evangelho nunca lhes foi pregado?
Aquele que enviou os seus apóstolos para todos os recantos do mundo não pretendeu deixar de fora a América — que representa quase a metade do mundo.
O Evangelho, portanto, deve ter sido aqui pregado em obediência a essa ordem. Mas por quem foi pregado? Não pode ter sido por qualquer de seus
outros apóstolos, Paulo, Pedro, João, etc.. Logo, deve ter sido São Tomé".
Não admira, pois, que os jesuítas tivessem representado em mapas as suas viagens do Brasil ao Peru, para encontrar os traços dos seus missionários,
cruzes por eles erguidas, e inscrições em grego e hebraico escritas por suas mãos. Chegaram mesmo a retirar do vulcão de Arequipa suas sandálias e
suas capas intactas. Suponho que foi na sua ida ou no seu regresso dessas plagas, que eles visitaram a Inglaterra e pregaram sob o Espinheiro de
Glastonbury.
Navegação ousada
Imagem: reprodução da página 227 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Fábrica de Valença
O comércio da Bahia sofreu algum tanto com a supressão do tráfico dos escravos; mas já vai progredindo aos poucos por meios mais legítimos. As
culturas de fumo e café vão se desenvolvendo. Projetam-se estradas de ferro para o interior, e vapores (não falando já das linhas oficiais) vão até
às cidades litorâneas de Sergipe e Alagoas, ao Norte, e quase até o Espírito Santo ao Sul.
O sr. Martim, antigo presidente da província, merece muito pelo que fez em benefício da
agricultura, e o sr. Lacerda, em cooperação com os srs. Carson & Gillmer muito fizeram para o progresso industrial dessa província. A mais bela
fábrica do Brasil — e talvez da América do Sul — foi construída obedecendo os planos e sob a direção do coronel Carson, um americano de grande
energia e iniciativa. Durante a minha estada na província da Bahia, uma de minhas mais agradáveis excursões foi uma visita que fiz a Valença, sede
da referida fábrica.
Foi uma alegre comitiva que acompanhou o sr. e a sra. Gillmer; e o dia estava tão lindo que fizemos a mais agradável das viagens através da Bahia,
passando entre uma flotilha de baleeiras em animada perseguição de sua esguichante presa. Havia numerosos cavalheiros brasileiros a bordo que,
sabendo que o cônsul norte-americano estava fazendo uma excursão vieram pôr as suas residências à disposição dele e de seus companheiros. Cerca de
meio-dia passamos pelo farol do Morro de São Paulo — bela construção feita sob a direção do coronel Carson. Navegamos o rio Una acima até Valença,
onde nos reunimos ao coronel, e reembarcamos em compridas canoas para subir o rio até a fábrica.
Em poucos minutos achávamo-nos na parte inferior de ruidosos rápidos, às margens dos quais o gênio desse americano empreendedor construíra um
engenho de serra, uma fábrica de vidros e um aplainador mecânico; acrescente-se a tudo isso a construção de uma comporta — a primeira construída no
Brasil — pela qual passaram as nossas canoas.
Na fábrica de vidros, vimos o contramestre sr. Foster, de Worcester, Massachusetts. Esse
estabelecimento pertence ao dr. Bernardini LL. D., que deixou o lugar de juiz pela profissão mais lucrativa de industrial. Por ordem do dr.
Bernardini, um escravo retirou, com enorme cuidado, as compridas embarcações acima das quedas d'água. A perícia com que ele se equilibrava,
guiando-a, com perfeita segurança, na sua tosca embarcação, era realmente admirável, e mereceu do nosso grupo vários hurras! em voz alta. A
forma pela qual manobra a ligeira embarcação ilustra a maneira de descer os rápidos nos afluentes do Alto Amazonas.
Encurtamos o nosso caminho, passando por um estreito arroio. Nas suas margens havia numerosas negras e mulatas lavando roupa. Vendo-as, eu pensei,
pela primeira vez na minha vida, no transtorno das vestimentas em matéria de trabalho manual. As mulheres (cujos reluzentes membros arredondados
eram tão macios como os da Escrava Grega), estavam nuas até à cintura, e as crianças, algumas com pouco menos de uns treze anos, estavam in puris
naturalibus.
Chegamos à fábrica, ou melhor, às fábricas, pois em volta da grande, cujas paredes brancas destacam-se do fundo da vegetação compacta, estão
oficinas mecânicas, fundições etc. O ruído dos teares, o alegre sorriso das simpáticas raparigas, e o indescritível bruaá de uma fábrica,
fizeram-me supor que estávamos próximo de Lowell. Os operários, homens e mulheres, são, em sua maioria, órfãos dos asilos e das casas de expostos.
Estão sob sua boa disciplina, e a sua moral pode ser favoravelmente comparada com a das mais bem dirigidas fábricas norte-americanas. Na fundição,
assisti a toda a operação de modelagem, moldagem e acabamento, feita por negros. O contramestre da fundição é um negro brasileiro, e nela se
fabricam os mais complicados maquinismos.
Extensas construções estão ainda sendo feitas para facilitar a manufatura de tecidos de algodão, que são de melhor qualidade que os fabricados em
Santo Aleixo; é satisfatório saber-se que essa fábrica pode a custo atender aos pedidos e, sem dúvida, dentro de poucos anos, os srs. Lacerda &
Cia., serão amplamente recompensados de suas imensas despesas. Encontrei aqui um construtor de moinhos, o sr. R. A. Randall, de Scituate,
R. I.
Após um magnífico jantar, verdadeiramente tropical, parte de nossa caravana, a constituída pelos homens interessados no negócio, saíram a fazer uma
excursão, cujo fim era encontrar um local conveniente para a fábrica de enormes dimensões que se projeta fazer. O local foi bem escolhido, mas cada
qual de nós trouxe uma amostra do terreno, uma imensa quantidade de carrapatos, semelhantes a pequeninas aranhas, agarrados às nossas roupas com a
maior das tenacidades.
Cada um desses bichinhos produz uma intumescência e, em alguns pontos do Brasil, o gado, na estação
seca - pois os carrapatos não resistem às fortes chuvas -, tem tido muitas baixas devido às feridas assim produzidas. Apressei a minha volta para
casa, a fim de mergulhar em um banho de água quente, e em seguida esfregar-me com uma pinta de rum — a maior quantidade desse artigo que
jamais foi aplicada ao meu físico, quer externa quer internamente. Esses cuidados fizeram cessar eficientemente os estragos apenas iniciados.
Na manhã do dia seguinte, o sr. Randall e eu dirigimo-nos para o local em que foram sepultados dois compatriotas nossos. Dos três americanos que
chegaram juntos, somente ele sobrevivia. Sentidamente contou-me a história da morte dos dois companheiros, quando transpúnhamos estreita passagem
que leva ao local em que repousam. As sepulturas estão situadas sob a espessa sombra de duas jaqueiras, sobre elas tendo sido mandados erigir dois
pequenos obeliscos. Foi para mim uma cena solene naquela hora matutina.
Depois do almoço, o sr. Gillmer, o sr. Pointdexter, um jovem polonês e eu, subimos o rio para visitar uma cachoeira. Os arbustos, os troncos mortos
e as árvores mais altas das margens estão como que floridas pelas orquídeas. Ricas madeiras para marcenaria abundam nas matas. Na cidade da Bahia, o
visconde Fiaz e o senhor Viana (irmão do inspetor chefe da alfândega do Rio), mostraram-me, em suas residências, alguns belíssimos móveis feitos com
madeiras do país, como nunca vi iguais.
Chegamos finalmente à cachoeira, que lembra um Niágara em miniatura. O rio Una, nessa altura,
lança-se sobre um leito de pedra com tal volume d'água que se calculou a força d'água capaz de movimentar cem fábricas de cinco mil fusos cada uma.
Em nosso regresso da visita à fábrica, aceitamos a hospitalidade do sr. Bernardini, que nos ofereceu um esplêndido jantar.
Fábrica de Valença
Imagem: reprodução da página 229 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Volta à Bahia
Tive até à cidade da Bahia a companhia do coronel Carson, que achei ser um homem interessantíssimo, por sua inteligência e bom senso. A sua vida foi
muito movimentada. Veio para morrer no Brasil, mas o seu clima delicioso fez dele um novo homem e, na verdade, tem caminhado para frente,
construindo engenhos de serra, faróis, fábricas, e foi mandado ao estrangeiro, pelo governo da província, a fim de investigar sobre as plantações de
açúcar das Índias Ocidentais e dos Estados situados no golfo do México, com o fito de promover melhor produção de açúcar na Bahia. Deu-me muitas
informações a respeito do tráfico que podia existir entre os Estados Unidos e a Bahia.
Nesse segundo porto do Brasil, nós, os norte-americanos, estávamos perdendo terreno de ano para
ano. E muitos artigos como, por exemplo, algodões, ferragens, couros, sabões etc., podiam ser vantajosamente introduzidos. As amostras de couro de
J. Chadwick, Esq., de Newark, — empregado nos calçados do sr. Boynton, e as amostras de artigos de cutelaria e gravação enviadas pelo sr. Garside,
também de Newark, atraíram, pela excelência de suas qualidades, grande atenção no Rio de Janeiro; o mesmo se pode dizer das cordas e linhas de
costura fabricadas em Excelsior Works por H. Webber & Cia.
Todos esses artigos, e muitos outros, se bem encaminhados, podem ser exportados para o Brasil, cujo
comércio realmente se poderia tornar tão valioso como o de todas as restantes nações da América do Sul, se o conseguirmos levar avante. Outrora,
grande quantidade de lona comum foi exportada dos Estados Unidos para a Bahia, dos York Mills, Saco, Maine, muito apreciada pelos brasileiros.
Esse artigo é atualmente imitado em Manchester, Inglaterra, e exportado para Bahia com o rótulo
"York Mills, Saco, Maine", e vendido como tal. Apesar, porém, de bem imitado e de apresentar um belo aspecto, logo provou não ser o mesmo e caiu em
descrédito, pensando os brasileiros até agora que foram enganados pelos yankees.
Na Inglaterra, o tecido comum de algodão não pode ser
fabricado igual ao norte-americano porque o preço da matéria-prima é muito elevado, sendo o melhor algodão consumido em tecidos finos, e somente as
sobras para o artigo inferior, ao passo que nos Estados Unidos as fábricas usam a mesma qualidade de matéria prima tanto para os tecidos grosseiros
como para os de mais luxo [A59].
Notas do Autor
[A57]
O dr. Latham diz: "Com duas exceções, a distribuição de numerosos dialetos e subdialetos da
língua tupi-guarani é a mais notável no mundo; as duas exceções são as línguas Malaias e Atabascan".
[A58]
Em sucessivas edições da narrativa da Expedição de Exploração dos Estados Unidos encontramos o seguinte: — "A
cidade de São Salvador mais conhecida como Rio de Janeiro" — que é comparável na exatidão ao
Dicionário Geográfico de McCulloch, fazendo a província montanhosa do Rio de Janeiro consistir "pela
maior parte de planícies".
São Salvador está a oitocentas milhas do Rio de Janeiro, e São Sebastião — o
antigo nome do Rio — tem tanta semelhança com São Salvador como Nova Orleans tem com Nova York.
[A59]
Nota de 1866: — Aproveito este espaço para mencionar que, depois de 1855, foram realizadas algumas importantes explorações
cientificas, — como, por exemplo, a da província do Ceará, sob a direção dos srs. Freire Alemão, Capanema, Lagos e outros
[T84] que compunham uma
comissão científica.
Foram explorados e cartografados vários rios importantes. O Purus, o grande
afluente do Amazonas, é talvez menos conhecido do que o Nilo. O sr. Herculano Ferreira Penna, quando presidente do Pará, chamou particularmente
atenção para esse rio em suas mensagens anuais (traduzidas pelo dr. Spruce, o explorador do Alto-Amazonas, publicadas pela Royal Geographical
Society).
Em 1862, o major J. M. da S. Coutinho
[T85], no vapor
Pirajá, subiu o Rio Purus, fazendo sondagens etc., num percurso de 700 milhas. Foi um feito notável: os afluentes do Amazonas são geralmente
interrompidos em sua navegação a uma distância relativamente curta de suas embocaduras. Supõe-se que o Purus seja o Madre de Dios dos antigos
espanhóis e que, por esse rio, os brasileiros podem ir até as fronteiras com a Bolívia.
Um explorador inglês, Chandless
[T86], em 15 de junho
de 1865, atingiu um ponto do Purus mais alto que Coutinho.
Lastimo que a falta de espaço me impeça de dar uma extensa
notícia de outros trabalhos de Coutinho, Halfeld (cuja exploração do Rio São Francisco constitui um magnum opus) e outros exploradores de
rios como o dr. Couto de Magalhães que, em 1863, desceu o Rio Araguaia, desde perto de Goiás até o Pará
[T87].
Notas do tradutor:
[T81]
Sobre príncipe Maximiliano, ver nota nº 75.
[T82]
Robert Gordon Latham, filólogo e etnólogo inglês 1812-1888, publicou sobre as línguas indígenas do Brasil: Vocabularies of Amazonian languages,
Languages of Brazil (Remarks on the Vocabularies), notas à obra de A. R. Wallace.
[T83]
[T83] Henry
Martyn — missionário inglês, 1781-1812; foi missionário na Índia e na Pérsia; publicou Journal and Letters, tendo traduzido para o hindu e o
persa o Novo Testamento. Em Bible in Brazil, p. 148, há a seguinte referência, que nos foi indicada pelo Rev. H. C. Thucker: "Henry
Martin, em sua acidentada viagem à Índia, há cerca de um século atrás, passou pela cidade da Bahia e depois de inteirar-se, com a sua visão
espiritual, da situação de seus habitantes, e conversar em latim com alguns padres e frades, exclamou lamentando:
'Aqui há cruzes em abundância, mas quando será sustentada a doutrina da cruz?'"
[T84]
Francisco Freire Alemão, Guilherme Schuch de Capanema e Manuel Ferreira Lagos, naturalistas brasileiros, fizeram parte da Comissão Científica de
Exploração que, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, realizou estudos na então Província do Ceará, em 1859.
[T85]
Sobre J. M. da Silva Coutinho, ver nota nº 4.
[T86]
William Chandless, geógrafo inglês, publicou, sobre as suas explorações dos afluentes do Amazonas, os seguintes relatórios: "Ascent of the River
Purus", "Notes on the River Aquiri, the principal affluent of the River Purus", e "Notes of a journey up the River Juruá", os dois
últimos publicados em tradução nos Relatórios do Ministério da Agricultura, anos de 1866 e 1870 e o primeiro, comentado, servindo de base ao
reconhecimento do Alto Purus pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana, chefiada por Buenaño e Euclides da Cunha, em 1906.
[T87]
Dr. José Vieira Couto de Magalhães, posteriormente general honorário do Exército Brasileiro; ver, nesta Brasiliana, as suas obras: O
selvagem e Viagem ao Araguaia. |