Ponte e Serra do Cubatão
Imagem: reprodução da página 62 do 2º volume da edição de
1941, da Cia. Editora Nacional
Capítulo XIX
Viagem a São Paulo
No meu regresso da província de Santa Catarina, toquei outra vez em Paranaguá e, com a usual lentidão que caracterizava os viajantes da costa
brasileira, há alguns anos passados, vim devagar para Santos, e daí segui viagem para a cidade de São Paulo.
Um jovem brasileiro teve a intenção de acompanhar-me à capital da província; mas quando o informei
que tencionava partir para o interior no mesmo dia de minha chegada a Santos, ele à princípio riu-se de mim, considerando isso uma impossibilidade,
e deu a entender que eu aceitaria de bom grado a hospitalidade que me haviam oferecido alguns amigos. Quando ele me viu firme na minha resolução,
deixou de sorrir e olhou para mim com a piedade que é concedida aos loucos sem esperança de cura.
Às cinco horas e meia da tarde parti só. Ouvi frequentes exclamações de surpresa, dos que nunca estiveram no Brasil, diante da ideia de viajar sem
um companheiro numa região que suas imaginações têm representado como habitação de bandidos e animais ferozes. Embora tenha andado muitas léguas
desacompanhado, nunca encontrei com os primeiros e os segundos têm sido bastante inofensivos.
O meu cavalo, em estatura e arreamento, e também pelo seu aspecto, parecia-se com
um tártaro calmuco. Nunca travara conhecimento com um pente de crina, mas percorreu a bela estrada que conduz a Cubatão
[T*] com uma ligeireza
digna de um animal de melhor aparência.
Estava escuro quando cheguei à ponte que atravessa o Rio do Cubatão; e, não tendo certeza de
encontrar uma hospedaria, fui à cavalo até uma pequena venda à beira da estrada e minhas perguntas foram respondidas muito satisfatoriamente em
francês.
Encontrei esse mesmo homem na minha volta, e soube dele que viera para o Brasil há vinte anos
passados, sob a impressão de que o ouro neste país era tão abundante como as pedras de calçamento. Ele me dirigiu para uma estalagem mantida por um
alemão, além da ponte. Tendo escrito meu nome no registro, e tendo pago uma pequena quantia, reclamei pressa e vi-me logo em casa do alemão.
Senti-me meio inclinado em prosseguir para a frente até o alto das montanhas, a fim de alcançar São
Paulo antes do meio-dia do dia seguinte. Resolvi, contudo, reparar as forças, minhas e do cavalo, e dei ordens para a ceia. Esse descanso, pelo
menos no que dizia respeito ao sono, foi em quantidade mínima, pois muito cedo estava eu novamente montado em meu cavalo e prosseguindo em meu
caminho serra acima.
A estrada que atravessa esta cadeia de montanhas é provavelmente a mais bela do Brasil, com exceção
da estrada real imperial para Petrópolis. Quando o dr. Kidder visitou essa parte do Império, existia uma excelente estrada, feita com grandes
despesas, mas devido à sua forte declividade, era totalmente impraticável para carros. Assim descreveu-a ele:
"Compreende cerca de quatro milhas de sólida pavimentação e para mais de cento e oitenta voltas
em seu percurso em zigue-zague. A conclusão desta grande obra de melhoramento do país, foi julgada digna de comemoração, como um acontecimento
notável na história colonial de Portugal. Foi o que descobri, passando de volta pela mesma estrada.
Parando no pico da Serra, minha atenção foi atraída por quatro pedras lavradas, provavelmente
importadas. Correspondiam em tamanho e forma às colunas miliárias dos Estados Unidos, e estavam tombadas. Uma jazia com a sua face para baixo, tão
metida na terra que — por mim pelo menos — não poderia ser desenterrada. Das outras, tendo removido com a ponta de meu martelo o musgo e a caliça,
que escondiam a escultura das letras, decifrei o que segue:
MARIA I. REGINA,
NESTE ANO, 1790
OMNIA VINCIT AMOR SVBDITORVM
FEZ-SE ESTE CAMINHO NO FELIZ GOVERNO DO ILMO. E EXMO. BERNARDO JOSE DE LORENO, GENERAL DESTA CAPITANIA
Uma sólida pavimentação foi julgada essencial para essa subida de montanha para defender da estrada
dos estragos causados pelo contínuo passar de animais, e também das águas torrentosas, que frequentemente se precipitam sobre ele e ao lado dela,
durante as grandes chuvas.
Apesar da primitiva excelência do trabalho, conservado como tem sido por frequentes reparos,
havíamos de encontrar alguns regos e deslizamentos de terras, que seriam considerados formidáveis, se não tivessem parecido insignificantes em
comparação com a altura das montanhas e a profundeza dos fossos, que a cada momento se abrem embaixo em grandes precipícios. Nestes pontos, alguns
passos em falso do animal teriam abismado a ele e ao seu cavaleiro, sem esperança de salvarem-se.
A nossa subida se tornou mais divertida pelo encontro de sucessivas tropas de mulas. A princípio se
ouvia a áspera voz dos tropeiros tocando os animais, e soando tão por cima de nós que parecia vir das próprias nuvens: depois distinguia-se o bater
dos cascos e à distância os animais, erectis auribus, pois quase que irresistivelmente arriam com as suas pesadas cargas. Foi necessário
procurar um lugar resguardado para deixar passar as várias seções da tropa; passado algum tempo, seu tropel ressoava longe, com os ecos afastados da
sua voz perdendo-se nos precipícios embaixo".
A descrição acima da estrada era rigorosamente verdadeira, há quinze anos passados; mas presentemente, graças a uma previdente engenharia, as
subidas não são tão íngremes, e com grandes despesas toda a estrada foi macadamizada. Mas mesmo assim, a subida é demasiadamente forte para veículos
pesadamente carregados.
Isso será em breve remediado. Engenheiros ingleses estão procedendo ao levantamento de uma estrada
para o interior, que se pode estender até a província de Goiás; e a grande esperança dos Vergueiros é que não está longe o dia em que o café de
Campinas, Limeira e Itu, venha a ser trazido sobre rodas até Santos.
Na gravura, a atual estrada real, relativamente ainda muito sinuosa, mostra o
seu forte contraste com a estrada quase vertical feita pelos primeiros jesuítas, antes daquela que o dr. Kidder nos descreve. A estrada dos jesuítas
é a linha escura que parece dividir a montanha cônica em partes iguais.
Serra do Cubatão
Quando subi a serra montado num cavalo de aspecto tão desanimado, o nevoeiro cobria tudo, apenas podendo eu ver uma vara diante de mim; mas, na
volta, não só as montanhas estavam banhadas pela luz em cheio do sol, como as planícies embaixo e o oceano distante, pareciam ter sido aproximados,
como por um efeito de mágica. Havia uma primitividade e uma sublimidade tais na paisagem que não as vira excedidas nem mesmo nos arredores do Rio de
Janeiro. Do cume da montanha os escuros e ásperos desfiladeiros, não estavam ainda revestidos da abundante vegetação que se encontra em outros
lugares. As torrentes jorravam de alguns dos mais altos cumes e estrondavam embaixo nas grotas fundas.
O jesuíta Vasconcelos [T67]
fez a subida desta Serra há duzentos anos passados, e sua descrição do cenário é esboçada com mão de mestre; mas a sua avaliação da altitude foi
certamente exagerada:
"A maior parte do caminho não é para ser propriamente viajada mas salgada com mãos e pés,
segurando as raízes das árvores; e isto no meio de tais penhascos e precipícios que, confesso, meu corpo tremia quando olhava para baixo. A
profundidade do vale é tremenda, e o número de montanhas, uma por cima da outra, parece tirar-nos a esperança de atingir o fim. Quando se imagina
estar no alto de uma delas, está-se no fundo de uma outra de não menor importância.
Mas, na verdade, o trabalho de subir é recompensado de vez em quando; pois quando me sentei num
desses penhascos, e lancei meus olhos para baixo, era como se eu estivesse do céu da lua olhando para baixo, e que todo o globo da terra ficasse
abaixo de meus pés. Uma vista de rara beleza pela diversidade de aspectos tanto no mar como na terra, planícies, florestas e filas de montanhas,
tudo variado e imensuravelmente belo.
Essa subida, intervalada de porções planas, continua até se alcançar as planícies de Piratininga,
na segunda zona do ar, que é aí tão leve que chega a parecer que os recém-chegados não poderão respirar o ar de que necessitam".
O dr. Kidder assim critica Vasconcelos:
"A última frase é tão falsa como as precedentes bem descritas e lindas. Entretanto, não
julgaria necessário corrigir a narração, se Southey, não tivesse, com a sua autoridade, repetido a afirmativa de que a estrada se prolonga por oito
léguas até à cidade de São Paulo que fica nas planícies de Piratininga.
A verdade é que, do alto da Serra, que se sabe estar a três mil pés acima do mar, a distância até
São Paulo é de cerca de trinta milhas, sobre uma região ondulada, cuja declividade dominante, representada pela direção dos cursos d'água, volta-se
para o interior.
No entretanto, tão leve é a variação do nível geral, que o ponto mais alto da cidade de São Paulo
foi avaliado como tendo precisamente a mesma altura que o cume mencionado. Os inconvenientes experimentados com a rarefação da atmosfera em tal
elevação podiam ser facilmente determinados".
Todavia, parece-me que a altitude avaliada da Serra, feita pelo bom frei Vasconcelos, foi justa, admitindo-se o seu padrão de medida; pois, mesmo
considerando que ele não tivesse asma, subir uma montanha escarpada, ("o céu da lua"),
não viajando, porém, subindo com pés e mãos, "segurando as raízes das árvores",
e isto entre penhascos e precipícios, sem dúvida alguma seria suficiente para fazer qualquer um palpitar e sentir-se como se estivesse "na
segunda região do ar" e "não pudesse
respirar todo o ar de que necessita".
Encontrei certa vez um alto e magro californiano no istmo do Panamá. Foi no fim de um quente e
sufocante dia: o pedestre cavador de ouro estava dirigindo-se para o Pacífico, enquanto eu estava procurando o porto de Aspinwall. Abordei-o e
perguntei-lhe a distância para Obispo, (nesta época o término da Estrada de Ferro Panamá). "Estrangeiro",
respondeu-me, "eles chamam a isto cinco milhas; mas posso assegurar-lhe que tem cerca de
quinhentas, pois nunca fiquei tão cansado em toda minha vida". Ele avaliou a distância como o
padre Vasconcelos avaliou a altura da Serra do Cubatão.
Tendo afinal atingido o cume da montanha, galopei sobre as planícies superiores, sentindo-me mais incomodado do que nunca pelo frio no Brasil. Às
dez horas cheguei ao hotel do sr. Lefevre, um francês de Roussillon, cuja bem provida mesa fez meu frio imediatamente desaparecer.
Formigueiros
A planície entre este hotel e São Paulo, na qual se viam culturas, estava coberta de montículos de formigas brancas cujas dimensões e forma
lembravam uma vila de hotentotes. Em alguns pontos os laboriosos e pequeninos seres tinham cavado totalmente o solo por muitas jardas em redor. A
terra que compõe a crosta exterior destas habitações de insetos fica tão endurecida pela ação do sol, que mantém a sua primitiva posição em pé e sua
forma oval por muitos anos.
A região que percorri, excluindo-se a notável aparência ferruginosa do solo, assemelha-se às que são chamadas oak-openings no Oeste dos
Estados Unidos. Na vizinhança da vila de São Bernardo há consideráveis plantações de café e chá chinês.
Tropeiros
Encontrei constantemente tropas de mulas carregadas de café, em sua caminhada para Santos, e outras que voltavam do litoral para o interior. Note-se
que o transporte comum de ida e volta é feito com bastante regularidade e ordem, não obstante o meio empregado. Muitos plantadores mantêm uma
quantidade suficiente de bestas, para transportar toda a sua produção para o mercado; outros não o fazem, e dependem mais ou menos de tropeiros
profissionais.
Quanto a esses, cada tropa está a cargo de um condutor, que superintende suas viagens e trata de
seus negócios. Eles geralmente carregam açúcar e outros produtos agrícolas, transportando, de volta, sal, trigo e qualquer variedade de mercadoria
importada. Fui informado que, anualmente, duzentas mil mulas chegam com suas cargas a Santos. Um senhor, que durante muitos anos empregou esses
meios de condução no transporte de mercadorias, disse que raras vezes, ou nunca, soubera de um artigo que não chegara ao seu destino.
Os tropeiros paulistas, como classe, diferem muitíssimo dos mineiros e condutores que visitam o Rio de Janeiro. Têm uma certa rusticidade de aspecto
que, misturadas a inteligência e algumas vezes a benignidade, dá às suas feições uma expressão peculiar.
Usam geralmente uma grande faca pontuda, metida atrás na cinta. Essa faca de ponta é para eles
talvez mais essencial do que a faca do marinheiro é para este. Serve para cortar mato, para consertar arreios, para matar e preparar um animal, para
cortar o alimento e, em caso de necessidade, para defender ou para assaltar.
Sua lâmina tem uma curvatura peculiar e, para ser aprovada, deve ter uma têmpera que lhe permite
cortar espessa placa de cobre sem curvar-se ou quebrar-se. Sendo sua companheira favorita, é muitas vezes montada num cabo de prata, e encaixada
numa bainha também de prata, embora seja geralmente usada sem bainha. Muitos estrangeiros (entre eles os ingleses) compram essas facas, para ter em
casa como curiosidade, não sabendo que foram fabricadas na Grã-Bretanha, ou no Norte da França.
Lady Emeline Stewart Wortley, em sua interessante correspondência sobre o Novo Mundo, escreve que
procurou no Peru, como uma grande curiosidade, um poncho da região, para que pudesse mostrar aos seus amigos da Inglaterra a vestimenta
característica e as artes populares dos descendentes dos aventureiros Castelhanos, súditos de Ataualpa. Antes de deixar a América do Sul, um seu bom
amigo, comerciante, não desejando que Lady Emeline fosse enganada, quebrou a sua fagueira ilusão, informando-lhe que o poncho em questão viera dos
teares da Escócia.
Podia-se também mencionar que muitas das lindas talhas para água, que os estrangeiros admiram no
Rio de Janeiro, são produtos das fábricas de louça de Staffordshire, donde são mandados em grande quantidade para a América do Sul.
Os mistérios do abastecimento a países distantes, dos produtos considerados
peculiares a essas terras, formariam um curioso livro, muito mais interessante do que os blue-books da velha Inglaterra, ou o anual
Commerce and Navigation publicado pelo departamento financeiro dos Estados Unidos [A45].
Vista da Cidade de São Paulo (por Richards, seg. desenho do sr. Elliot, de São Paulo)
Imagem: reprodução da página 68 do 2º
volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional
Ipiranga
Antes do pôr do sol, avistei à distância a cidade de São Paulo. Sua posição elevada num pequeno planalto que se vai alteando a partir da planície,
suas numerosas torres e campanários e velhos edifícios conventuais, dão-lhe um aspecto muito mais imponente do que o de uma cidade de maior
população.
Antes de galgar a elevação, passei pelo pavilhão erigido à margem do Ipiranga, para comemorar a
declaração da Independência Brasileira, solenemente levada a efeito por d. Pedro I, quando (7 de setembro de 1822) nesse local exclamou
"Independência ou Morte"!
Esse local deve ser reverenciado em pensamento por todo brasileiro, e também ser memorável em todo
o mundo; não é, portanto, muito lisonjeiro para os créditos do Brasil ou da província de São Paulo, fértil em patriotas, que um monumento mais digno
de "bronze ou mármore mais durável", até agora não haja sido erigido em comemoração de um acontecimento de tão grande interesse para o país.
A cidade de São Paulo
A noitinha estava chegando quando me enlameei atravessando o Tietê, o primeiro dos afluentes do Prata que eu atravessava; logo depois, subindo,
atingi a cidade. Quando entrei na primeira rua, senti-me mais convencido do que nunca que estava ao Sul do trópico de Capricórnio; pois, embora
pudesse ser vista por toda a parte, uma vegetação perene mesmo nas noites de junho (que corresponde a dezembro no hemisfério setentrional) estava
sentindo um frio que pedia sobretudo. O meu tinha sido acidentalmente esquecido e não somente os meus sentidos falaram-me de sua ausência, como,
observando vários estudantes de Direito bem encapotados, vi-me forçado a lembrar do meu descuido e suas desagradáveis consequências.
Comecei a conversar com os jovens "membros da Justiça", e achei-os extremamente afáveis e
comunicativos, quando gentilmente me levaram ao hotel do senhor C. Observando um grande convento junto do qual passávamos, chamei-lhes a atenção
para o fato de que um país novo como o Brasil, pouca necessidade tinha de tais corporações de monges e frades. Fiquei um tanto surpreso diante da
viva e pronta resposta de um deles, que visivelmente interpretando os sentimentos do grupo, disse: "Não, sr., não necessitamos de nada disso: eles
são uns preguiçosos; nós aprovamos o que o rei da Sardenha fez há pouco tempo com os conventos".
O Brasil tem poucos monges em seus esplêndidos edifícios conventuais, e esses poucos, com exceção
dos capuchinhos italianos, são indolentes, ambiciosos e licenciosos. Muitos dos seus edifícios, já secularizados, são usados como arsenais do
império, palácios provinciais, livrarias, hospitais etc.
Não podia deixar de contrastar a minha estreia em São Paulo com a entrada de Mawe, quando há quase meio século travou conhecimentos com a mesma
cidade. Da minha parte, entrei a cavalo na cidade e fui para o hotel da mesma forma como teria feito em Boston, Liverpool ou Genebra.
Mas o conhecimento de Mawe com o Brasil foi imediatamente posterior à abertura do país pelo decreto
real de 1808. Em sua obra Travels, bastante digna de leitura, diz ele: "Nosso
aparecimento em São Paulo despertou grande curiosidade entre todas as camadas do povo, que parecia assim, nunca ter visto antes um inglês. Até as
crianças manifestavam espanto, algumas correndo, outras contando os nossos dedos e declarando que tínhamos tantos como elas. Muitos foram os bons
cidadãos que nos convidaram para suas casas, e mandaram chamar os amigos para que viessem nos ver. Como a casa que ocupamos era muito grande,
divertiam-se frequentemente vendo os ajuntamentos de jovens de ambos os sexos que nos vinham ver comendo e bebendo. Agradável nos foi, então,
perceber que essa admiração geral se convertia num sentimento mais social: encontramos um tratamento cortês por toda parte, e grande satisfação em
companhia mais refinada e polida que nas colônias espanholas".
Embora São Paulo se distinga ainda por sua "refinada e polida" sociedade, é difícil hoje conceber tal curiosidade em ver um estrangeiro, o que
representava por certo uma consequência direta da política japonesa de Portugal para com a colônia do Brasil.
A cidade de São Paulo está situada, entre dois pequenos rios, numa elevação do solo, cuja superfície é muito desigual. Suas ruas são estreitas, e
não delineadas de acordo com qualquer sistema ou plano geral. Têm calçadas estreitas e são pavimentadas com um conglomerado ferruginoso, muito
semelhante ao velho arenito vermelho, porém diferindo dessa formação por conter maiores fragmentos de quartzo — aproximando-se assim da breccia.
Alguns edifícios são construídos com esse tipo de pedra; mas o material mais geralmente usado na construção de casas é a terra comum, ("casas de
taipa") que, levemente umedecida e amassada, pode constituir uma sólida parede. O processo para isso é cavar no terreno vários pés de profundidade,
como se tratasse das fundações de uma casa de pedra, e depois encher os buracos com terra umedecida, que é batida de modo a ficar tão dura quanto
possível.
Quando as paredes se elevam acima da terra, uma armação de tábuas ou pranchas é feita para dar-lhes
as devidas dimensões, utilizando-se uma delas como guia, que se eleva à medida das necessidades até que tudo esteja pronto.
Essas paredes são geralmente muito espessas, especialmente nos grandes edifícios. São capazes de
receber um belo acabamento por dentro e por fora, e são geralmente cobertas por telhados salientes que as preservam dos efeitos das chuvas. Embora
se tome essa razoável precaução, esse esse tipo de parede é conhecido como podendo durar mais de cem anos sem a menor proteção. Sob a ação do sol
endurecem e ficam como tijolo maciço, impenetrável à água, sendo que a ausência de geada favorece sua estabilidade.
De São Paulo, escrevi uma carta para um de meus amigos no Rio, da qual transcrevo os seguintes trechos :
"26 de junho de 1855.
"Estou num quarto frio — tão frio como nunca senti antes no Brasil. A lua está brilhando friamente; os homens quase tiritam de frio debaixo dos seus
capotes (desejava ter um), e a única coisa que possui calor é a vela, que derrama sua luz baça sobre esta folha de papel. Devo, todavia, excetuar o
ativo esforço de uma corneta distante, que realmente enche o ar da noite com a sua quente melodia.
Estou aqui parado, porque ninguém faz nada de apressado no Brasil. Despachei minhas duas caixas em Santos, no dia 14, e ela só foram remetidas no
dia 23; e hoje passei pelo rancho onde a tropa acampou a última noite. Esta tarde alcançaram um ponto duas milhas distante de São Paulo — e nessa
velocidade atingirão seu destino, Limeira, lá para o dia 14 de julho, data essa em que devia partir do Rio para as províncias do Norte. Mas se for
possível, alugarei mulas extraordinárias, apanharei minhas caixas, transferindo-as para os meus animais, e assim poderei chegar sábado à noite à
colônia de Vergueiro (a mais de cem milhas daqui).
Diga ao sr. Fernando Rocha que seu amigo sr. Seraphim tem sido muito útil e bondoso para mim, correndo toda a cidade, em procura dos animais de que
necessito. Pensa o sr. que um negociante americano ou inglês teria feito outro tanto, tarde da noite, por um estrangeiro três horas depois de sua
chegada?
Receio que me julgues por demais queixoso, e coloque-me na categoria dos viajantes que, como Smollett, estão sempre aborrecidos e vivem murmurando
contra os inconvenientes que encontram no país em que viajam. Asseguro-lhe que aceito as coisas tanto quanto possível como um filósofo, comendo toda
espécie de alimento em toda sorte de lugares, e dormindo onde teria escrúpulos de fazer um exame à luz do dia.
Imagine que dormi, ou pelo menos tentei dormir, na noite passada, em uma imunda hospedaria alemã,
com um papagaio não domesticado em cima da cabeça e meu cavalo Calmuck amarrado com uma corda do outro lado de uma estreita divisão; assim, entre a
música de um sacudindo os seus arreios, e do outro trincando seu milho, foi muito pequena a parte que me coube na natur's sweet restorer (no
doce reconforto da natureza).
Ontem deixei Santos, embora me informassem que era impossível partir para o interior no mesmo dia que cheguei; ainda foram os meus bons amigos, os
Vergueiros, que me permitiram manter a palavra que dei a bordo de que a noite me veria em caminho. Hoje cavalguei trinta e duas milhas, e vê o sr.,
sabendo como os paulistas viajam, que foi um bom dia de viagem. Ainda nas proximidades de São Paulo, contemplando os verdes prados semeados de
rebanhos de gado, as casas brancas rodeadas de árvores e, no fundo, as montanhas distantes, parecia estar vendo, como em anos passados, os aspectos
semelhantes da Burgúndia, Piemonte e Northumberland.
Senti um mais profundo respeito por São Paulo, do que por qualquer outra cidade sul-americana que tenha visitado. É maior do que eu esperava, e suas
casas, com suas goteiras pendentes, dão-lhe uma aparência não muito diferente das de Vevay, no Lago de Genebra. Essas goteiras avançam sobre as
ruas, cinco ou seis pés, protegendo os transeuntes da chuva e do sol, e dão ao conjunto um pitoresco suíço.
Meu sentimento de respeito, todavia, não se originava do tamanho da cidade, nem de seu pitoresco, mas de se notar um ar mais intelectual e menos
comercial em seus habitantes do que eu vira em outra qualquer parte do Brasil. Não se ouvia a palavra dinheiro constantemente soando aos ouvidos,
como no Rio de Janeiro. Há nada menos de quinhentos estudantes de Direito na escola que aí funciona, cujo aspecto realmente evoca as escolas de
Direito dinamarquesas da Universidade de Harvard e dos estudantes de Heidelberg.
O gênero estudante é o mesmo no mundo — cheio de travessura, graça e malícia. Na semana de minha
chegada, algumas dezenas de estudantes tinham "promovido uma algazarra" no teatro, (como um deles elegantemente a denominou), tanto assim que o
presidente da província ordenou que forte contingente de polícia estivesse presente à próxima representação, e não foi sem dificuldade que manteve a
ordem.
Ao entrar na cidade, topei com um grupo desses jovens cultores do Direito, que me conduziram ao hotel onde muitos de seus colegas estavam perdendo o
tempo jogando bilhar; e, a julgar pelo som das bolas rolando e pelas belas tacadas em hora tão adiantada, era fácil imaginar que teriam pouca
oportunidade para preparar as suas lições da manhã.
O proprietário do hotel é um jovem brasileiro, educado em..., em Nova
Friburgo, e fala muito bom inglês. Ele tem, entretanto, projeto demais, para ser bem sucedido. Seu último plano é estabelecer uma espécie de Jardim
Zoológico do tipo Surrey, para concertos, exibições e recreação em geral, no Rio de Janeiro. Seu lugar escolhido para este fim é na Praia Vermelha,
não distante do Pão de Açúcar. Por falar de jardins, hoje vi imensas plantações, que à princípio supus fossem de café, mas verifiquei tratar-se do
genuíno chá verde da China.
E agora para a cama: se as bolas de bilhar me deixarem dormir, estarei descansado para a viagem de amanhã.
"P. S. Quarta-feira pela manhã. — Tenho um cavalo, um condutor, e duas mulas, e partirei dentro de alguns momentos. Receberá
notícias minhas de Limeira" [A46].
Notas do Autor
[A45]
O papel fabricado na Nova Inglaterra leva a estampa "Bath Post" e "Paris". Grandes estabelecimentos perto de Nova York importam rótulos e papel de
embrulho da França, para colocarem dentro e em volta dos chapéus que enchem os Estados Unidos, como sendo feitos nas margens do Sena.
Staffordshire não apenas fabrica talhas para água julgadas na América do Sul como sendo nela
fabricados, mas faz um bom comércio de estátuas da Virgem, supostas constituir produção da Itália e França, onde adornam tantas casas de camponeses.
[A46]
Nota de 1866 — A Estrada de Ferro São Paulo e Jundiaí está presentemente quase terminada de Santos até Jundiaí. O efeito destas várias estradas de
ferro está se tornando sensível, e embora algumas delas no Império não estejam dando muito rendimento, devem acabar por ser de grande utilidade para
o país. A estrada de São Paulo foi muito bem localizada, pois penetra no interior de uma das mais férteis províncias do sul.
Notas do tradutor:
[T*]
No original: Cubitão.
[T67]
Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, 1663, por Simão de Vasconcelos, padre jesuíta; 2ª edição, Rio de Janeiro, 1864. |