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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - CUBATÃO EM... - 1839 - BIBLIOTECA NM
1839-1855 - por Kidder e Fletcher - 08

Clique na imagem para ir ao índice do livroEm meados do século XIX, os missionários metodistas estadunidenses Daniel Parrish Kidder (1815-1892) e James Cooley Fletcher (1823-1901) percorreram extensamente o território brasileiro - passando inclusive por Santos e por Cubatão em 1839 (Kidder) e 1855 (Fletcher) -, fazendo anotações de viagem para o livro O Brasil e os Brasileiros, que teve sua primeira edição em 1857, no estado de Filadélfia/EUA.

Kidder fez suas explorações em duas viagens (de 1836 a 1842), e em 1845 publicou sua obra Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil (leia), sendo seguido por Fletcher (a partir de 1851), que complementou suas anotações, resultando na obra O Brasil e os Brasileiros, com primeira edição inglesa em 1857 e sucessivamente reeditada.

Esta transcrição integral é baseada na primeira edição brasileira (1941, Coleção "Brasiliana", série 5ª, vol. 205), com tradução de Elias Dolianiti, revisão e notas de Edgard Süssekind de Mendonça, publicada pela Companhia Editora Nacional (de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre), publicada em forma digital (volume 1 e volume 2) no site Brasiliana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - acesso em 30/1/2013 - ortografia atualizada - páginas 136 a 155 do volume 1):

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O Brasil e os Brasileiros

Daniel Parrish Kidder/James Cooley Fletcher

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Polícia e venda

Imagem: reprodução da página 137 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Capítulo VIII

Iluminação da cidade.

As ruas de poucas cidades são mais bem iluminadas do que as do Rio de Janeiro. O gasômetro do Aterrado envia as suas canalizações para os mais remotos subúrbios da cidade, assim como através de muitos dos intrincados logradouros da cidade velha e da cidade nova.

Aqui não existe o eufemismo que muitos governos municipais empregam nos Estados Unidos — isto é — que a lua brilha durante a metade do ano; pois no Rio, quer Cíntia esteja cheia ou esconda seus raios por sob nuvens tempestuosas, as lâmpadas continuam a brilhar, com toda a intensidade de sua luz. O carvão para o gás vem da Inglaterra.

Depois de 10 horas da noite, pouca gente se vê nas ruas. Os brasileiros são eminentemente um povo que vai cedo para a cama e cedo se levanta. Quando o sino bate dez horas, todos os escravos se somem; e aí, daquele que for colhido na rua após o badalar, anunciando a hora em que a lei prescreve que já devia estar em casa do seu senhor; se atrasa, a polícia prende-o e leva-o para a prisão comum até que o seu proprietário venha resgatá-lo por bom preço.

A mesma regra não se aplica aos homens livres; contudo, podia-se pensar que igualmente exerce a sua força sem consideração de classe, uma vez que os fluminenses, em geral, recolhem-se às 10 horas. Nada é mais surpreendente, para um estrangeiro do Norte, para quem as noites são tão atraentes, com seu frescor, sua fragrância, e seu brilho, do que ver as ruas e os belos subúrbios da cidade quase tão abandonados e silenciosos como as ruínas de Teba ou Palmira.

Polícia.

A polícia do Rio de Janeiro é militarizada e bem disciplinada por oficiais do exército. Seus componentes são dotados de plena autoridade, e fazem questão de usá-la. Grandes dificuldades ocorrem às vezes entre os beleguins e os estrangeiros, quando, em certas ocasiões, estes merecem ser censurados; mas, é bom para um Young América, quando em viagem pelo Cabo Horn em rumo à Califórnia, sofrer a coação total desses "brasileiros amarelos" que eles afetam desprezar.

A polícia é armada. Durante o dia, podem ser vistos isolados ou aos pares, guardando seus postos nos lugares convenientes para fiscalizar os escravos e todas as outras pessoas suspeitas de promover desordens.

Aqui é o policial acompanhado de três ou quatro de seus companheiros, estrangeiros; acolá, com um simples colega, permanece de pé junto à fonte da Carioca; ou então, com o seu boné tombado, seu uniforme azul, espada, cinturão e pistolas, exibem-se numa venda da esquina, onde o sr. Antonio do Faial, com seus tamancos [A24], vende cachaça, fumo em rolo, carne-seca com farinha, vinho tinto de Lisboa e feijão preto.

Os artigos acima mencionados estão em estoque, e servem para o consumo das classes mais baixas, que formam a freguesia dessas pequenas vendas. Às vezes, melhora a lista dos artigos à venda e a ela se somam a manteiga, trazida da Irlanda, o toucinho vindo dos Estados Unidos, cebolas de Portugal, sardinhas e, em menor quantidade, presunto e salsichas.

Esses vendeiros também negociam em lenha, que vendem sob a forma de rachas de madeira finamente cortadas, que - juntamente com o carvão - é o pequeno complemento do material de cozinha no Brasil. Em todas essas vendas, veem-se as únicas pessoas que no Rio bebem muito, salvo os ingleses e americanos, e que são os escravos. Frequentemente os congos e moçambiques tornam-se eloquentes sob a ação da cachaça e, nessas ocasiões, o polícia é o árbitro eficiente.

Poucas cidades encontrei mais ordeiras do que o Rio de Janeiro; a polícia aí é, geralmente, tão alerta que, em comparação com Filadélfia e New York, raramente ocorrem brigas. Senti mais segurança pessoal, altas horas da noite, no Rio, do que quando estive em New York. Entretanto, há ocasiões em que a polícia recebe fortes censuras pela imprensa por causa do seu descuido.

O trecho seguinte, transcrito de um Correio Mercantil de data recente, é um bom exemplo: — "Na noite de anteontem, depois das oito horas, um indivíduo de nome Mauricio foi atacado por um bando de capoeiras [A25] que caíram de cacete sobre ele, ferindo-o na testa e contundindo a sua coxa de tal maneira que chegaram a lesar a artéria. A vítima, banhada em sangue, foi socorrida pela farmácia do sr. Pires Ferrão, tendo aí recebido os necessários socorros, que lhe foram ministrados pelo dr. Thomaz Antunes de Abreu, que correu a socorrer o pobre homem assim que foi chamado. Nenhuma autoridade policial apareceu para tomar conhecimento do criminoso fato!"

Tais atentados são exceções, e alguns artigos, baseados em fatos como o acima narrado, chamam a polícia ao seu dever.

Jogo e loterias.

Há, porém, uma ofensa ao bem público, a que a polícia costumava fechar os olhos por ocasião da minha permanência no Rio, e que era o jogo. Parece ser um hábito inveterado entre alguns brasileiros; quando estive retido em quarentena com alguns brasileiros, tive oportunidade de verificar quando todas as classes, representadas no Lazareto, entregavam à paixão do jogo, logo que o padre se retirava.

No Rio, as leis são muito severas contra as casas de jogo; e há vezes em que os seus proprietários são prontamente presos pela polícia. Entretanto, na Rua Princesa, durante os anos de 1852 e 1853, um certo advogado, todas as noites de sábado, transformava sua casa em ponto de reunião de jogadores profissionais, (inclusive o advogado) e da nova vítima que vinha ser depenada.

Quando saía, todos os sábados para o meu serviço religioso, às nove horas da manhã, as suas carruagens ainda estavam em frente à porta, e os seus criados sonolentos, bocejavam e rogavam pragas. Os policiais desciam regularmente a Rua do Catete, todas as horas da noite e do dia, e mesmo assim passavam-se meses e meses sem que o antro fosse fechado, até que a suas operações foram afinal suspensas pelo suicídio de um dos parceiros.

Há uma outra espécie de jogo, mais deletéria em seus efeitos, favorecida e sustentada pelo governo. Refiro-me às loterias. Não se trata de trapaça, pois os prêmios existem e, quando ganhos, são pagos. Se se pretende erigir uma igreja, um teatro, ou qualquer outro edifício público, o governo garante a extração de uma loteria. Há sempre seis mil bilhetes, a 20$000 cada um, sendo o mais alto prêmio 20 contos, e o segundo prêmio metade dessa soma; seguem-se mais dois mil bilhetes, que conferem prêmios de 20$000 para cima.

Por toda a parte da cidade, há pontos de venda dos bilhetes e, no interior do país, veem-se vendedores de bilhetes a cavalo, que vão de casa em casa. Não há fraude na distribuição dos prêmios, e tal é a procura por essa espécie de jogo que os bilhetes são vendidos em poucos dias.

Os efeitos são maus, pois os brancos mais pobres e os pretos mais miseráveis raspam, trapaceiam e roubam até que consigam a quantia suficiente para adquirir uma fração do bilhete, correndo imediatamente a comprá-los no ponto em que se ostenta o letreiro: "anda a roda hoje", escrito por cima de uma figura representando a roda da Fortuna. Quando um tal estado de coisa é obra do próprio Estado, torna-se difícil, para as autoridades municipais, combater o jogo particular.

O quartel general da Polícia está localizado num antigo edifício público da rua do Conde.

Governo municipal.

O governo da cidade, composto de nove vereadores, que formam a Câmara Municipal, é eleito pelo povo do Rio, (isto é pelas pessoas que possuem 100$000 de renda — cerca de 50 dólares) — de quatro em quatro anos.

A Câmara Municipal está situada no Campo de Santana. O governo obriga a vacina e, no andar térreo desse edifício todos devem se apresentar, às quintas e aos sábados, para serem vacinados gratuitamente: os pacientes são obrigados a voltar passados oito dias. Um trecho do relatório do ministro do Império é dedicado ao assunto e, no relatório de 1854, o ministro afirma que, nas grandes cidades, é fácil cumprir a lei, mas nas aldeias e no interior é difícil vencer os obstáculos, que a superstição põe no caminho.

Mendigos.

Eis uma classe, que não pertence em especial a qualquer região do mundo, e que está sob a especial vigilância da polícia. Todos os sábados os mendigos fazem a sua coleta. O sr. Walsh
[T29] notou, em 1828, que os mendigos são raramente vistos nas ruas do Rio de Janeiro. Isto esteve longe de se verificar em 1838, quando o dr. Kidder aqui esteve.

Pela indulgência ou descuido da polícia, grande número de vagabundos perambulam continuamente pelas ruas, importunando os transeuntes por esmola; e mendigos de toda espécie fazem ponto nos logradouros do centro da cidade, onde regularmente ficam aguardando os transeuntes, que saúdam com uma triste súplica: "Favoreça o seu pobre por amor de Deus." Se alguém, ao invés de dar-lhe esmola lembra-se de responder à fórmula "Deus lhe favoreça", não está seguro sempre de poder escapar sem ouvir um insulto.

Quando esse estado de coisa atingiu o auge, e verificou-se que numerosos farsantes se disfarçavam como mendigos, o chefe de polícia pregou-lhes uma peça. Ofereceu aos agentes de polícia uma recompensa de 10$000, por cada mendigo que eles prendessem e entregassem à Casa de Correção.

Em poucos dias, foram presos nada menos de 171 vagabundos, dos quais 40 foram empregados no Arsenal de Marinha. O resto, foi obrigado a trabalhar na penitenciária, até liquidar as custas da sua apreensão. Essa medida surtiu o mais feliz efeito, e as ruas ficaram, daí em diante, relativamente livres de mendigos, embora as pessoas realmente necessitadas da caridade pública pudessem pedir esmolas à vontade.

Em 1855, porém, o mal se tornou novamente escandaloso. Todas as espécies de mendigos surgiram por toda a cidade, e finalmente descobriu-se que os escravos pobres e velhos — inclusive os doentes de elefantíase e os cegos — eram mandados esmolar pelos seus próprios senhores. Um novo chefe de polícia, entretanto, ordenou uma investida contra tais mendicantes; prendeu-os e sujeitou-os a exame.

Nenhum escravo, de então em diante, foi mandado esmolar, pois o público admitiu que o proprietário que havia usufruído do fruto do trabalho de um escravo, durante os seus dias de saúde, estava na obrigação a cuidar dele quando chegasse aos dias de velhice ou de doença [A26].

Doze mendigos foram considerados objeto real da caridade pública, e tiveram licença para mendigar. Esses mendigos, cegos e aleijados, têm agora o monopólio de viver de esmolas do bom povo fluminense; e, acredito, que não encontrariam melhor profissão. Alguns são carregados em rede por dois escravos, ou puxados por um. Outro, dignamente refestelado num pequeno carro, puxado por um gordo carneiro, e um outro, perneta, montado num cavalo branco.

Às vezes, no interior do país, mendigos cujas extremidades, — os pés — estão livres de qualquer enfermidade, fazem-se cavaleiros, desdenhando andar a pé, e não deixando de receber por isso menor caridade do que se estivesse arrastando de porta em porta.

Certa ocasião uma mendiga, com uma pluma enfeitando o seu chapéu e montada a cavalo, aproximou-se de um amigo meu, em Santo Aleixo e, ao pedir-lhe esmola, ficou muito indignada com os comentários que ouviu ao disparate da sua vestimenta. O provérbio inglês não é notavelmente lisonjeiro para tais mendigos; mas uma aplicação apropriada do mesmo nunca foi bem ouvida na terra de Santa Cruz.


Mendigo

Imagem: reprodução da página 141 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Prisões.

A Casa de Correção, a que nos referimos em página anterior, está localizada junto de um alto morro, entre os subúrbios de Catumbi e Mata-Porcos
[T30]. Os terrenos a ela pertencentes são cercados por altas muralhas de pedra, construídas pelos presidiários, que são utilizados em vários melhoramentos do local.

Na encosta do morro existe uma pedreira, e numerosos presos são empregados em britar pedra, para prolongar as muralhas e construir novos edifícios. Outros são obrigados a carregar terra, em gamelas de madeira na cabeça, de uma parte do terreno para outra, ou a encher uns carros que, sobre trilhos de ferro, correm das muralhas interiores até às bordas de um alagadiço a quase uma milha de distância, o qual, por esse processo, está sendo conquistado ao mar e convertido em valiosos terrenos.

Os criminosos mais refratários são acorrentados juntos, geralmente de dois em dois e, às vezes, aos quatro e aos cinco, em fila, levando uma corrente comum, presa na perna de cada um deles.

A Casa de Correção é um belo edifício que, no ponto de vista arquitetural não tem similar nos Estados Unidos. O diretor, sr. Falcão, encontra porém falhas no seu plano. Este ainda não foi completado, e é grato saber que o governo brasileiro está tomando medidas para realizar uma completa reforma no edifício da prisão e em sua disciplina. É uma dessas demonstrações de progresso inegáveis numa nação.

Em 1852, o sr. Antonio J. de M. Falcão, — que, por sua inteligência e largas vistas, está admiravelmente apropriado para as suas funções, — foi mandado aos Estados Unidos para estudar alguns dos nossos sistemas penitenciários. O relatório do sr. Falcão ao Ministro da Justiça (sr. J. Thomaz Nabuco de Araujo) — vem incluso numa das mensagens imperiais para o ano de 1854, e contém grande interesse.

Parece estranho ler-se, numa mensagem oficial de um ministro brasileiro, opiniões a respeito dos sistemas de Auburn, e Pensilvânia; e é para louvar o sr. Falcão, que o seu hábil relatório tenha sido integralmente publicado nos Estados Unidos, no Jornal of Prision Discipline tão proficientemente dirigido pelo sr. F. A. Packard, Esc., de Philadelphia.

O sr. Falcão dá a sua preferência ao sistema da Pensilvânia. O relatório do ministro da Justiça, relativo ao ano supra, está referto de detalhes instrutivos referentes às penitenciárias e às prisões. Não é, contudo, uma mera narração seca de fatos, porém contém sábias sugestões e exequíveis melhorias, expostas à nação, de uma forma ao mesmo tempo clara, atrativa e convincente.

A prisão da cidade, conhecida por Aljube
[T31], e o Xadrez de Polícia, estavam ambas num triste estado: — má ventilação, má alimentação, e miseráveis células úmidas mereceram a denúncia do sr. Falcão, e outros filantropos esclarecidos do Rio, e esses males serão em breve remediados.

Além das prisões enumeradas, há lugares de segregação em diferentes fortalezas; as de Santa Cruz, Ilhas das Cobras são as principais. A maioria dos prisioneiros é de escravos, se bem que as leis brasileiras não distingam cor e condição social.

No relatório do ministro da Justiça, relativo ao ano de 1854, verifiquei que, de 7 de setembro de 1853 a 16 de março de 1855, quarenta escravos e 21 homens livres, (incluindo brancos e pretos) foram condenados a morte, por assassinato. As penas de 14 escravos foram comutadas, assim como as de quatro homens livres.

Um departamento da Casa de Correção é apropriado ao castigo dos escravos, que para aí são mandados a fim de serem punidos por desobediência ou por faltas pequenas. São recebidos a qualquer hora do dia e da noite, e retidos livres de despesas, tanto tempo quanto os seus senhores o quiserem. Seria de estranhar que não se dessem aí, às vezes, cenas de extrema crueldade.

As punições da Casa de Correção não são, entretanto, o único castigo que recebem os escravos insubmissos. Há punições especiais e, entre as mais comuns, figuram a máscara de estanho, o colar de ferro, e os pesos e correntes. — As últimas duas se destinam aos fujões; porém a máscara de estanho é muitas vezes colocada no rosto para evitar que os escravos da cidade bebam cachaça, e os escravos do interior comam terra, medida que se aplica também a muitos negros do campo. Essa mania, pois não se pode chamar de outra maneira, quando não dominada, causa moleza, doença e morte.

Escravidão.

O assunto da escravidão no Brasil é um dos que permitem maiores esperanças, e mais cheios de interesse. A Constituição Brasileira não reconhece, nem direta nem indiretamente, a cor como base dos direitos civis; portanto, uma vez livres, os homens brancos ou mulatos, se possuem energia e talento, podem erguer-se às mais altas posições sociais, das quais a sua raça está excluída nos Estados Unidos.

Até 1850, data em que o tráfego dos escravos foi realmente abolido, considerava-se mais econômico, nas plantações do interior, usar um escravo, apenas durante cinco ou sete anos, e depois adquirir outro, sendo isto preferível a cuidar dos primeiros. Informaram-me disso no interior, e alguns brasileiros e as minhas próprias observações o confirmaram.

Desde que, porém, cessou o desumano tráfico com a África, o preço dos escravos se elevou, e aumentaram os motivos egoístas para se tomar maior cuidado com os mesmos. Os escravos da cidade são tratados melhor do que os das plantações: — parecem mais alegres, mais brincalhões, e têm maiores oportunidades de alforria. Mas, assim mesmo, ainda se verificam crueldades em alguns casos, pois os suicídios entre eles — escravos — quase desconhecidos em nossos Estados do Sul, são muito frequentes nas cidades do Brasil. Pode isso todavia ser atribuído à crueldade?

Um negro nos Estados Unidos descende de homens que, por vários modos, adquiriram o conhecimento das esperanças e dos temores, dos prêmios e castigos que as Escrituras conferem ao bem e ao mal: — evitar o crime do suicídio é tão fortemente aconselhado como evitar um assassinato. O negro norte-americano tem, por isso, um senso moral mais elevado do que o seu irmão recém saído da floresta virgem e do paganismo da África. Por isso, este último, atormentado pela crueldade, ou quando o seu altivo espírito recusa curvar-se ao branco, dá o temeroso salto que o leva ao mundo invisível.


O peso, o colar de ferro e a máscara

Imagem: reprodução da página 146 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Em favor da liberdade.

No Brasil, tudo é a favor da liberdade
[A27]; e tais são as facilidades que encontra o escravo para se emancipar que, quando emancipado, se possui qualidades próprias, pode galgar as mais altas eminências do que um preto simplesmente livre, em nosso país, por isso, um fuit poderá ser escrito contra a escravidão neste Império antes que ocorra a segunda metade deste século.

Alguns dos homens mais inteligentes que encontrei no Brasil — homens educados em Paris e Coimbra - eram descendentes de africanos cujos antepassados foram escravos. Assim se um homem tiver liberdade, dinheiro e mérito, não importa de que cor seja a sua pele, não encontrará posição nenhuma que lhe seja recusada na sociedade. É surpreendente também observar a ambição e os progressos dos homens que têm sangue preto correndo em suas veias.

A Biblioteca Nacional fornece não somente salas sossegadas, grandes mesas, e grande coleção de livros para os que procuram conhecimentos, como também papel e penas para os que precisam desse auxílio em seus estudos. Alguns dos mais assíduos estudantes que aí se encontram são mulatos.

Antigamente uma grande e próspera tipografia do Rio de Janeiro — a do sr. F. Paulo Brito — pertencia e era dirigida por um mulato [T32]. Nos colégios, nas escolas de Medicina, Direito e Teologia, não há distinção de cor. Deve-se entretanto admitir que exista um pouco — embora nunca muito pronunciada — havendo sempre certo preconceito em todo o país a favor dos homens de pura descendência branca.

Em certos casos de herança, um escravo pode comparecer diante de um magistrado, ter o seu preço fixado e adquirir-se a si próprio; fui informado de que um homem, bem dotado de inteligência, embora haja sido escravo, não pode ser excluído de nenhuma posição oficial, por mais alta que seja, exceto a de senador do Império.

O aspecto dos escravos brasileiros é muito diferente dos de sua classe nos Estados Unidos. Naturalmente os servidores domésticos, nas grandes cidades, vestem-se decentemente por via de regra; mas, mesmo neste caso, andam quase sempre descalços. É uma espécie de estigma da escravidão.

Nas tabelas de preços de passagens para as barcas, vê-se um preço para pessoas calçadas e um mais baixo para as descalças. Nas casas de muitos dos fluminenses ricos, pode-se atravessar uma fila de crianças de cabeça lanosa, na maioria despidas de qualquer roupa, que têm licença de correr por toda a casa e de se divertirem vendo as visitas. Nas famílias que têm alguma tintura de costumes europeus, esses desagradáveis pequeninos bípedes são conservados no quintal.

Um dos meus amigos costumava jantar frequentemente em casa de um velho general, da alta sociedade, em torno de cujo mesa pulavam dois pequeninos pretos de azeviche, que quase se penduravam no pai (como eles o chamavam) até receberem o seu bocado de comida das mãos deste, e isso se dava antes mesmo do general principiar a jantar. Onde quer que as senhoras da casa se dirijam, esses animaizinhos de estimação são colocados nas carruagens, e considerar-se-iam muito ofendidos em serem esquecidos como qualquer filho espoliado. Eles são filhos da ama de leite da dona da casa, a que ela concedeu alforria. E, de fato, toda ama fiel é, geralmente, recompensada com a alforria.

O aspecto da população preta masculina, que vive ao ar livre, é tudo menos agradável, a sua indumentária é a mais grosseira e suja que se possa imaginar. Centenas de pretos vagueiam pelas ruas, com grandes cestos redondos de vime, prontos a carregar tudo o que se deseje. Tão barato e rápido é esse serviço, que um criado branco raramente dispõe-se a carregar um embrulho para casa, por menor que este seja, e considerar-se-iam insultados se lhes recusasse um preto de ganho, para aliviá-lo de uma peça de chita ou de uma melancia.

Esses pretos são mandados pelos seus senhores servir na rua e deles exigem uma quantia diária que devem trazer para casa. São descontados de uma parte de seus lucros para comprar o alimento e, de noite, dormem numa esteira ou tábua nos porões da casa. Frequentemente se veem horríveis casos de elefantíase, e outras doenças, sem dúvida geradas ou agravadas pelo pouco trato que lhes dão os senhores.


Preto de ganho e quitandeira

Imagem: reprodução da página 147 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Os negros minas.

Antigamente, os carregadores de café pertenciam à melhor raça negra; eram quase todos da tribo dos minas, da Costa de Benin, atléticos e inteligentes. Trabalhavam seminus, e suas formas ágeis e sua pele preta de azeviche deixavam-se ver admiráveis quando se apressavam num trote ligeiro, parecendo não darem conta de suas pesadas cargas. Essa tarefa era bem paga, mas breve dava cabo deles.

Tinham entre si um sistema de comprar a liberdade uns dos outros, daqueles que lhes mereciam maior respeito. Depois de terem pago aos senhores a soma que estes diariamente lhes exigiam, juntavam o excedente para libertarem o favorito.

Houve um preto mina, no Rio, notável pela sua altura, que era chamado pelos outros o Príncipe, sendo de fato do sangue real de seu país natal. Fora feito prisioneiro de guerra e vendido para o Brasil. Dizem que os seus súditos, no Rio, uma vez libertaram-no à sua custa: — ele voltou para a África, empenhou-se numa guerra e foi feito prisioneiro pela segunda vez, tendo sido recambiado para o Brasil.

Se foi novamente entronizado, não sei, mas a perda de sua realeza não deveria ter pesado muito em seu espírito, pois foi um excelente carregador e, quando um dos meus amigos embarcou, o Príncipe e sua tropa incumbiram-se de transportar a sua bagagem para bordo. Ele carregou o caixote maior na cabeça, num trajeto de duas milhas e meia. Esse mesmo caso não se daria em Filadélfia, com as forças conjugadas de quatro negros americanos, e seria necessário aliviar o caixote de metade de seu conteúdo antes que os mesmos pudessem subir uma escada com o mesmo.

De tempos a tempos, o viajante encontra negros daquela região da África, de que muito pouco se sabe, a não ser pelos relatos de exploradores como Livingston, Barth e Burton. Julguei que os escravos dos Estados Unidos descendessem das menos nobres estirpes africanas, e que mais de um século de escravidão tivesse produzido sobre eles os mais degeneradores efeitos. Encontrei, porém, no Brasil, africanos de mentalidade muito inferior, e outros quase indomáveis. O negro mina raramente dá um bom criado, pois só se contenta em respirar o ar livre. Os homens se fazem carregadores de café, e as mulheres quitandeiras.

Esses minas são abundante na Bahia, e em 1838, mergulharam essa cidade numa sangrenta revolta - a última a que essa florescente municipalidade assistiu. Tornou-se a mesma temível por causa das combinações secretas desses minas, que são maometanos, e usam uma língua não compreendida por outros africanos ou pelos portugueses.

Quando uma delegação da English Society of Friends visitou o Rio de Janeiro, em 1852, veio ao seu encontro uma deputação de oito ou dez negros minas, que haviam juntado dinheiro com grande trabalho e, tendo conquistado sua liberdade, queriam regressar à sua terra natal. Tinham fundos para pagar a passagem de regresso para a África, mas desejavam saber se a costa da mesma estava realmente livre da escravidão. Sessenta de seus companheiros haviam deixado o Rio de Janeiro, rumo a Badagry (costa de Benin) um ano antes, e haviam desembarcado em segurança.

Os bons Quakers deram pouco crédito a esta última informação, pensando ser quase impossível que alguém que algum dia tivesse sido escravo "pudesse ser capaz" e tivesse a suficiente coragem para fazer tão perigosa experiência; porém a afirmação dos minas foi confirmada por um armador do Rio de Janeiro, que pôs nas mãos dos Irmãos uma cópia do documento com o qual os sessentas minas viajaram, e que mostrava que eles haviam pago quatrocentos dólares pela passagem. Poucos dias após esse encontro, os senhores Candler & Burgess receberam, desses belos exemplares de humanidade, uma carta lindamente escrita em árabe por um dos seus chefes, que era maometano.

No Rio de Janeiro, os pretos pertencem a muitas tribos, algumas inimigas entre si, com diferentes usos e linguagens. Os negros minas conservam-se ainda maometanos, porém os outros se dizem católicos. Muitos deles, entretanto, continuam suas práticas pagãs. Em 1839, o dr. Kidder assistiu a um enterro no Engenho Velho, que era da mesma espécie dos curiosos costumes de enterramento que os viajantes africanos contemplaram no Rio Gaboon.

É raro não se ver, nos balaios onde as quitandeiras carregam suas frutas, um fetiche. O mais comum é um pedaço de carvão, com o qual, informava-nos confusamente a sua dona preta, o mau olhado era afastado. Há uma singular sociedade secreta entre os negros, nas quais os mais altos postos são destinados ao homem que destruiu maior número de vidas. Não são tão numerosas como antigamente, mas às vezes atacam os inocentes. Esses pretos se denominam a si próprios capoeiras e, durante uma festa, saem aos bandos pelas ruas, à noite, e atiram-se sobre os pretos que porventura encontram em seu caminho. Raramente atacam os brancos, talvez por saberem quanto isso lhes custaria caro.

Os brasileiros não são os únicos proprietários de escravos no Império. Há muitos ingleses que possuem escravos cativos há muito tempo — alguns há muitos anos -  e outros que adquiriram escravos até 1843, ano em que foi votado o chamado ato de lorde Brougham.

Por esse ato, foi considerado ilegal os ingleses venderem ou comprarem escravos em qualquer país e, caso adquirissem propriedade sobre homens, quando de volta à Inglaterra, se tornariam culpados por tal ato e, por conseguinte, seriam processados pela justiça. As companhias inglesas de mineração, cujos proprietários estão na Grã-Bretanha, mas cujo campo de operação é São João del Rei no Brasil, possuem cerca de oitocentos escravos, e alugam um milheiro deles.

1865, o governo inglês pôs termo a essa situação.

Os franceses e os alemães também compram escravos, embora sem a permissão dos seus respectivos governos.

Escravidão condenada.

Se se perguntar "quem trabalhará no Brasil, quando não houver mais escravos?" a resposta será que, mesmo que os laços da escravidão sejam partidos, o homem e um homem melhor, ainda existe; virão imigrantes da Alemanha, de Portugal, dos Açores e da Madeira.

1865, muitos estão emigrando do Sul dos Estados Unidos.

É um fato notável a assinalar que os emigrantes começaram a chegar da Europa, aos milhares, depois de 1853. Em 1850-51, foi cessado o tráfico de escravos africanos e, no ano seguinte, iniciou-se a presente colonização relativamente rigorosa. Cada ano, o número de colonos aumenta, e os estadistas do Império estão atualmente dedicando muita atenção para descobrir o melhor meio de por esse meio promover o progresso do país.

Quase todos os passos para o progresso do Brasil têm sido preparados por um avanço prévio gradativo: — esse país não deu de uma vez o salto para se governar por si. Ergueu-se da condição colonial pela residência da corte de Lisboa, e gozou durante anos a situação de parte constitutiva do Reino de Portugal. A atual situação de paz do Império, sob o governo de d. Pedro II, foi precedida por uma década em que as capacidades do povo para se governar a si próprio se desenvolveram sob a Regência. A efetiva cessação do tráfico de escravos africanos é apenas o passo precursor de outro mais importante.

A escravidão está condenada no Brasil. Como já se disse, uma vez obtida a liberdade, não há em geral entrave social, como nos Estados Unidos, para manter em baixa posição qualquer homem de mérito. Tais entraves existem, realmente, nos Estados Unidos. Das quentes regiões do Texas aos extremos frigidíssimos da Nova Inglaterra, os pretos livres, por mais dotados que sejam, sofrem obstáculos à sua ascensão social, que são de fato insuperáveis.

Do outro lado da linha imaginária que separa a União Norte-Americana das possessões da Inglaterra, a condição dos africanos, socialmente falando, não é muito superior. A raça anglo-saxônia, nesse ponto, difere essencialmente da latina, aquela pode ser movida a uma generosa piedade pelo negro, mas não o ajuda pessoalmente. Esta, tanto na Europa como nas duas Américas, sempre colocou o mérito acima da cor. Dumas, o novelista mulato, é tão estimado em França como Dickens ou Thackeray na Inglaterra.

Soube de um exemplo, por mim mesmo testemunhado, que confirma fortemente a observação feita acima. Em 1849, tive o privilégio de assistir, em companhia de grande número de estrangeiros, a uma reunião em Paris, dada pelo sr. Tocqueville, ministro das Relações Exteriores da França.

Fui apresentado, então, a um pastor que estava de visita aos Estados Unidos e que, pela primeira vez, contemplava os aspectos da alegre capital. Dirigimo-nos à sala de bebidas, de braços dados. Achei que esse pastor, por sua inteligência, bom senso e modéstia, conquistava admiração de todos com que se punha em contato. Poucas semanas depois disso, uma Universidade Europeia de alta reputação honrava-o com o grau em Teologia. Na Inglaterra, ele era observado com interesse e curiosidade; mas, tivesse ele proposto uma aliança social compatível com a sua própria situação, duvido que tivessem aceito a sua oferta.

Em 1856, o mesmo pastor foi nos Estados Unidos expulso de um ônibus, por um condutor que, diariamente, permitia - sem a menor observação de sua parte - que estrangeiros sujos, das mais baixas classes europeias, ocupassem os lugares do mesmo ônibus. Quando o assunto foi submetido aos tribunais, a decisão foi a favor do condutor e tal decisão não teve por justificativa outro qualquer argumento a não ser que o paciente era um homem que descendia de africanos [A28].


Notas do autor:

[A24] Uma espécie de chinelo com sola de madeira muito usado pelas classes pobres dos brancos e dos pretos livres.

[A25] Africanos que, armados de punhal, praticavam tropelias pelas ruas, mas que atualmente são mais raros no Rio.

[A26] O provérbio português é muito expressivo: "Quem comeu a carne, que coma os ossos."

[A27] Uma senhora do Sul dos Estados Unidos (esposa do estimadíssimo cônsul norte-americano do Rio, durante a administração do presidente Pierce) costumava dizer: "O verdadeiro paraíso dos negros é o Brasil", pois neste país eles encontram um clima quente e, se quiserem, poderão abrir caminho na vida.

[A28] Nota de 1866: As leis e o tratamento dos escravos melhoraram grandemente depois de 1850. Calcula-se que, pela emancipação espontânea, pela compra pelo escravo de sua própria liberdade, e pela emancipação dos que se chamam africanos livres (os capturados em navios negreiros e postos como aprendizes durante 14 anos), o número de escravos decresceu de um milhão, de modo que atualmente não chegam a dois milhões. A escravidão está limitada principalmente às províncias marítimas centrais.

Os negros emancipados não foram perdidos para o trabalho, como alguns defensores da escravidão nos quiseram dar a entender. De 1850 a 1860, inclusive, as grandes plantações tropicais de café, açúcar, algodão e fumo, realmente aumentaram em mais de 30%.

Um dos mais recentes e notáveis casos de alforria foi praticado pelo imperador que, por ocasião do casamento (16 de outubro de 1864) da imperial princesa com o conde d'Eu, libertou os escravos que lhe cabiam por dote.

O sr. Silveira da Mota, senador por Goiás, tem-se mostrado um estadista esclarecido a esse respeito. Vem repetidamente apresentando projetos para limitar a escravidão, e na legislatura de 1865, depois da derrota dos denominados "Estados Confederados" da América do Norte, seus esforços, com os do venerando senador visconde de Jequitinhonha, trouxeram a questão mais fortemente aos olhos do povo brasileiro; e a escravidão (no caso da instituição ter durado mais tempo nos Estados Unidos) teria desaparecido em vinte anos sem legislação especial, e será sem dúvida tão restringida pela lei que se virá a extinguir em data muito próxima.

A. C, Tavares Bastos, na Câmara dos Deputados, tem sido um perseverante defensor da emancipação. A solução tem muitos aspectos difíceis de resolver; os votos de todos os filantropos é para que os brasileiros tenham bastante sabedoria para que possam remover essa úlcera do seu organismo político.

Notas do tradutor:

[T29] Rev. R. Walsh Notices of Brazil in 1828 and 1829, Londres, 1830.

[T30] Rua Mata-Porcos, nome derivado de Mata dos Porcos, atual Estácio de Sá.

[T31] Prisão do Aljube, na então Rua da Prainha.

[T32] Loja de Paula Brito na antiga Praça da Constituição, depois Largo do Rodo, hoje Praça Tiradentes, lado do Teatro São Pedro, atual Teatro João Caetano, a meio caminho das então ruas do Cano e dos Ciganos. Poder-se-ia supor que "o mulato que a dirigia", referido por Fletcher, seja Machado de Assis; este, porém, foi apenas empregado e colaborador da casa, sendo a referência ao próprio Paula Brito, também mestiço escuro.