HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO
Os cinco Manuéis dos Açores (3)
Foram cinco famílias açorianas a colonizar Cubatão. Em todas, o patriarca se chamava Manuel
Nas páginas do jornal santista A Tribuna,
o pesquisador, historiador e cronista Costa e Silva Sobrinho incluiu inúmeros textos, alguns dos quais foram mais tarde republicados como parte de sua
obra Romagem pela Terra dos Andradas. Como este, na série Santos noutros Tempos, publicado na
edição de 12 de novembro de 1950 (ortografia atualizada nesta transcrição):
Marco judicial colocado na antiga Fazenda dos Jesuítas, no Cubatão, em 1837
Foto publicada com a matéria no livro Romagem pela
Terra dos Andradas, pág. 129
O Cubatão e os seus povoadores
Costa e Silva Sobrinho
O Cubatão, como que despertado de um
longo letargo, parece querer inaugurar agora um novo período de esplendor, igual porventura àquele em que se viam em seu porto balandras abarrotadas
de mercadorias e outras inúmeras embarcações.
Por isso, espalhando a imaginação pelos dias findos, averiguamos que também a história da terra de
Afonso Schmidt tem rolado no esquecimento, como as águas silenciosas do seu famoso rio.
Afigura-se-nos, entretanto, que tamanha injustiça será apenas o prognóstico de triunfos não
esperados. É compenetrados dessa circunstância que vamos tentar restituir à história um fragmento do seu passado distante. Comecemos por um
documento importante:
Das três primeiras sesmarias concedidas por Martim Afonso de Sousa, figura logo em segundo lugar a
de Rui Pinto, cuja carta, passada na vila de S. Vicente, data de 10 de fevereiro de 1533.
Essa concessão foi feita, segundo diz o próprio Martim Afonso, porque "Rui
Pinto, cavaleiro da Ordem de Cristo, serviu cá nestas partes Sua Alteza e assim ficou para povoador nesta terra, que com ajuda de Nosso Senhor ficou
povoando".
Continua depois ele: "Hei por bem de lhe dar
as terras do Porto das Almadias, onde desembarcam quando vão para Piratinim quando vão desta ilha de S. Vicente, que se chama
Apiaçaba, que agora novamente se chama o porto de Santa Cruz..." - e hoje
Cubatão de Santos.
Segue-se a descrição dos limites da sesmaria. E finaliza declarando que faz a doação "com
a condição de que ele dito Rui Pinto aproveite as ditas terras nestes dois anos primeiros e seguintes".
Era Rui Pinto casado em Lisboa com d. Ana Pires Missel. Quando faleceu, foram tais terras herdadas
por seu pai Francisco Pinto, que as mandou vender em 1550. Adquiriram então uma parte delas os avós do mestre de campo Diogo Pinto do Rego.
Nascido em Santos, em 1709, era este filho de André Cursino de Matos e Ana Pinto da Silva. Era
neto por parte materna do capitão-mor governador de S. Vicente e S. Paulo, Diogo Pinto do Rego.
Casou o mestre de campo com Isabel Maria Caetana de Araújo, filha do provedor Timoteo Corrêa de
Góis e de Maria Leme das Neves, e faleceu em Parnaíba, em 1768. Pertencia pois uma parte da antiga sesmaria de Rui Pinto a esse mestre de campo
Diogo Pinto do Rego quando, em virtude de uma permuta, passou ela aos jesuítas.
Extinta a Companhia de Jesus pela lei de 19 de janeiro de 1759, foram confiscados os seus bens e
incorporados à Coroa.
D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, Morgado de Mateus, em 22 de janeiro de 1767, fez baixar
uma portaria ordenando ao doutor juiz de fora da vila de Santos que fizesse inventário da fazenda do Cubatão, que pertencera aos padres da
Companhia, e depois o entregasse junto com a mencionada fazenda ao tenente Antônio José de Carvalho, o qual estava encarregado de administrá-la.
Na "Fazenda do Cubatão", diz o padre Serafim Leite, ergueram os jesuítas um sobrado, de que tomava
conta em 1759 o irmão Antônio de Freitas. Depois de passar para o Fisco, arrendou-se algumas vezes, englobada com o vizinho Mogi, "Cubatões de
Santos e Mogi", em 1781, ao coronel Joaquim da Silva Castro, e dois anos depois, o contratador Bonifácio José de Andrada entrou para o tesouro,
por esses mesmos dois "Cubatões", com 124$360 réis (Hist. da Comp. de Jesus no Brasil, 6, 366).
Da relação dos bens confiscados aos jesuítas, que se encontra no vol. 44, pág. 337 e segs., dos
Docs. Interessantes, consta o seguinte:
"A fazenda do Cubatão, situada no caminho
que vai para São Paulo, não tem legado algum; mas a esta fazenda se anexaram umas terras aí místicas, que se trocaram por uma fazenda chamada da
Lapa, a qual tinha sido deixada com a obrigação de uma missa cantada cada ano à Senhora da Lapa, cuja missa se diz na capela da mesma Senhora, na
dita fazenda do Cubatão, como tudo diz o padre reitor Belchior Mendes, aos 30 de setembro de 1745, a fls. 118, do livro velho em que se assentava o
estado em que ficava o Colégio quando acabavam os reitores, cuja declaração é pelo teor seguinte:
- A fazendinha chamada da Lapa, porque já o meu antecessor a quis vender, e não ter serventia no
Colégio, falto de gente para arrumar tantos buracos, se trocou por umas terras no Cubatão com o mestre de campo Diogo Pinto do Rego, que foram de
seus avós. Parece-me que melhorou o Colégio com a troca, pois a Lapa era um sítio ridículo, exposto a gado e de pouco proveito, e as do Cubatão são
terras em que esteve um engenho de água, e a vista fará fé a quem disser o contrário. E como este sítio foi dado ao Colégio com a condição de se
cantar uma missa cada ano à Virgem Santíssima com o título da Lapa, essa mesma missa se lhe canta na capela do Cubatão, em que se colocou a imagem
da Senhora com o mesmo título. E diz este reitor mais adiante que trocara este sítio e
comprara mais dois outros por evitar as canoas dos moradores do rio acima.
"Todo o rendimento desta fazenda é a navegação das canoas pelo rio que passa pelo meio dela, e por
isso todo o projeto destes padres era que pessoa alguma tivesse mais canoas no dito rio, por ser navegação geral para S. Paulo e Santos. Esta
fazenda se acha arrendada a 100$000 por ano, mas as terras desta troca que a elas se anexaram nada rendem".
A capela de N. Senhora da Lapa ficava à margem direita do Rio Cafezal, chamado antes Rio da Lapa,
no centro do sítio ultimamente denominado Cafezal, no Cubatão.
Há vinte e cinco anos atrás (N.E.: portanto,
em 1925) a lâmpada já não tremeluzia ali no altar da Virgem; mas existiam os alicerces da
capelinha desfeita.
Tendo vindo para o Brasil alguns colonos das Ilhas dos Açores, estabeleceram-se eles afinal no
Cubatão, na referida fazenda dos extintos jesuítas. Destarte, por aviso régio de 2 de junho de 1818, expedido pela Secretaria de Estado dos Negócios
do Reino, foi ordenado que se passassem os títulos das respectivas sesmarias aos referidos colonos, sendo eles conservados onde se haviam
estabelecido. Achavam-se estabelecidos no sítio do Cubatão: Manuel Antonio, Manuel do Conde, Manuel Espinola Bittencourt, Manuel Raposo e Manuel
Corrêa.
O primeiro deles, Manuel Antonio Machado, veio para o Brasil em 1814, com 25 anos, casado com
Domingas Maria da Conceição, de 20 anos. Eram ambos naturais da Ilha Graciosa. Traziam apenas um filho, de nome Manuel Antonio, com 3 anos de idade,
nascido na Ilha Terceira. Tiveram, no Brasil, 9 filhos.
Esse mais velho, de nome Manuel Antonio Machado Júnior, foi casado com Maria Teresa de Jesus. E
teve, entre outros filhos, Manuel Antonio Machado Neto, pai do Dr. Aristides Bastos Machado, para citarmos apenas os homens.
Manuel Antonio Machado, o velho, viveu no Cubatão até o declinar melancólico dos anos. Dotado de
grandes qualidades, nele realçavam as rudezas do portugal-velho com a atividade no trabalho e o apego à família.
Começavam as suas terras logo depois do atual Cruzeiro Quinhentista, à
esquerda de quem ia para São Paulo pela Estrada Geral, e mediam 471 braças de frente até à raiz da serra, onde cantavam e fugiam as águas do rio das
Pedras. A casa de morada ficava perto do referido Cruzeiro.
Manuel Antonio e os seus companheiros sofreram ali, a princípio, acerbas estreitezas. Por esse
motivo, em 1817 representaram eles a el-rei neste sentido:
"Senhor:
"Dizem Manuel Antonio Machado e outros, constantes da lista junta, naturais das Ilhas dos Açores,
mandados conduzir com suas famílias para esta América por ordem positiva de S. Majestade, que, chegando a esta Corte, foram remetidos para a
capitania de S. Paulo, para aí se lhes dar terras onde pudessem plantar e para semear legumes e outros gêneros com que pudessem sustentar suas
pessoas e famílias.
"Recebiam unicamente cem réis em dinheiro para o sustento diário de cada um casal de filhos, o que
assim aconteceu por espaço de um ano, passando imensas fomes e necessidades, o que sendo presente a V. Majestade lhes mandou dar mais dois vinténs a
cada um filho, vindo cada um marido e mulher ter um tostão, isto é, meio tostão para cada um e os filhos dois vinténs, cada um.
"Tudo isto aconteceu estando os suplicantes em sítio onde hoje está fundada a freguesia denominada
a Casa Branca, 52 léguas distante da capital de S. Paulo; porém não sendo as terras boas e próprias para dar toda qualidade de frutos.
"Que por isso, e também por se lhes não assinalar sítio certo, dizendo-se-lhes que naquele lugar
não havia terras que se pudesse dar aos suplicantes para estes cultivarem, razão esta por que fizeram saber a V. Majestade a triste situação em que
se achavam, desamparados fora de suas pátrias, resolveu V. Majestade que os suplicantes se mudassem para onde lhes conviesse e houvessem terras que
lhes agradassem.
"E, com efeito, se foram situar em terras do Cubatão Geral de Santos, que noutro tempo foram da
extinta Companhia dos padres jesuítas, por não acharem os suplicantes outro lugar onde pudessem arrumar-se, e aí já têm feito algumas benfeitorias e
plantações para o sustento de suas famílias.
"Mas, Real Senhor, vivem os suplicantes desgostosíssimos por se lhes não ter dado
título algum das ditas terras para cada um saber até que limite chega a sua posse e domínio, e até onde podem trabalhar, pois que, por não terem os
suplicantes títulos, estão sofrendo vexames e prejuízos de uns poucos de homens que andam cortando madeiras nas terras onde os suplicantes residem,
com o que têm arruinado as suas plantações, dizendo eles que as madeiras são para o serviço de V. Majestade, sem que contudo apresentem ordem de
superior legítimo que justifique esta verdade, e não obstante terem os suplicantes requerido ao exmo. conde general para que lhes mande passar os
seus títulos ou cartas de sesmaria, nunca foram deferidos, motivos estes por que alguns dos suplicantes empreenderam vir pessoalmente por si e por
todos prostrar-se aos augustos pés de V. Majestade afim de que lhes faça a graça de mandar passar carta de sesmaria de meia légua, em quadra, a cada
um dos suplicantes, para não só ficarem com seus títulos, como para saberem o que lhes pertence e aos seus filhos para não terem embaraços e dúvidas
para o futuro com os outros sesmeiros, fazendo-lhes igualmente a graça de lhe mandar restituir o excesso que se lhes não tem pago; pois que,
mandando V. Majestade dar meia légua a cada casal, só têm os suplicantes recebido um tostão, quantia esta que não chega para o sustento de uma
pessoa, quanto mais para muitas, especialmente em lugares remotos, onde tudo é caro, por falta de gêneros e pela grande distância que há dos portos
àqueles lugares, visto que nunca foi da intenção de V. Majestade chamar os suplicantes de suas pátrias para virem sofrer em um país estranho tantas
fomes e necessidades como têm padecido com suas mulheres e filhos, continuando a dita pensão por dois anos que V. Majestade lhes concedeu, os quais
devem ter princípio deste ano em diante, que é quando os suplicantes principiaram a fazer a sua primeira plantação, pois que de outra sorte
continuarão os suplicantes a ser infelizes.
"Pedem a V. Majestade se digne, pela sua inata
bondade e justiça, deferir os suplicantes na forma que requerem. E.R.M."[**]
Apesar de concedidas as cartas de sesmarias das terras que lavraram, sofreram alguns desses
colonos sérios desassossegos. O principal deles foi Manuel Espinola Bittencourt, cujas terras dividiam ao Norte com a Serra, ao Sul com o rio
Cubatão e a sesmaria de Manuel do Conde, a Leste com o rio Perequê e a Oeste com a Estrada Geral, lado direito de quem vai para S. Paulo.
Em 1837, vinte anos depois de ali residir, teve ele as suas terras invadidas pelo alferes
Francisco Martins Bonilha, juiz de paz de S. Bernardo e sogro do dr. Manuel Dias de Toledo, então vice-presidente da Província. Recorrendo à
Justiça, fez Manuel Espinola demarcar a sua sesmaria e se viu repossuído das terras por sentença de 28 de novembro de 1842.
Consta do auto de demarcação e de medição que foram colocados nas divisas das referidas terras
vários marcos. Um deles é o que se encontra no Museu do Ipiranga, remetido pelo ilustre e saudoso engenheiro dr. Guilherme Wendel, como sendo um
marco quinhentista. Mas a equivocação é palpável.
Relatou o dr. Wendel:
"...encontrei (subindo o rio Perequê) um objeto
arqueológico, creio, de certo valor: uma antigo marco divisório, tombado no barranco direito, trezentos metros abaixo do Porto, e num lugar
denominado Rancho do Adolfo. Era uma pedra, rusticamente lavrada, sendo gravada nela uma cruz com dois ganchos no pé.
"Dizem que Antonio Francisco do Couto a tirara da água, onde deve ter pousado, talvez
durante séculos, pois, muito provavelmente não é, senão, um marco divisório entre a fazenda Acaraú e a sesmaria de Rui Pinto, que constam dos
primeiros anais quinhentistas e que justamente se confrontam pelo rio Perequê".
Esse marco e outros iguais a ele, feitos por João Gomes dos Santos, foram colocados em 25 de
novembro de 1837 nas divisas da sesmaria de Manuel Espínola Bittencourt. Estão eles descritos no citado auto de demarcação, onde o escrivão desenhou
até uma cruz com as duas hastes formando um ângulo na base da mesma cor.
Esse marco de pedra secular, adormecida e muda, será de agora em diante uma baliza na história de
Cubatão.
[**] ERM - fórmula de encerramento de antigas petições:
Espera Receber Mercê (N.E.) |
A Tribuna também publicou este artigo na série Santos noutros Tempos, na
página 19 - capa do segundo caderno - da edição de 10 de agosto de 1952 (ortografia atualizada nesta transcrição):
Imagem: reprodução parcial da matéria original
O Cubatão há cem anos atrás
Costa e Silva Sobrinho
O governo da Capitania de São Paulo
recaía em 1814 em d. Francisco de Assis Mascarenhas, conde de Palma, depois marquês do mesmo título, que a 8 de dezembro tomava posse do cargo,
afagando a esperança de poder alcançar para a sua administração os triunfos mais assinalados. E de fato, não omitiu ele nenhuma diligência para
satisfazer esses desígnios.
Assim, as constantes levas de soldados enviados para as operações militares no Sul tinham
diminuído a população da capitania. promover a sua colonização era, pois, uma das necessidades mais urgentes. Por esse motivo, resolveu ele que
algumas famílias açorianas, das que o governo lhe havia enviado, fossem viver provisoriamente em Jundiaí e Campinas, para se habituarem às condições
vitais do clima do Brasil.
Depois, mandou formar com vinte dessas famílias um núcleo de colonização em Casa Branca,
estabelecendo para cada indivíduo uma diária enquanto não tivesse recursos para manter-se.
Desse núcleo, que posteriormente fora aumentado, separaram-se cinco famílias numerosas para virem
estabelecer-se no Cubatão, nas terras da antiga Fazenda dos Jesuítas.
Isto se deu, porém, já no trato administrativo de 1817 a 1819, quando o conde de Palma havia
sucedido ao conde dos Arcos, no governo da Bahia. Estávamos, então, com um governo interino, denominado "triunvirato", formado do
bispo diocesano, d. Mateus de Abreu Pereira; do ouvidor da comarca, d. Nuno Eugênio de Lócio e Seiblitz; e do
militar mais graduado, que era naquela época o intendente da Marinha de Santos e chefe da Divisão da Armada Real, Miguel José de Oliveira Pinto,
lisboeta, da freguesia dos Anjos, aqui casado com d. Joana Francisca de Oliveira, em 1818.
A carta de sesmaria que concedeu as terras da aludida fazenda a essas cinco famílias, dada em S.
Paulo aos 7 de janeiro de 1819, está assinada pelos respeitáveis triúnviros, e fê-la escrever o secretário do governo Manuel da Cunha de Azevedo
Coutinho Sousa Chichorro.
Segundo esse documento, os sesmeiros eram estes: Manuel Antonio Machado, Manuel do Conde, Manuel
Espínola Bittencourt, Manuel Raposo e Manuel Correia.
Recebeu o primeiro 400 braças de terras, que principiavam na encruzilhada que fazia o caminho da
Serra com a estrada do Cubatão, e iam até o morro que ficava à margem da mesma estrada. Dividiam ditas terras pela parte do Norte com a estrada do
Cubatão; pela do Sul com o citado morro que ficava à margem da estrada e ia até a beira do rio; pela de Leste com as escarpas desse morro que
deitavam para Oeste; e pela de Oeste com a picada que ia de Norte a Sul, isto é, da encruzilhada até o rio Cubatão.
O segundo, Manuel do Conde, recebera suas terras com 46 braças de frente, que principiando
junto à povoação do Cubatão, rio abaixo, iam até a foz do riacho Cafezal. Dividiam a Leste com o dito riacho até a forquilha; ao Norte com o braço
da forquilha que corria para Oeste; ao Sul com o rio Cubatão; e finalmente a Oeste com os morros que iam dar no rio Cubatão.
Essa gleba era muito pequena em relação às que tinham sido concedidas aos outros colonos.
Como ele próprio assim a quisera, por ter a casa junto à povoação, deram-lhe mais, rio abaixo, distante 1.200 braças, um pequeno sítio que havia
muitos anos estava abandonado.
Manuel Espínola Bittencourt, o terceiro colono, tivera as suas terras com a frente que media
190 braças, começando na foz do riacho Cafezal e indo até a foz do rio Perequê. Limitava pelo lado de Leste com este mesmo rio Perequê, na extensão
de 600 braças pouco mais ou menos, até onde ele fazia ângulo para Leste.
Deste ângulo fora feita uma picada em direção ao Norte, indo encontrar a Serra Geral, que
ficava na distância de 430 braças. Pelo Norte confinavam com a Serra Geral. Pelo Sul com o rio Cubatão. Pelo Oeste com o riacho Cafezal, seguindo o
ramo da forquilha que abria para Oeste, cuja linha era divisória com Manuel do Conde. E daí seguia até a Serra.
A mesma picada aberta para delimitar as terras de Manuel Espínola Bittencourt servia de
estremar às de Manuel Raposo pelo lado de Oeste. E como não podiam elas fazer frente para o rio Cubatão, em virtude das pontas, lagoas e charcos ali
existentes, fora colocado um marco no ângulo do rio Perequê, onde já havia a mencionada picada em direção ao Norte. Deste marco saíra uma linha reta
para Leste, com 400 braças de extensão, no fim das quais, rumando outra linha que da Serra Geral chegava até a beira do rio Cubatão.
O derradeiro dos ilhéus, Manuel Correia, ficara com 400 braças de frente no rio Cubatão,
acima da povoação, contadas de uma paragem chamada os Cortumes, rio abaixo, e dos extremos da dita frente seguiam duas linhas no rumo de
Norte a Sul, que entestavam com os confrontantes dos fundos. Nesses pontos, assim demarcados, foram postos os competentes marcos pela Real Fazenda.
Todos esses colonos se dedicaram inteiramente à lavoura. Atufaram-se na espessura das matas
virgens. E sem medo das feras de fauces tenebrosas, empurrando o seu arado pelas terras férteis, tornaram-se beneméritos amanhadores do nosso solo.
Ali, fitando constantemente os olhos nas serranias do Cubatão, donde mais tarde iria
despenhar-se para a liberdade a avalanche dos cativos, eles mourejaram como se fossem também mercancia negra traficada na Costa d'África.
A terra, em retorno dos seus suores, era-lhes porém dadivosa.
Se a cultura do trigo e do linho, tentada por Manuel Espínola, fora uma experiência vã, no
entanto o café, o arroz, a cana, a mandioca, e as árvores de espinhos se desenvolveram vigorosamente.
Querei a prova disso? Tende-la no recenseamento de Santos de 1836, que é dos antigos o mais
exato em dados estatísticos.
A respeito, por exemplo, de Manuel Espínola, assim nos informa ele, quando trata do Cubatão:
"Manuel Espínola, 77 anos de idade, branco, livre, naturalizado, casado, agricultor, com
sítio próprio, tem 600$000 de renda, colhe 400 alqueires de arroz. Vive de sua lavoura".
Seguem-se os nomes das pessoas da família e um rol de dez escravos.
Razão tinha frei Gaspar para dizer que no Brasil era pobre quem deixasse de negociar ou não
tivesse escravos que cultivassem as suas terras (Memórias n. 101).
Apenas duas pessoas possuíam então ali rendimento igual ao de Manuel Espínola. Eram o
sargento reformado João Vicente Pereira Rangel, empregado na barreira, e José Joaquim da Luz, sargento-mor inspetor das obras da estrada.
Os Espínolas, ou Espíndolas, da Ilha Graciosa, procediam de Pedro Espínola, filho de Antônio
Espínola, fidalgo de Gênova, onde havia quatro casas reconhecidas, sendo uma delas a dos Espínolas. (Cordeiro, História Insulana, 2, 261.)
Manuel Espínola Bittencourt faleceu de provecta idade, no vetusto casarão do seu sítio, em
10 de abril de 1845. Tinha sido casado duas vezes. A primeira com Catarina de Santo Antônio e a segunda com Maria Antonia de Bittencourt. Esta, um
mês depois do trespasse do esposo, se despedia também da existência.
No mesmo ano, por escritura de 30 de outubro, os sucessores de Espínola vendiam o sítio ao
alferes Francisco Martins Bonilha. E referindo-se ao objeto do contrato, declaravam: "A parte que a cada um tocar no
sítio e terras da finada Maria Antonia (viúva de Manuel Espínola), avó deles, o qual é denominado Cafezal, situado no Cubatão, com casas de morada,
terras lavradias e pastos de aluguel, cujo sítio tem as divisas que constam da carta de data ou sesmaria concedida a seu finado avô Manuel Espínola
Bittencourt, como colono do Brasil, por el-rei d. João VI, verificada pela medição e posse judicial a que posteriormente se procedeu e consta na
Tesouraria ou Secretaria do Governo da Província". (N.E.: correto é d. João III e não VI)
Não figurava, entretanto, nessa transação, o herdeiro Antonio José
da Cunha Espínola. Por isso o dr. Manuel Dias de Toledo, genro do alferes Bonilha, e que sobre ser genro era bacharel, vendo em tal omissão matéria
para uma pendência talvez ingrata, tratou logo de adquirir o quinhão do citado herdeiro. Nessa escritura, outorgada em 14 de dezembro, figurou
"tudo que a ele vendedor coubesse em sua quota hereditária da herança de sua mãe e finada Maria Antonia de Jesus, que
vem a ser parte do sítio Cafezal, situado no Cubatão, com casas de morada, terras lavradias, pastos próprios de aluguel, bem como todos os objetos
móveis que ali se acharem".
Fazendo reviver essas figuras de homens simples do tempo antigo, cujas
vidas rolaram tão sem história, convencidos estamos de que no perfume da aragem que vem de longe também têm parte as flores do campo.
Do mesmo modo, uma aldeia plácida e solitária, um bairro melancólico, uma
andrajosa rua podem assinalar com as pedras mudas das ruínas de um simples alicerce os indeléveis monumentos do seu passado e da sua glória.
O Cubatão, até há bem poucos anos, ainda possuía alguns restos delidos da
Casa da Fazenda, da Casa da Barreira e do engenho de Geraldo Bruckenn. Eram pedras que memoravam a história do seu passado.
Vários pontos ali nos convidam ainda a peregrinar pelo caminho da
recordação.
A primitiva povoação, saída de uma portaria de Franca e Horta, de 19 de
fevereiro de 1803, que a erigiu em lugar por ele próprio indicado - entre os rios Capivari e Sant'Ana (Documentos Avulsos, vol. 6, pág. 48),
traz-nos à lembrança a lei n. 24, de 12 de agosto de 1833, que mandou que se separasse da Fazenda do Cubatão um terreno de meia légua em quadra para
pastagem dos animais que transitavam pela estrada de Santos, e que se fundasse a povoação do Cubatão.
Convém que se tenha conhecimento dessa lei, porque é o diploma que marca o
dia oficial do estabelecimento de uma povoação que já contava perto de quarenta anos de existência. Ei-la no seu pleno teor:
"A regência, em nome
do imperador e senhor d. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
"Art. 1º Da Fazenda Nacional do Cubatão de Santos, na Província de São
Paulo, fica separado o terreno de meia légua em quadra, e o que atualmente serve de pastagem pública, e todo ele cedido, e aplicado para pastagem
dos animais, que transitam pela estrada de Santos, e para fundação de uma povoação.
"Art. 2º O presidente da Província fará demarcar o sobredito terreno, e
designará em Conselho o lugar da povoação e a extensão de seu rocio.
"Art. 3º A Câmara Municipal respectiva procederá à demarcação do rocio
designado, e ao alinhamento da povoação, e concederá datas para edificação com a extensão proporcionada aos meios, e projeto do edifício de quem
pedir, contendo todas um prazo fixo, que não excederá a um ano, para dentro dele fazer a obra, ficando do contrário a data sem efeito; regulando-se
além disso pelas instruções, que lhe dirigir o presidente da Província.
"Art. 4º Todo o terreno que sobrar fica debaixo da administração das obras
da estrada. Dele poderá o presidente em Conselho aforar alguma porção, como lhe parecer conveniente, ficando a renda com o mesmo destino da
contribuição estabelecida pela lei de 6 de setembro de 1828.
"Art. 5º Ficam revogadas todas as disposições legislativas em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão
inteiramente como nela se contém. O secretário de Estado dos Negócios do Império a faça cumprir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de
Janeiro, em 12 de agosto de 1833, 12º da Independência e do Império. - Francisco de Lima e Silva, João Braulio Moniz e Aureliano de Sousa Oliveira
Coutinho".
A memória nos lembra agora outra lei que vamos, por mera curiosidade,
transcrever em seguida. É a lei provincial n. 167, de primeiro de março de 1841 (lei n. 17 de 1841), concebida sob o pensamento de incorporar o
Cubatão, que era pertencente a São Vicente, à cidade de Santos. A sua provisão aqui está:
"Art. 1º A povoação do
Cubatão fica em sua totalidade incorporada à cidade de Santos.
"Art. 2º O presidente da Província determinará os limites entre o município
de Santos e o de São Vicente.
"Art. 3º Ficam revogadas as disposições em contrário. (a) Rafael Tobias de
Aguiar. Presidente da Província de São Paulo".
A Câmara Municipal de São Vicente, quando o Cubatão antes dessa lei fazia
parte daquele município, publicou um edital ou bando muito original. Tinha a data de 22 de agosto de 1803. E convidava as famílias de Iguape, por
ordem do governador Franca e Horta, para virem povoar o Cubatão. Mas quase nenhum resultado surtiu.
Mostra-nos ele, no entanto, o zelo do governador através do alcance da
providência. Não oferece a menor dúvida, tinha momentos bem inspirados o homem que foi um dos mais ouriçados e
bravios inimigos dos Andradas!
O Cubatão em 1852
Imagem:
bico-de-pena de Lauro Ribeiro da Silva (Ribs),
publicada com a matéria |
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