Rio Cubatão, próximo à ponte da estrada de ferro
Santos/Jundiaí, em 1920
Foto: autor não identificado
Um peixe do tamanho do neto
Antonio Carlos Cruz (*)
Colaborador
A
Ande logo, Joaquim! Quero tudo limpinho... recolha as folhas do quintal, tranque os
patos e galinhas no cercado... olhe só, tem titica pra todo lado! Os netos já estão chegando e tudo tem que estar arruma...
Ganhando o último pé de couve da horta e a um passo da faixa de capoeira que separa a
gamboa do quintal da casa, seo Joaquim finge não ouvir os apelos de dona Filomena, estancados num breve olhar ao vazio do tronco do
velho jamboleiro onde, de costume, recostam-se o remo caiçara e o caniço.
- Pro mangue de novo? Pois que volte logo que muito há o que se fazer nesta casa -
completava a mulher, voltando à massa de broas prontinhas para ir ao forno à lenha que se aquecia no canto da cozinha.
Quem viveu, viu:
O casal somava, senão, quase nada faltando para 70 anos de vida em comum. O tempo e as
rugas não apagaram, até então, o vigor de seus físicos, a firmeza de suas ações, a juventude daqueles olhares e sorrisos...
B
Cinco filhos criados, uma dezena de netos (a quem nada sabiam negar) e a velha mas
acolhedora casa de madeira quase às margens de um dos braços do Rio Queirozes constituíam o patrimônio conquistado ao longo de suas existências. O
pequeno sítio destacava-se dos demais pela grande variedade de frutas do pomar, favorecido pela topografia local - várzea entremeada por manguezais,
onde abundavam pés de abricó, bacupari, abiu, araçá, grumixama e tantas outras que raramente se vêem hoje em dia.
Seria aquele mais um típico dia de verão, não fosse o fato de terem em casa, a partir
daquele e pelos próximos 15 dias, a presença de todos os netos. Mais: um deles, o Valtinho, vinha festejando 7 aninhos de pura traquinagem...
Protegida pela tosca cabana erguida à margem do igarapé, a velha canoa, com pouco mais
de 2 metros de comprimento e cavada num único pau de cacheta, é preparada pelo seo Joaquim para mais uma de suas aventuras. No fundo da
embarcação a água propositalmente acumulada mantém vivos os camarões pescados ali mesmo na pequena gamboa e que seriam utilizados como iscas.
C
Fortes remadas levam a canoa e seo Joaquim pra galhada encravada na
embocadura do furado, pequeno canal que liga os rios Queirozes e Sant'Anna. Ali, num dos melhores pesqueiros daquelas plagas, entre tiradas de
espécimes de até 6 quilos, puxadas violentas por vezes arrebentavam-lhe linhas e varejões. Certamente seriam ataques de vorazes robalos-flexa. Nunca
conseguira tirar um daqueles: o tosco equipamento improvisado com varejões de bambu-índio, linhas e anzóis inadequados não lhe permitia tamanha
proeza.
Mas, naquele momento, não cabiam justificativas. Ademais, a fama e o orgulho de ser
reconhecido como o melhor pescador da região de nada lhe valeriam sem o sucesso da empreitada a que se propusera naquela furtiva escapada do jugo de
dona Filomena. Neto predileto, Valtinho era sempre o mais atento às "cantadas de causos" do avô, de quem inconfundívelmente herdara a
paixão pelas coisas do mangue: - Vô, no meu aniversário quero ganhar um peixão do meu tamanho. A pedida soou para o velho pescador como um
desafio, então relembrado entre umas e outras tiradas de jovens robalos-peva, imediatamente libertados.
D
O sol quase no ocaso, a maré perdendo a melhor corrida, as iscas terminando...
Uma ruga - misto de tristeza e decepção - delineava-se no semblante daquele homem a
quem a natureza até então nada negara.
De repente, o tranco.
O varejão verga-se, apontando para o fundo do rio. A linha retesa-se e no atrito com a
água ensaia canção e balé que só os bons pescadores sabem sentir e viver:
- É o baita, exclama o velho... desta vez você não me escapa!
Meia hora de luta trouxe à tona guelras escancaradas pelo cansaço, vencido mais por
uma obsessão do que pela eficiência da armadilha que o capturara, um belo exemplar de robalo-flexa.
A cauda do animal no chão da canoa, a boca nivelada pouco acima da linha da cintura do
seo Joaquim, revelava:
- Por Deus, consegui! Nem dedinho a mais, nem dedinho a menos! É do tamanho!
O melancólico gorjeio do sabiá-laranjeira anunciando o entardecer na mata
interrompe-se com a algazarra da criançada:
- Olha o vô... olha o vô...
- Velho fujão e preguiçoso! Onde é que...
E
Mais uma vez dona Filomena não conseguiria concluir suas broncas. A carranca forçada
deu lugar à expressão de surpresa e admiração ao ver a figura do seo Joaquim surgindo do primeiro pé-de-couve da horta, curvado ao peso do
enorme pescado:
- Viva o vô... viva o Vô..., cantava em coro a garotada.
- Vô, no meu aniversário também quero um do meu tamanho...
Aliviando-se do peso que trazia às costas, o velho pescador olha esbugalhado para o
neto Naldinho. Menino esperto, herdara do pai, o mais alto da família, todos os seus dotes físicos...
- E agora, Filomena? Pergunta seo Joaquim à companheira que, escondendo nos
lábios um matreiro sorriso, voltava-se às broas que lentamente esfriavam-se na aba do pequeno forno caipira...
(*) Antonio Carlos Cruz é bancário e narrador de
causos antigos de Cubatão. |