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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO
Uma história de pescador

Um causo cubatense

O relato foi assim apresentado no caderno especial Cubatão - 46 anos, do jornal santista A Tribuna, em 9 de abril de 1995:

Rio Cubatão, próximo à ponte da estrada de ferro Santos/Jundiaí, em 1920
Foto: autor não identificado

Um peixe do tamanho do neto

Antonio Carlos Cruz (*)
Colaborador

A

Ande logo, Joaquim! Quero tudo limpinho... recolha as folhas do quintal, tranque os patos e galinhas no cercado... olhe só, tem titica pra todo lado! Os netos já estão chegando e tudo tem que estar arruma...

Ganhando o último pé de couve da horta e a um passo da faixa de capoeira que separa a gamboa do quintal da casa, seo Joaquim finge não ouvir os apelos de dona Filomena, estancados num breve olhar ao vazio do tronco do velho jamboleiro onde, de costume, recostam-se o remo caiçara e o caniço.

- Pro mangue de novo? Pois que volte logo que muito há o que se fazer nesta casa - completava a mulher, voltando à massa de broas prontinhas para ir ao forno à lenha que se aquecia no canto da cozinha.

Quem viveu, viu:

O casal somava, senão, quase nada faltando para 70 anos de vida em comum. O tempo e as rugas não apagaram, até então, o vigor de seus físicos, a firmeza de suas ações, a juventude daqueles olhares e sorrisos...

B

Cinco filhos criados, uma dezena de netos (a quem nada sabiam negar) e a velha mas acolhedora casa de madeira quase às margens de um dos braços do Rio Queirozes constituíam o patrimônio conquistado ao longo de suas existências. O pequeno sítio destacava-se dos demais pela grande variedade de frutas do pomar, favorecido pela topografia local - várzea entremeada por manguezais, onde abundavam pés de abricó, bacupari, abiu, araçá, grumixama e tantas outras que raramente se vêem hoje em dia.

Seria aquele mais um típico dia de verão, não fosse o fato de terem em casa, a partir daquele e pelos próximos 15 dias, a presença de todos os netos. Mais: um deles, o Valtinho, vinha festejando 7 aninhos de pura traquinagem...

Protegida pela tosca cabana erguida à margem do igarapé, a velha canoa, com pouco mais de 2 metros de comprimento e cavada num único pau de cacheta, é preparada pelo seo Joaquim para mais uma de suas aventuras. No fundo da embarcação a água propositalmente acumulada mantém vivos os camarões pescados ali mesmo na pequena gamboa e que seriam utilizados como iscas.

C

Fortes remadas levam a canoa e seo Joaquim pra galhada encravada na embocadura do furado, pequeno canal que liga os rios Queirozes e Sant'Anna. Ali, num dos melhores pesqueiros daquelas plagas, entre tiradas de espécimes de até 6 quilos, puxadas violentas por vezes arrebentavam-lhe linhas e varejões. Certamente seriam ataques de vorazes robalos-flexa. Nunca conseguira tirar um daqueles: o tosco equipamento improvisado com varejões de bambu-índio, linhas e anzóis inadequados não lhe permitia tamanha proeza.

Mas, naquele momento, não cabiam justificativas. Ademais, a fama e o orgulho de ser reconhecido como o melhor pescador da região de nada lhe valeriam sem o sucesso da empreitada a que se propusera naquela furtiva escapada do jugo de dona Filomena. Neto predileto, Valtinho era sempre o mais atento às "cantadas de causos" do avô, de quem inconfundívelmente herdara a paixão pelas coisas do mangue: - Vô, no meu aniversário quero ganhar um peixão do meu tamanho. A pedida soou para o velho pescador como um desafio, então relembrado entre umas e outras tiradas de jovens robalos-peva, imediatamente libertados.

D

O sol quase no ocaso, a maré perdendo a melhor corrida, as iscas terminando...

Uma ruga - misto de tristeza e decepção - delineava-se no semblante daquele homem a quem a natureza até então nada negara.

De repente, o tranco.

O varejão verga-se, apontando para o fundo do rio. A linha retesa-se e no atrito com a água ensaia canção e balé que só os bons pescadores sabem sentir e viver:

- É o baita, exclama o velho... desta vez você não me escapa!

Meia hora de luta trouxe à tona guelras escancaradas pelo cansaço, vencido mais por uma obsessão do que pela eficiência da armadilha que o capturara, um belo exemplar de robalo-flexa.

A cauda do animal no chão da canoa, a boca nivelada pouco acima da linha da cintura do seo Joaquim, revelava:

- Por Deus, consegui! Nem dedinho a mais, nem dedinho a menos! É do tamanho!

O melancólico gorjeio do sabiá-laranjeira anunciando o entardecer na mata interrompe-se com a algazarra da criançada:

- Olha o vô... olha o vô...

- Velho fujão e preguiçoso! Onde é que...

E

Mais uma vez dona Filomena não conseguiria concluir suas broncas. A carranca forçada deu lugar à expressão de surpresa e admiração ao ver a figura do seo Joaquim surgindo do primeiro pé-de-couve da horta, curvado ao peso do enorme pescado:

- Viva o vô... viva o Vô..., cantava em coro a garotada.

- Vô, no meu aniversário também quero um do meu tamanho...

Aliviando-se do peso que trazia às costas, o velho pescador olha esbugalhado para o neto Naldinho. Menino esperto, herdara do pai, o mais alto da família, todos os seus dotes físicos...

- E agora, Filomena? Pergunta seo Joaquim à companheira que, escondendo nos lábios um matreiro sorriso, voltava-se às broas que lentamente esfriavam-se na aba do pequeno forno caipira...

(*) Antonio Carlos Cruz é bancário e narrador de causos antigos de Cubatão.

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