Boischio orienta a marcação da estrada de ferro
Foto: reprodução, in jornal A Tribuna, 9/4/1993, caderno especial Cubatão 44 anos
A construção da refinaria de Cubatão
Renzo Boischio
Acredito ter sido o trabalho mais importante do qual
participei. Sem dúvidas. Pensando bem... mexendo nos meus velhos documentos, com mais precisão na minha primeira carteira de trabalho, ainda
consegue-se ler: Admitido como adjunto técnico à Comissão Nacional do Petróleo, em 21 de agosto
de 1952. Note-se na mesma carteira de trabalho que tinha saído, no dia 20 do mesmo mês, um dia antes, portanto, das
obras de construção do oleoduto Santos-Utinga. Os trabalhos nesta obra, a cargo da ferrovia
Santos-Jundiaí, estavam terminados; tinha a impressão que estava recebendo um ordenado ao qual não tinha direito... Santa ingenuidade!
Na área da futura refinaria eu me achava algo estranho, perdido no
meio de tanta gente. Até uns dias antes era o geômetra chefe das obras da estação de bombeamento do oleoduto do qual falei antes, na mesma
cidadezinha de então. Tinha à disposição um veiculo com motorista o dia todo. Era o chefe da área (mesmo de uma área limitada).
Depois, logo em seguida, me encontro no meio de uma turma de oficiais do exército,
geralmente engenheiros militares, como também jovens engenheiros ou técnicos civís. Com a maioria deles, com o passar do tempo, formou-se uma boa
amizade, até uma certa camaradagem, onde o denominador comum era a mocidade e o orgulho de participar da construção da primeira refinaria estatal do
País. Muitos deles, já não estão mais por aqui. Os outros (nós), estamos indo devagar... paulatinamente.
Mas, a lembrança daqueles tempos de trabalho, de mocidade, de realizações e também - porque
não? - de amores, estas lembranças sempre me acompanharam no decorrer da vida. Eles também vinham de outros lugares, do Rio, de Juiz de Fora,
de Belo Horizonte, de outras cidades...
Quando eu cheguei na futura refinaria, por pouco não posso dizer que as obras não tinham
começado ainda. Algo já estava feito, como os escritórios provisórios, de madeira. Também o general Estenio estava numa dessas saletas. Quando
o vi pela primeira vez, eu que na Itália so ouvia falar de generais em ocasiões de vitórias ou derrotas nas principais frentes de combate, estava
dizendo que, quando o vi (o general), mecanicamente me pus em posição de sentido. Ele apercebeu-se e me sorriu...
Lembro-me de que o primeiro serviço que me foi confiado, o executei muito bem, fazendo o
cálculo analítico dos elementos do levantamento (agora, escrevendo isto, lembro qual era a área, era aquela a margem do Rio Cubatão onde, daí a
pouco, iria ser construída uma barragem, no mesmo rio, de onde abastece as unidades). Espero sinceramente que alguém contemporâneo daquela ocasião
se lembre daqueles dias. Não ouso dizer nomes, não sei tampouco se eles iriam gostar de ser associados às minhas lembranças. O tempo muda muito as
pessoas, pelo que eu estou notando muitas vezes.
Depois deste primeiro trabalho, a minha atividade, ou melhor, o desenvolvimento do serviço
foi notado. Em lugar de cálculos gráficos que não eram cálculos, usei a matemática analítica, as coordenadas cartesianas, enfim, iniciei com ciência
e consciência (mesmo se as duas limitadas...).
Quase de imediato fui nomeado chefe dos serviços topográficos (aliás, de parte destes
serviços, que eram muitos - porém eu também participava das operações de campo, além de dirigir os serviços de outras equipes).
A refinaria foi construída aos pés de um morro, o início da serra do mar. Enquanto uma parte
da obra atingia o início da colina, a outra parte se estendia sobre um terreno pantanoso, encharcado de água. Essa área devia ser (e foi)
beneficiada pela construção de canais de drenagem, tubulações de grande diâmetro: foi necessario fazer os relevos plano-altimétricos, projetar as
seções e as declividades e proceder a execução das obras, até a conclusão.
Cobras, mosquitos, um calor sufocante mesclado à umidade total do ar, barro até a cintura ou
mais alto, as imagens nos aparelhos trêmulas devido ao movimento do ar ascendente, uma sede constante e a pele expelindo sob forma de suor qualquer
líquido ingerido, imediatamente... Eis onde foi a primeira parte da minha, da nossa juventude, e nós éramos orgulhosos disto, um orgulho que ainda
não desvaneceu por completo, que ainda nos desperta quando nós sabemos de algo em relação às unidades, às ampliações, às conquistas; não acredito
que os atuais dirigentes, ou subalternos, que seja, saibam quanto suor e dedicação foram necessários para iniciar o funcionamento das unidades.
Um dia veio do Rio (a capital de então), a ordem de determinar o Norte geográfico da área.
Fui eu, naturalmente, o executor de tal serviço. Tinha comigo os meus textos de topografia (os do Agostini - algum velho geômetra talvez lembre)...
Formou-se ao redor um grupinho de jovens engenheiros curiosos e eu, com lentes coloridas (devia olhar diretamente para o sol), relógios, guarda-sol,
calculadoras (daquela época), fiz o serviço. Lembro que tinha 17 graus de diferença entre o Norte magnético e aquele polar (Real). Foi um dos
inúmeros serviços que nós fizemos. Lembrava bem da trigonometria, fazia os cálculos com facilidade, usando os logaritmos (algum jovem colega talvez
esboce um meio sorriso lendo estas notas, agora que, com poucos reais, pode-se comprar calculadoras chinesas ou coreanas que, mesmo se extraviadas,
não faz mal. Pode comprar em qualquer barraca de camelô aí na esquina).
Passaram-se 47 anos daqueles dias, mas lembro perfeitamente (ou quase) de todos os trabalhos
que eu fiz ou mandei fazer (na verdade, não tinha muita confiança no serviços feitos pelos outros, mesmo se meus auxiliares). Não irei fazer agora a
relação desses serviços, também para não abusar da paciência dos meus eventuais leitores. Nesta atividade se passaram dois anos, no decurso dos
quais tudo que o meu físico e a minha mente permitiram, eu fiz.
Mas, não era tudo um jardim cheio de flores, o meu ordenado era às vezes superior àquele de
engenheiros recém-formados, também ganhava mais que pessoas mais idosas, escriturários, contadores etc., também era pessoal que vinha da Capital,
relacionados... Brotava às vezes uma inveja mal escondida, às vezes clara e sonora, a expressão era clássica: - Você é um estrangeiro.
Algumas palavras eram mais fortes, de vez em quando... Um dia, tive uma discussão com o
topógrafo brasileiro meu subordinado, os tons das vozes chegaram à exaltação, o engenheiro chefe do Departamento de Obras Complementares nos deu uma
salomônica punição de dois dias de suspensão do trabalho, que foi aceita pelo outro, não por mim. Ele voltou ao trabalho e aí permaneceu até se
aposentar; eu não aceitei tal solução, dias depois pedi demissão... Estou com a carteira de trabalho, nas mãos, agora: no dia 6 de julho de
1954 já não era mais funcionário da mesma refinaria.
Naquele tempo, tinha umas idéias algo estranhas, mas, talvez, não tanto... Pensava que,
sendo o general Estenio Caio de Albuquerque subordinado diretamente ao presidente da República em relação a essa obra, e sendo o meu superior o
engenheiro Ari Barreiros, subordinado direto ao mesmo general, entre o abaixo-assinado e o presidente da República, tinha só dois degraus...
Asneiras, naturalmente, nas quais porém, às vezes, acreditava. E permaneci por alguns dias afastado desse empreendimento, mas não fiquei parado.
Penso estar viva ainda uma boa pessoa, que estudou na Itália, onde se formou em Engenharia
Civil e era o chefe de todas as obras civis. Chamava-se ou chama-se Elio Rolim, conhecia ou conhece bem o idioma italiano, naturalmente. Ciao,
Engenheiro, lembra do Renzo?
O caso é que encontrei em casa (pequena pensão onde morava) uma mensagem para me comunicar
com ele, o que eu fiz logo a seguir, um dia após estava eu no seu escritório (na refinaria). Fui convidado a continuar os trabalhos que estava
fazendo até uns dias antes, mais outros, sob a forma que eu desejasse: seja por empreitada, seja que quisesse voltar como funcionário; a minha
escolha foi a primeira opção, uns dias após estava procurando auxiliares, procurando com afinco. Contratei operários, técnicos, engenheiros,
imediatamente postos a trabalhar. Lembro do rosto avermelhado do contador (não pelo sol) me avisando que tínhamos alcançado o número de 400
dependentes. É claro que a preferência foi para os italianos, que depois tornaram-se amigos e colegas.
Vejo-os ainda um a um, na minha frente: Domenico Treccia, que um dia quis ir para a
Venezuela para ficar por lá e, depois de poucos dias, arrependido voltou (eu lhe paguei a passagem de volta) e continuaste a trabalhar
conosco. Nino Corona, o qual encontrei, após mais de 40 anos, aliás, foi você que me encontrou na minha casa, e estamos agora interligados pelas
recordações, pelo computador e pelas aulas de italiano que vocé, como eu, está dando em S. Paulo.
Campana, o geômetra topógrafo, o qual fez muitos serviços de topografia junto comigo; lembra
Saulle, o levantamento das margens do Rio Cubatão, e tantos outros? Campana, nós nos falamos fazem dois meses pelo telefone, eu não aguentei um rio
de recordações, me veio um nó a garganta... Não consegui terminar o telefonema, mas irei refazer este telefonema, mais calmo irei me comunicar com o
teu escritório de profissional liberal na Itália, falar consigo e com seu filho que deve ser mais idoso do que nós dois quando nos deixamos aqui no
Brasil.
Corsini, o chefe dos carpinteiros... Era um homem forte, veterano da 2ª Guerra, eu tinha
algum medo de você, sim, de verdade, um medo físico, você uma vez me obrigou a refazer os cálculos pelo pagamento da obra do
necrotério de Areia Branca, você achava que tinha ganho pouco, e eu refiz estes cálculos e lhe dei mais dinheiro,
mais pelo medo que tinha do que por obrigação. Mesmo assim, continuamos amigos, da mesma forma que fiz amizade, imagine, com a tua filha Ester.
Giovanni Fornaro, o homem melhor que já tive, o mais honesto, leal, disciplinado, que foi
comigo para o litoral, a centenas de quilômetros de Santos, pelas praias, pois nem estradas tinha naquela ocasião, onde nós construímos a escola
profissional de Iguape e a cadeia de Registro. Uns meses atrás conheci o seu neto, que é músico aqui em Santos. Você foi embora para emigrar uma
segunda vez, da Itália para a França. Depois disto, você veio me visitar no Cubatão, onde eu, atrás de um balcão de um depósito de material de
construção, vendia, aos raros clientes que apareciam, materiais para construção. Não sei se você me entendeu, Giovanni, naquela ocasião quase não
olhei para você, devido à vergonha de me encontrar nessa atividade (o que foi aliás uma grande asneira de minha parte, fruto de um pensamento da
Idade Média em relação aos comerciantes)...
E vários outros, muitos outros camaradas, que foram meus contemporâneos, e também
brasileiros, por que não? Quantas recordações, quanta saudade de vós todos! Tenho que fazer um pequeno esforço para continuar a redigir esta minha
crônica...
Nos anos 1954-55-56 fui empresário no local varias vezes especificado (na área da futura
refinaria). Estava no Brasil faziam seis anos e tinha alcançado a meta desejada na Itália, antes de partir, o sonho tinha acontecido... lembro-me
dos pensamentos daqueles dias, me parecia impossível tudo o que tinha acontecido em tão pouco tempo: carro para mim, caminhonete para os meus
auxiliares diretos, já adquirindo algum imóvel bem localizado, conhecendo e freqüentando os mais ativos engenheiros da área. Me apercebo agora de
ter feito a descrição do meu espírito daquela ocasião e de agora, acima de tudo.
Talvez, não falei muito sobre os serviços que estava fazendo, em relação às obras. Ainda
mais para se tratar de uma relação algo estéril e repetitiva. Em todo caso, procurarei dizer algo a este respeito: fazíamos trabalhos de escavação
manual para colocação, também manual, de tubos de concreto armado. Também executávamos as bases, também em concreto armado, dos tanques onde eram
armazenados o petróleo bruto, a gasolina e os demais produtos da destilação. Vários movimentos de terra, pequenos e médios (em quantidade de metros
cúbicos), digo pequenos e médios pois a grande terraplanagem inicial foi a primeira fase, executada para uma empresa do Rio de Janeiro (A.C.Laje).
Construímos, no perímetro da refinaria, uma cerca de arame farpado, com pilares metálicos
sobre pequenas bases de concreto (aliás, este serviço, indispensável para o início da operação das unidades, tinha sido completamente esquecido e
foi o primeiro que eu fiz, ou um dos primeiros).
Contemporaneamente, continuava com os serviços topográficos, às vezes serviços de vulto,
como foi aquele do levantamento das seções do Rio Cubatão (fundo do rio e margens), que nos permitiu construir um modelo em escala do mesmo rio,
onde fizemos escorrer água para os cálculos de hidráulica necessários ao funcionamento das bombas, colocadas a prumo da superfície da água (água que
resfriava e continua resfriando, acredito, todas as unidades da refinaria). Quem fez estes serviços foi o escritório de engenharia sanitária "Saturnino
de Brito" a mesma organização de engenharia que construiu os canais de Santos. Lembro quando, nas horas de
lazer, em Santos, encontrávamos os funcionários, a cara deles quando tomavam conhecimento de que os santistas não sabiam (e não sabem), quem foi o
sanitarista em causa.
Ainda nos dias de hoje, subindo para o planalto que leva a S. Paulo, olhando para baixo,
para o vale e para as obras que procurei descrever, muitas vezes penso comigo mesmo: as bases, as tubulações, as construções civis, os canais, as
estruturas em concreto, as pinturas dos tanques, os diques anti-incêndio que por medidas de segurança separam cada tanques do outros, os blocos de
ancoragem dos tubos na superfície etc., etc., etc., todas as obras que eu e os meus companheiros construímos faz meio século, estarão ainda por ai?
Talvez, sim, algo esteja ainda por lá, além da nostalgia da mocidade, além do entusiasmo de
construir, erguer. Para vocês, companheiros de minha vida, das nossas vidas na sua melhor fase, para vocês que já se foram; para vocês, velhinhos
que nem eu, com os quais às vezes nos encontramos na rua, sem nada ter a dizer um ao outro (Cosí é fatto questo gazzabuglio che á il cuore umano
- Assim é feito o labirinto do coração humano - dizia o Manzoni), para vocês todos, mortos e vivos, a minha homenagem e o meu até... breve. |