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BAIXADA SANTISTA - LIVROS - Docas de Santos
Capítulo 38

Clique aqui para ir ao índicePublicada em 1936 pela Typographia do Jornal do Commercio - Rodrigues & C., do Rio de Janeiro - mesma cidade onde tinha sede a então poderosa Companhia Docas de Santos (CDS), que construiu o porto de Santos e empresta seu nome ao título, esta obra de Helio Lobo, em 700 páginas, tem como título Docas de Santos - Suas Origens, Lutas e Realizações.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos/SP, pertenceu ao jornalista Francisco Azevedo (criador da coluna Porto & Mar do jornal santista A Tribuna), e foi cedido a Novo Milênio para digitalização, em maio de 2010, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, sendo em seguida transferido para o acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 284 a 292:

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Docas de Santos

Suas origens, lutas e realizações

Helio Lobo

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TERCEIRA PARTE (1906-1910)

Capítulo XXXVIII

No Supremo Tribunal Federal

Da sentença do juiz seccional agravou a Companhia Docas de Santos para o Supremo Tribunal Federal.

Primeiro, viu Carvalho de Mendonça antedata na sentença, o que, no seu parecer, a inquinava de suspeita
[116]. Depois, sustentou haver nulidade do processo, por se tratar de matéria civil, a que não se aplicava a legislação comercial de exibição de livros. Em seguida, era caso de conexão ou continência de causa. Por último, comunhão não havia entre o Governo e a Companhia que justificasse a aplicação do artigo 18 do Código do Comércio.

Quanto à natureza civil da causa, o próprio decreto n. 763, de 1890, citado pela sentença, vedava se aplicasse às causas cíveis o processo especial de exibição:

O contrato de concessão de 20 de julho de 1888, que serve de base à presente ação, foi celebrado entre o Governo e pessoas não comerciantes. O Governo não podia, conseguintemente, pensar nem contar com a prova mediante os livros comerciais dos concessionários, que formavam uma empresa civil.

A concessão para as obras de melhoramento do porto de Santos foi outorgada pelo decreto n. 9.979, de 12 de julho de 1888, a sete capitalistas, dos quais um era médico e outro firma comercial.

O comerciante (a firma comercial Ribeiro, Barros & Braga) foi, justamente, o excluído do número desses concessionários, pelo decreto n. 10.040, de 15 de setembro de 1888.

A sociedade Gaffrée, Guinle & Companhia, sucessora dos concessionários, constituiu-se depois de celebrado o contrato de concessão de 20 de julho de 1888, como prova o documento que instrui a petição inicial do governo.

Mais:

Esta sociedade tomou o caráter mercantil, não porque sucedesse aos concessionários das obras de melhoramentos do porto de Santos, que formavam uma empresa civil, mas porque um dos seus objetos era a compra e venda de materiais para construção, como está expresso no seu contrato arquivado na Junta Comercial.

Em 1892, organizou-se a sociedade anônima Companhia Docas de Santos, que sucedeu a Gaffrée, Guinle & Companhia.

No contrato de 14 de novembro daquele ano, entre a agravante e a agravada, pelo qual o Governo concedeu autorização para a transferência da concessão, está declarado que esta Companhia "assumia todas as responsabilidades e obrigações, contraídas pelos concessionários individualmente".

Ora, os concessionários, que figuram no contrato de concessão de 20 de julho de 1888, não contrataram com o Governo na qualidade de comerciantes; não praticaram um ato de comércio. É sabido que aquele contrato representa o que há de mais eminentemente civil.

Temos nas duas causas os seguintes elementos comuns:

1º - As pessoas litigantes: o Governo Federal (a União) e a Companhia Docas de Santos.

2º - O objeto da controvérsia: a Companhia Docas de Santos pretende, na ação que propôs em 14 de novembro de 1907, anular o ato pelo qual o ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas mandou que ela exibisse os livros da sua escrituração mercantil a uma comissão administrativa, composta de dois prepostos da Administração e um representante da Companhia.

3º - O título da controvérsia: o Governo Federal e a Companhia Docas de Santos fundam, cada qual, a sua ação e a sua defesa no contrato de concessão de 20 de julho de 1888. As duas causas poder-se-iam dizer não simplesmente conexas, mas idênticas, porque nelas figuram as mesmas pessoas, e são os mesmos o objeto e o título.

Quanto à comunhão, no que dizia respeito ao resgate:

Não é exato o que diz a sentença sobre o direito de resgate. Este não ficou dependente do arbítrio da Administração; ao contrário, somente poderá ser exercido dez anos depois de concluídas as obras (contrato de 20 de julho de 1888, cláusula iV; lei n. 1.746, de 1869, artigo 1º, § 9º).

Se desta condição arbitrária é que resulta o cointeresse aludido na sentença, provado que tal condição não existe, o cointeresse tem-se transformado em desinteresse.

Aceitemos a discussão no terreno em que o órgão do Ministério Público e o juiz a quo a colocaram. É mister possuir as noções jurídicas mais pervertidas para se ter a ousadia (nãohá outra expressão mais própria) de sustentar que do usufruto ou do uso e gozo das obras do cais de Santos, concedido à agravante, resulta a comunhão ou cointeresse do Governo.

No que se referia à exploração de serviços públicos, não menos citado na sentença como base para a exibição:

A Companhia Docas de Santos está construindo uma obra pública. Isto quer dizer que o melhoramento do porto de Santos satisfaz a dos serviços que a Administração Federal tem a seu cargo.

Cabendo à União alfandegar portos e habilitá-los para a importação e exportação, e criar entrepostos, compete-lhe, como consequência, promover o melhoramento daqueles portos, onde se refletem grandes interesses nacionais, como a defesa do país, o regime fiscal, o desenvolvimento e a expansão do comércio, a saúde pública etc.

É por isso que a Companhia Docas de Santos executa uma obra pública, destinada a serviços a cargo da Administração Federal, e não porque se lhe obrigasse a fazer o serviço da capatazia e armazenagem de mercadorias, como nos dizem o procurador da República e o juiz a quo.

Os serviços a cargo da Administração Federal, no porto de Santos, não são desempenhados pela Companhia Docas de Santos, mas sim pelas competentes repartições federais ali instaladas, entre as quais a Alfândega.

Assim:

Capatazia (que é serviço braçal de embarque e desembarque de mercadorias de terra para bordo dos navios ou vice-versa) e armazenagem são serviços subalternos, secundários, estabelecidos para a facilidade de carga e descarga das mercadorias, sua guarda e conservação; são serviços comuns aos trapiches e armazéns gerais; não são serviços públicos.

Dos serviços de capatazia e armazenagem é fiscal o inspetor da Alfândega de Santos (cláusula IX do contrato de concessão de 20 de julho de 1888).

Esta fiscalização não pode ser exercida nos livros comerciais, na correspondência e nos documentos da agravante, mas nos lugares em que aqueles serviços são desempenhados.

Para esses serviços aquele inspetor dá instruções, de acordo com o respectivo regulamento, e verifica se foram cumpridas: eis como se exerce essa fiscalização.

A Companhia Docas de Santos presta contas das mercadorias que, pelos seus capatazes, carrega, descarrega e armazena.

Se isso é gestão de um serviço público, ela tem sido cabalmente desempenhada a contento do inspetor da Alfândega de Santos, que nada tem reclamado, e dos interessados, donos das mercadorias
[117].

E depois de copiosamente versar esses e outros pontos da questão, acentuando, ainda uma vez, que, nas empresas com garantias de juros, não se abriam à devassa do Governo seus arquivos e sua correspondência, concluía a minuta do agravo:

O Governo ameaça a agravante com uma lide temerária e tenta devassar os livros, a correspondência e os documentos do seu arquivo comercial.

Esses livros, esses documentos, essa correspondência, não são instrumentos comuns; são propriedade exclusiva da Companhia Docas de Santos e estão sob a proteção da Constituição Federal, artigo 72, § 18, e do Código comercial, artigos 17 e 18.

A prova decorrente desses livros e documentos não aproveitaria em nada ao Governo, para o fim que este declarou no aviso de 23 de novembro de 1907.

É um vexame que se quer infligir à agravante, como castigo à resistência de ordens ilegais, é o capricho do ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas que se procura satisfazer, é a vitória da injustiça, da iniquidade, da imoralidade que se promove.

Dissera a sentença que, com a ação, visava o Governo responsabilizar a empresa, "bem ou mal, com ou sem razão", pela inobservância das cláusulas contratuais. Ao parecer, queria dizer o juiz federal com isso que não entrava no exame desta última questão, a processar-se depois. J. X. Carvalho de Mendonça não o interpretou desse modo, levando a expressão como arbítrio inqualificável:

É para responsabilizar, bem ou mal, com ou sem razão, a agravante pela inobservância de cláusulas contratuais, que o Governo visa compulsar seus livros de comércio… faça-se o que ele exige.

Eis o que nos diz o 13º considerando da sentença agravada! Bem ou mal, com ou sem razão (palavras da sentença), o Governo tem o direito que contratante algum jamais logrou!

Tanto quanto se baseava nas luzes de J. X. Carvalho de Mendonça, a defesa, na minuta do agravo, não ficou abaixo da anterior. Nesse particular, ele tanto construía as Docas, quanto os engenheiros que as levantavam, em Santos, das águas. Argumento "da mais límpida evidência", chamou-lhe um órgão carioca [118]; não escondendo sua "estranheza e revolta diante da violência extrema que se queria praticar contra essa empresa", escreveu:

E uma circunstância que sobreleva notar, agora que o Governo tão patrioticamente desenvolve a preocupação do melhoramento de todos os portos da República, é que as Docas de Santos, na sua construção e no seu movimento, têm sido consideradas um exemplo modelar, sento a sua tabela de preços inferior a todas as tabelas autorizadas e não gozando de nenhum dos favores que às empresas e construtores estrangeiros têm sido outorgados, a não ser exclusivamente a isenção do material importado.

Esta desigualdade é tão eloquente, que por si só bastaria para prova de que as Docas de Santos não estão fazendo obra de aventureiros com o fim principal de encher os seus cofres à custa do dinheiro público e do dinheiro particular; ao contrário, essa empresa tem sido um fator patriótico e honesto do nosso progresso e já resolveu definitivamente o problema do escoamento completo de uma parte formidável da produção nacional.

O próprio adversário no Rio de Janeiro, em 1896, exarou:

O trabalho do eminente jurisconsulto dr. Carvalho de Mendonça, antigo advogado da Companhia, além de superior dialética em que se acha moldado e da prodigiosa erudição que revela, é, como já notamos ao noticiar os fundamentos da defesa apresentada na mesma ação, de uma perfeita conformidade com a doutrina exposta, muito antes do litígio, pelo egrégio patrono na sua importantíssima monografia sobre livros de comércio, posta assim em formoso relevo a autoridade moral do advogado, no exercício de sua profissão, pela autoridade científica do escritor de direito na elaboração de um estudo jurídico que só obedecia a elevadas sugestões teóricas [119].

Nenhum, porém, reagiu em termos mais severos que o Jornal do Commercio. Eram tanto mais para relevar suas palavras quando, exprimindo a moderação na imprensa brasileira, dava vazão a um protesto integral. Estávamos na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal e esse protesto ali seria verberado com calor pelo representante do Ministério Público. Depois de se referir à data da sentença, escreveu:

É à vista destas mostras de prepotência em que se conculca o direito, que a Companhia das Docas faz muito bem em resistir à absurda exigência da exibição de seus livros.

Nem até um dos acionistas da sociedade – isto é, nenhum dos proprietários do uso e gozo das Docas, pode exigir esse exame senão dentro dos termos estritos da lei; e nas sociedades comerciais simples todos sabem como o Código e as leis protegem a escrituração contra a sua divulgação.

O pedido da União é baseado no fato de haver, não uma sociedade, mas uma comunhão de interesses entre ela e a Companhia das Docas; mas como esta só é usufrutuária, segundo a própria União alega, torna-se difícil perceber qual é a comunhão, no sentido do artigo 18 do Código Comercial, que exista, da parte dela, no usufruto.

Adiante:

A Leopoldina tem garantias de juro do Rio e de Minas e possui linhas sem garantias. Aqueles Estados escrituram e fiscalizam o seu negócio nos trajetos respectivos; nada têm com o capital da Companhia, mas só com o empregado naqueles trajetos. Atualmente a Estrada de Quarahim a Itaqui, no Rio Grande do Sul, tem juros de 6 por cento garantidos sobre libras 675.000; mas o seu capital ascende a libras 870.000: ela está obrigada a dividir com o Governo o excesso de 8 por cento líquido, e este excesso não é sobre essa última, mas sobre a primeira.

Ao contrário, o capital das Docas podia ser menor do que o custo das obras, sem que ao Governo coubesse por isso exigir participação no excesso de 12 por cento desse capital social.

Nestes casos, se Minas, Rio ou a União exigissem exame de livros da Leopoldina ou da Mogiana (que está no mesmo caso) ou da Quarahim-Itaqui, ou então da Rio de Janeiro City Improvements, com a qual o Governo alegará ter grande "comunhão de interesses", temos certeza de que essas empresas resistiriam ao pedido absurdo, e rir-se-iam dele. Comunhão curiosa em que uma das partes faz decretos imperativos e depois solicita do juiz Vaz Pinto a sua execução!

Do outro lado, o Correio da Manhã (26 de agosto de 1908):

Audaciosa como sempre, habituada a não recuar na obtenção de seus fins, a Companhia Docas de Santos, ferida em cheio pela brilhante sentença do íntegro juiz substituto da 1ª Vara Federal, no célebre caso da exibição dos livros, não hesitou em atacar violentamente pela imprensa esse distinto magistrado, com o duplo fim de vingar-se dele e de impressionar o espírito dos juízes do Supremo Tribunal Federa, que hoje devem julgar a questão… A prepotente empresa, habituada a dominar os governos, encontrou um, capaz e enérgico, que não se curvou ao seu capricho.

Manteve, nesse mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal a sentença agravada, que desenvolveu, concordando também com a comunhão e, pois com a exibição dos livros. Em primeiro lugar, o direito de intervenção do Estado não se limitava ao alegado pela empresa:

Considerando, porém, que uma concessão, como a da espécie, é, antes de tudo, um ato administrativo ou de poder público, pelo qual se delega o exercício de certos direitos de poder público ("droit de puissance publique" – Haurion, Droit Adm. nas. 300, 398 e 494) a um indivíduo ou associação privada sobre uma parte do domínio publico ou sobre uma parte da própria Administração Pública, uma vez que outra coisa não é a obra e o serviço dos portos marítimos do Estado e o das capatazias e armazéns da Alfândega; que, em virtude de concessões desta natureza (contrato sui generis, próprio do Direito Administrativo, como o qualifica a própria agravante), nenhuma propriedade é transferida à empresa concessionária, quer sobre o objeto da concessão, a obra ou serviço público, quer em relação aos poderes de que investida, exercendo-os a concessionária por simples delegação do poder concedente para os fins de exploração e dentro dos limites, rigorosamente postos; que este princípio, que rege, sem exceção, toda concessão da espécie, assenta na razão sabida de que os portos de mar, assim como outras obras semelhantes, pertencendo ao domínio público propriamente dito, são por natureza intransferíveis, inalienáveis, e bem assim na razão não menos valiosa, de que os direitos de poder público, tais o desapropriar por utilidade pública, o de não pagar impostos por seus bens e serviços e o de arrecadar diretamente taxas do público, não podem, em regra, ser exercidos senão pelo próprio poder público, e somente o são por indivíduos privados quando o bem público e não dos indivíduos assim o exige; mas neste caso, como delegação do referido poder, isto é, em nome do poder delegante ou concedente, como se forem exercidos por ele próprio; que, em consequência, a concessionária, ora agravante, dos próprios termos da sua concessão, nenhuma propriedade tem no porto de Santos, nem nos direitos de poder público que exerce, age em nome deste poder, tendo apenas o uso e gozo da respectiva exploração, como aliás está expresso em cláusula do contrato (segunda) onde se diz: "Os concessionários terão o uso e gozo das obras pelo prazo de….. com os ônus e vantagens estabelecidas pela lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869 e de acordo com as estipulações e modificações provenientes das presentes cláusulas"; que entre as vantagens enumeradas e os poderes conferidos acham-se declaradamente: o de usufrutuário dos terrenos desapropriados e dos que forem aterrados, mas devendo o seu produto ter a aplicação indicada nas cláusulas III e IV do decreto n. 9.979, de 12 de julho de 1888 (que autorizou o contrato da concessão), o de gozar da isenção de impostos nos termos da concessão, o de arrecadar taxas, como compensação dos serviços e obras, na forma da cláusula V do citado decreto e da lei de 13 de outubro de 1869; que a justiça e razão de ser de tais favores ou vantagens não podem ser objeto de contestação, mas o que delas resulta é que a concessionária goza de favor pecuniário do estado, pouco importa o nome, desde que a coisa se dá: receber certa importância do Tesouro Público que se alimenta das taxas e impostos do público, ou receber a concessionária diretamente do público importância análoga, ou deixar de pagá-la a título de impostos por seus materiais e serviços, e assim fazendo, em nome e delegação do Governo, é manifestamente gozar de favor pecuniário da União; que essa sua qualidade de agente, em nome do poder concedente, é a própria agravante que se incumbe de melhor afirmar, toda a vez que se faz valer o seu direito de isenção de encargos de natureza local ou mesmo federal, alegando que explora um serviço público da União, e, como tal, sob a proteção do dispositivo constitucional (Const. art. 10), o qual proíbe a tributação de renas, bens ou serviços a cargo da União; que, concludentemente, se as cláusulas de uma concessão, reduzida à forma contratual, comona espécie, são de invocar, como constituindo lei entre as partes sob a sanção do Direito Privado, não é, todavia, lícito desde logo concluir que todas as cláusulas do instrumento devam ser exclusivamente reguladas pelos preceitos desse direito, tão somente, e, menos ainda, que as obrigações do concessionário findam com a letra expressa da concessão-contrato; porquanto, cláusulas pode haver, tais como as que envolvem a delegação de direitos do poder público, que escapam,no todo, à esfera do Direito Privado; que isto mesmo mostra não desconhecer a própria agravante dizendo com os autores que cita: "Le contract de concession est une convention qui a un caractère special et qui n'a pas analogue en droit civil… C'est un contract administratif"; é um contrato, que fica sob a inteira fiscalização da Administração Pública, que o faz, isto é, um contrato no qual a concessionária, embora parte contratante, não pode pretender a posição jurídica de igual a igual como sucede nos contratos particulares de Direito Civil; porque o poder público, sem embargo de entrar em relação contratual com a pessoa privada, não se despe por isso jamais dos direitos e faculdades que constituem a sua qualidade própria de poder, e se porventura aceitasse no contrato cláusula alguma neste sentido, ela seria nula, írrita, como se não existisse; que, entre as qualidades inerentes, inseparáveis, do poder público, é proeminente a de regular ou fiscalizar a coisa pública, os serviços dessa natureza e notadamente o exercício dos direitos ou funções de caráter público, pelos indivíduos privados, sejam estes agentes, funcionários propriamente ditos, mandatários, gerentes, usufrutuários da coisa pública, ou delegados, casos nalgum dos quais não pode deixar de ser considerada a concessionária ora agravante.

Quanto à alegação de seria necessária cláusula expressa para exibição:

Considerando mais: que o direito de regular e fiscalizar do modo, como e quando for mais conveniente, o exercício dos direitos do poder público, conferidos à concessionária para exercê-los, dentro dos limites marcados e para os fins indicados, não precisa estar expresso em nenhuma cláusula da concessão ou contrato em favor do poder público concedente; ele subsiste, nunc et semper como qualidade, de que o mesmo poder não pode abrir mão, e quem obtém uma concessão do Governo, como a de que se trata, não ignora que assim é, e nem pode deixar de ser; que, pelo contrário, a concessionária, sim, é quem nada pode pretender do poder concedente ou do público ou opor ao poder concedente, sem mostrar a cláusula expressa, que lhe haja concedido o direito ou favor ou que contenha a delimitação ou proibição, que o poder concedente haja aceitado, porque a regra da jurisprudência da matéria, seguida em toda a parte, é esta: a) o concessionário não pode pretender direitos ou favor maior do que os declarados expressamente na concessão; b) o concessionário não pode jamais obstar a ação do poder concedente senão naquilo e até onde este se tenha obrigado efetivamente a não intervir; conseguintemente, sempre que o poder público, na concessão do uso e gozo de um privilégio, não se tenha obrigado, por cláusula expressa, a abster-se de tais e tais atos não quanto à substância do privilégio e aos favores concedidos, mas quanto aos modos práticos da exploração e aos meios da sua melhor fiscalização em bem dos fins da mesma concessão, é indiscutível que no mesmo poder subsiste inteira e completa faculdade a semelhante respeito; que esta regra de jurisprudência assenta, principalmente, no próprio fundamento da concessão pelo poder público, que outra não é senão a realização de um bem público e jamais o benefício dos interesses do concessionário; e daqui sempre que houver dúvida sobre o alcance dos favores ou direitos do concessionário a interpretação deve ser contra este, e em favor do poder público ou dos interesses públicos que o mesmo representa: "It will never be presumed that a State has relinquished any of its poweres by contract. The grantee takes nothing by inference. The universal rule being that whenever the privileges granted to such a corporation come under revision in the Courts, the grant is to be construed against the corporation and in favor of the public, and that nothing passes to the corporation but what is granted in clear and explicit terms". Myer, On Vested Rights, p. 623-624 (sobre decisões numerosas da Suprema Corte Americana a respeito). Whatever is not inequivocally granted in such acts, is taken to have been withheld; as all acts of incorporation and acts extending the privileges of corporate bodies are to be taken most strongly against the corporation" Sedwick, On Stat. and Court. Law, 39; cf. Beach, Private Corporations, vol. I, p. 44 seg.; Sutherland, Statutes Construction, § 378; que, além disto, este direito de fiscalizar, por parte do poder concedente, o uso dos direitos concedidos na espécie dos autos, resulta das próprias cláusulas do contrato, invocadas pela agravante segundo as quais se reconhece ao dito poder; a) o direito de resgatar a concessão, indenizando a empresa do capital, efetivamente empregado; b) o direito de inspecionar a execução e o custeio das obras; c) o direito de reduzir as taxas que a agravante percebe em seu proveito, quando os lucros líquidos da empresa excederem a 12%; donde a consequência, evidente, obrigada para a concessionária, de fornecer ao Governo todos os documentos, toda a escrituração pela qual o mesmo possa verificar a verdade dos fatos, constantes das mencionadas cláusulas.

Ainda quanto à intervenção econômica na vida da Companhia:

Considerando ainda: que a própria agravante se apressou em declarar que custeio (palavra da lei) quer dizer custo, valor das obras; e se a juízo da agravante o Governo não precisa examinar a sua escrita para conhecer da matéria, podendo contentar-se, sobre o custo das obras, com o valor parcial dos orçamentos respectivos, assim não sucede aos olhos do Governo, o qual certo não ignora a grande diferença que se pode dar entre o valor orçado de dada porção de obras e o capital efetivamente empregado, isto é, seu custo real, o qual, conforme a lei, lhe compete inspecionar, e, portanto, exigir que lhe forneçam os elementos de escrita, os mais completos, para o exercício do seu direito; que a redução geral das taxas, quando os lucros excederem a 12%, sendo igualmente um direito e um dever do Governo, ex-vi da lei e do contrato, não pode a concessionária negar ao mesmo todos os elementos de escrita, que parecerem necessários para a sua inteira e exata verificação; com isto não sofre a concessionária a menor restrição no seu direito; se este lhe é incontestável, quanto à arrecadação das taxas como justa compensação de seus serviços à obra pública, não menos deve ser, aos seus olhos, o direito do público, que o Governo representa na concessão e ao qual pertence o produto das taxas percebidas desde que os lucros da concessionária excedam de 12%; se exclusivamente seu o produto das taxas até perfazer um lucro líquido de 12%, ele deixa de ser seu daí por diante, ou para constituir objeto de gestão ou administração por conta de outrem ou para constituir uma comunhão de causa e interesses entre a agravante e o Governo; que é irrecusável ao Governo em tal hipótese o direito de verificar não só a situação real desses interesses ou rendimentos comuns, mas ainda fiscalizar o uso que a agravante está fazendo da delegação que exerce, na arrecadação das taxas; e outro meio não há, não pode haver com segurança, a não ser o exame da própria escrituração da agravante; que a alegação da agravante, de a verificação dos lucros líquidos só poder ser feita depois de integrado o capital, pela conclusão e entrega definitiva das obras, não consta de cláusula alguma da concessão, nem há impossibilidade atual de se realizar semelhante verificação, escriturado, como deve estar, o capital empregado em cada ano e lançada igualmente nos livros a importância das taxas arrecadadas e, feito o balanço das respectivas despesas, o resultado encontrado demonstrará qual o lucro líquido apurado em relação ao capital empregado; que a disposição da lei, ordenando a redução geral das taxas, em benefício do público, só tornou o ato do Governo dependente de uma condição "que os lucros líquidos excedessem a 12%", e isto mesmo também se dispõe nas cláusulas do decreto n. 9.979, de 1888, que autorizou a concessão; que as palavras do contrato (cl. segunda) "com as modificações provenientes das presentes cláusulas" a que alude a agravante, não aproveitam a oposição dela, porque as referidas cláusulas em nada alteram os ônus da lei (n. 1.746, de 1869) e nem podiam fazê-lo, por não ser lícito revogar ou derrogar a lei mediante cláusulas contratuais, tanto mais tratando-se da própria lei, base da concessão, e razão legal dos ônus e vantagens estipulados; sendo, conseguintemente, de entender que as "modificações" só se podiam referir aos modos de exploração e nada mais.

Por último:

Considerando finalmente: que a alegação de se tratar de livros comerciais, protegidos pelo Código Comercial, não pode, no caso, sujeito, ter a procedência que se lhe quer emprestar: em primeiro lugar por ser evidente que uma concessionária de serviço público não pode invocar em seu favor as disposições comerciais, no tocante a exploração da sua concessão e, ao mesmo tempo, possa recusar igual direito ao poder concedente em pretensão deste, só e positivamente relativa à mesma exploração; em segundo lugar, porque, aos olhos do Governo concedente, a agravante é sempre, e continua a ser, simples concessionária sua; não se trata de firma ou estabelecimento comercial, cuja propriedade ou patrimônio seja da mesma firma ou de associação privada e, portanto, tão estranhos ao Governo, como a qualquer outra pessoa privada, não de certo; aos olhos do Governo, qualquer que seja a forma tomada posteriormente, a agravante subsiste na simples qualidade em que obteve a concessão que explora, isto é, sempre dentro da comunhão de interesses e direitos que explora ou goza, ex-vi da concessão; que a pretensão da autora agravada em nada afeta, restringe ou diminui favores, direitos e vantagens, assegurados à agravante, estando nesta parte coartada toda a intervenção do Governo, mas se limita tão somente a pedir o exame da sua escrita para a verificação de fatos previstos na lei e estipulados no contrato, fatos que nas circunstâncias importam ou envolvem a comunhão de interesses e até a própria coisa entre a agravante e a agravada, os quais, de nenhum outro modo podem ser verificados com a exatidão que se requer; que o referido pedido assenta, como já se disse, de um lado, na comunhão de interesses e direitos, que se dá, quanto às taxas arrecadadas quando o lucro destas excede de 12% em proveito da concessionária, e de outro lado, no direito essencial de fiscalização, que subsiste no poder público quanto aos direitos de poder público, que aquele delegara à concessionária de um serviço público; que qualquer que seja a extensão dos direitos e poderes de uma concessão desta natureza, que o poder concedente fica, sem dúvida, obrigado a respeitar, jamais se poderá admitir como incluída ou decorrente de tais favores ou direitos, a isenção dos regulamentos e fiscalização, que o poder público entender necessários em bem do público; o limite desta fiscalização ou regulamentos está apenas em que por eles não se pretenda ofender a substância ou os direitos concedidos para o fim da exploração, em tudo o mais, isto é, quanto aos modos da exploração e à verificação do legítimo uso dos poderes delegados, o poder público continua a exercer completa discrição. Por tudo isto, e o mais que já foi considerado e apreciado, acórdão em negar provimento à agravante, e em confirmar a sentença agravada; pagas pela mesma agravante as custas. Supremo Tribunal Federal, 26 de agosto de 1908.

Assinavam o acórdão o presidente do Tribunal, Pindahiba de Mattos, e os ministros Amaro Cavalcanti, relator ad hoc, Canuto Saraiva, Guimarães Natal, André Cavalcanti, H. do Espirito Santo, Manoel Murtinho. O ministro Ribeiro de Almeida votou com o seu colega Manoel Espinola. É de notar a concisão e clareza do voto vencido:

M. Espinola, vencido. Dava provimento ao agravo, para reformar a sentença agravada e julgar improcedente a ação de exibição de livros, visto não se dar o motivo alegado da comunhão de interesses (artigo 18 do Código Comercial).

A questão se resolve, a meu ver, pelas cláusulas do contrato de concessão que, em seu conjunto, excluem a ideia de comunhão.

Assim, estando estipulado, pela cláusula segunda, que as obras de melhoramento do porto de Santos, que constituem o objeto da concessão, são do uso e gozo dos concessionários, durante certo prazo, findo o qual reverterão elas para o Estado sem indenização alguma, e, pela cláusula quinta, que os concessionários terão o direito de cobrar taxas pelos serviços prestados nos seus estabelecimentos, na forma da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869, vê-se que o Governo nenhuma comunhão tendo nas obras, que reverterão para o Estado findo o prazo da concessão, tampouco tem na cobrança de taxas, que a empresa recebe como remuneração do capital empregado e dos serviços prestados.

Se o Governo tem o direito de fiscalizar as obras para que elas se façam com a segurança e solidez necessárias, com tem o de reduzir as taxas quando os lucros líquidos excederem a 12% (citada lei de 1869, artigo 1º, § 5º), estes direitos não lhe dão a qualidade de intervir na comunhão (comunhão ou sociedade, diz o artigo 18 do Código Comercial), sem ter nenhuma parte no capital da empresa e nos seus estabelecimentos, pois estes, com todo o material, só lhe ficarão pertencendo, findo o prazo da concessão (contrato, cláusula segunda; lei de 1869, artigo 1º, § 3º).

É a doutrina do acórdão deste Tribunal n. 139, de 14 de setembro de 1895 (Jur. De 1895, pág. 179).

O direito de fiscalizar tem o Governo exercido sem oposição da empresa desde que esta se organizou, limitando-se a sua fiscalização aos termos do contrato e da lei, isenta a Companhia de qualquer intervenção em sua vida econômica, uma vez que não goza de garantia de juros ou subvenção (dec. n. 2.917, de 21 de junho de 1898, artigo 24, § 8º).

Quanto ao direito de redução das taxas, que são cobradas de acordo com o contrato, alega a Companhia que só se poderá fazer essa redução quando findar o prazo para conclusão das obras (7 de novembro de 1914), pois sem isso não poderá saber qual o custo das obras nem a proporção dos lucros.

Mas se a União tem elementos para saber que os lucros líquidos da empresa excedem a 12%, use os meios competentes para efetuar a redução, sem quebra da inviolabilidade do segredo dos livros comerciais, cuja exibição integral só é permitida nos casos do artigo 18.

Embarque de café no cais (1904 - N. E.: a datação de 1910 nesta obra está errada, ela já fora publicada em 1904 no livro Santos e a Cida. das Docas)

Foto: reprodução da página 290-a


[116] "Ela acha-se datada de 15 de julho de 1908 e está assinada pelo dr. Henrique Vaz Pinto Coelho que é juiz substituto da 1ª Vara, a esse tempo no exercício da jurisdição plena. Mas somente no dia 8 de agosto corrente chegaram sentenciados a cartório estes autos. Desde 17 de julho, o juiz seccional, sr. dr. Godofredo Xaviera da Cunha, voltara ao exercício. A sentença, portanto, proferida pelo juiz incompetente, foi antedatada para ter efeitos válidos. Este fato de suma gravidade a inquina da maior das suspeições". Exhibição judicial dos livros da Companhia Docas de Santos, cit., pág. 3.

[117] "Que há a dividir ou partilhar entre a Companhia Docas de Santos e o Governo? Obras? Propriedades? Taxas? Lucros? Nada, absolutamente nada.

"Durante o prazo da concessão: a) O uso e gozo das obras de melhoramento do porto de Santos são da concessionária (cláusula II do contrato de concessão); b) as taxas lhe pertencem (cláusula X, in fine, do mesmo contrato).

"Findo esse prazo: a) o uso e gozo das obras passarão para o Governo; b) as taxas serão por ele e para ele percebidas.

"Nessa época, da reversão, a Companhia Docas de Santos não terá partes nem interesses a liquidar nas obras nem nas taxas, pela mesma razão por que o Governo, atualmente, nenhuma parte ou interesse tem em tais obras ou taxas". Idem, pág. 36.

[118] Ainda: "É um trabalho monumental, o do eminente advogado; seria impossível resumi-lo, porque cada frase, cada linha, é um profundo ensinamento jurídico na matéria, um argumento da maior e da mais límpida evidência, mesmo para os leigos, como nós somos nessa difícil ciência do Direito". A Noticia, 24 de agosto de 1908.

[119] O Paiz, 20 de agosto de 1908.