Carregamento de bananas chegando ao Mercado Municipal, no início do século XX
Foto: reprodução de cartão postal de João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo, no livro
Lembranças de São Paulo - imagem incluída no Calendário 2002 da Gráfica Guarani, de Santos/SP
Celeiro de imigrantes
Regina Alonso
escritora
Neste ano comemoramos o Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, marcada pela atracação do navio
Kasato Maru, no porto de Santos, em 1908. Os japoneses seguiram de trem para a Casa do Imigrante, em São Paulo. Espalharam-se por diversas cidades do estado, desmatando as searas e dedicando-se especialmente ao cultivo da terra.
Em Santos, o bairro do Mercado foi um celeiro de imigrantes, recebendo não só japoneses, mas também espanhóis, portugueses,
japoneses, sírios e libaneses. As famílias alojavam-se nos sobrados, em quartos ou porões alugados pelos proprietários, que geralmente moravam na parte superior.
O convívio era harmônico e nas festas populares realizadas no meio da rua, os traços faciais - olhos puxados ou arredondados, lábios finos ou carnudos, narizes aduncos ou delicados,
cabelos lisos ou ondulados - evidenciavam as diferentes origens.
Entre os pregões dos ambulantes, nas conversas de comadres, nas cantigas de roda, ouviam-se os mais diversos sotaques. Nesse microcosmo da imigração, o comércio distribuía-se entre
padarias, armazéns, açougues e bares geralmente administrados por portugueses e espanhóis. As lojas de armarinho cheias de novidades ficavam a cargo dos sírios e libaneses. Os japoneses cuidavam da venda de hortaliças e dos produtos de granja,
especialmente ovos. No comércio local, a garantia de sobrevivência de todos, fossem ou não brasileiros...
Quando o pai de família ia ao armazém ou à padaria pagar a dívida mensal registrada na velha caderneta, recebia latas de goiabada e outros presentes. Muitas mães conseguiam fazer o
enxoval para as filhas graças às facilidades que os sírios ofereciam, dividindo o total das compras em parcelas a perder de vista.
No Mercado Municipal, os japoneses recebiam a freguesia com o colorido das flores arranjadas nos balcões que davam para a rua. Subindo os degraus e atravessando o portão de ferro,
diante das barracas de hortaliças, a confiança de deixar a sacola com os japoneses que escolhiam as melhores verduras e legumes, num atendimento respeitoso. As barracas de frutas importadas ficavam por conta dos sírios e libaneses,
oferecendo qualidade e beleza na arte da arrumação das diversas espécies de frutas frescas e secas por cores, formas e tamanhos.
Era comum as vizinhas trocarem receitas, pois os cheiros espalhavam-se pelas calçadas, antecipando sabores. O bacalhau no azeite e alho frito, privilégio dos portugueses. O cozido
preparado pelos espanhóis com o molho forte e vermelho de colorau. As imbatíveis sobremesas sírias, doces folhados recheados com mel e frutas secas. O shoyu, o missô, o soba, pratos exóticos dos japoneses. Tudo se somava à
nossa feijoada, aos manjares, pudins, tapiocas, cocadas e paçoquinhas, enriquecendo o cardápio.
A diversidade também se anunciava nos trajes e adereços. Roupas coloridas, colares e brincos de ouro dos sírios e libaneses. Cales, aventais, jóias de filigrana dos portugueses
espanhóis. Vestidos godês e sapatos de bico fino e salto alto das moçoilas santistas, contrastando com a discrição dos japoneses. Estes ensinavam a arte da beleza contida na simplicidade - voz baixa, gestos suaves e o entendimento de que com
pouco podemos dizer ou mostrar muito. Assim, o legado do sumiê - pintura, cujos traços parecem apenas tocar a tela, como o vento fluindo entre as folhagens; da música que se ouvia dos tocadores de shamisen oriundos de Okinawa e que
se dedicavam à pesca e ao comércio do pescado. No Hotel Japonês, as cerimônias de casamento de japoneses ou descendentes e entre os convidados, a vizinhança num entrecruzar de raças.
Talvez pela proximidade do porto, tantos imigrantes tenham se estabelecido no Mercado, deixando a marca do seu trabalho e o exemplo de um convívio amorável, que proporcionou um
intercâmbio de hábitos e cultura. Esse legado espalhou-se como um canto harmonioso pelas ruas Dr. Cóchrane, Bittencourt, Benedito Pinheiro, São Francisco, Amador Bueno, Braz Cubas... ressoando até hoje, por toda a cidade!
O Mercado Municipal e o Monte Serrat, em postal datado de "S.Vicente,
8/12/1919"
Imagem: cartão postal no acervo do professor e pesquisador santista
Francisco Carballa |