Imagem: reprodução parcial da matéria original
Canal navegável.
Entre Santos e São Paulo
A Revista de
Engenharia, de S. Paulo, e de que é diretor o engenheiro sr. C. Valentini, inseriu em seu número 8, de 1 de fevereiro último, o projeto, com
ilustrações, de um canal navegável entre Santos e S. Paulo, dando a esse trabalho o desenvolvimento requerido e mostrando a possibilidade da
realização desse projeto, já servindo-se, para confronto, de construções análogas no estrangeiro, já argumentando com dados técnicos, rigorosamente
científicos.
O dr. C. Valentini, em seu interessante estudo, e num cavaco preliminar, declara que não pretende
levar o mar para S. Paulo, tentativa que há uns vinte anos era troçada em Santos, em memorável época carnavalesca, como a resultante de um manifesto
desequilíbrio mental; mas demonstrar, apenas, a possibilidade técnica de levar uma embarcação de 200 toneladas de Santos a S. Paulo, "servindo-se,
para isso, de um canal com a seção reduzida, de um tipo como existem milhares de quilômetros no mundo inteiro".
E a possibilidade técnica desse canal é que o conhecido engenheiro demonstrou em larga explanação
do assunto, que dividiu, sistematicamente, em diferentes partes: depois de estudar o movimento de importação e exportação estrangeira e de
cabotagem, considerando-o sob o ponto de vista econômico e das vantagens conseqüentes, abordou o assunto quanto ao fim e serviços atendíveis do
canal proposto, custos de instalação de alguns canais, custo de instalação de comportas, custo para aquisição de embarcações, custo da mão-de-obra
necessária, custo de manutenção anual, tarifas que serviram de base ao estudo, entradas anuais presumíveis, capital necessário à instalação e
manutenção, quadro demonstrativo do custo de instalação do canal e pertences (7.540 contos), energia necessária para a halagem motor das
embarcações, serviço de excursões de passageiros, vantagens estratégicas de construir o canal proposto, conveniências econômico-sociais do canal,
vantagens que resultarão para as estradas de ferro, efeitos indiretos sobre a falta de cais em Santos, duração dos trabalhos até a inauguração do
serviço (dois anos), e, finalmente, serviços futuros que prestará o canal.
Esta nomenclatura divisionária diz claramente da sistematização e do esclarecimento do paciente
estudo a que se entregou o dr. C. Valentini e que teve principalmente por fim chamar a atenção dos poderes públicos e das autoridades científicas de
S. Paulo para a possibilidade técnica dessa utopia de levar pequenas embarcações à capital por meio de comportas no plano da Serra.
Pois bem: surge, agora, um engenheiro dinamarquês, naturalizado brasileiro e residente neste
Estado, o sr. Henry C. Sander, atualmente em Berlim, e declara categoricamente não só ser exeqüível o projeto de "levar o mar a S. Paulo", mas ainda
de o realizar dentro em breve, mediante concessão que vai requerer ou já requereu e que certamente lhe será dada.
São estes os pontos técnicos do projeto, comunicados a um amigo do engenheiro, que esboço o plano
na imprensa berlinense, e que aqui damos, ao menos a título de curiosidade:
"Sei perfeitamente que à primeira vista a
idéia parece utópica. Mas peço-lhe acompanhar a minha exposição e o senhor verá que, embora em relação à quantidade, o problema a resolver será
maior do que na construção do canal do Panamá. À execução do mesmo não serão, contudo, opostas as mesmas dificuldades.
"As dificuldades na construção do canal do Panamá consistiram na conformação e na qualidade do
solo. O morro da Culebra, do lado do Oceano Pacífico, escorregava constantemente, porque era todo de areia. O solo para as comportas no lado do
Atlântico também era arenoso e mesmo cheio de dunas. Nós, pelo contrário, temos solo de terracota; terra vermelha, firme, argilosa, sobre a qual
podemos construir. A única dificuldade na construção do canal de São Paulo consiste em resolver o problema de fazer os navios galgarem a serra de
mais de 600 metros de altura. E esse problema eu resolvi do modo seguinte.
"Bem junto de Santos está a cidadezinha marítima de S. Vicente. Dela levarei o canal até a raiz da
Serra. Começa então a subida. Penso tomar a serra num ângulo de 33º e construir entre a raiz da serra e o alto da mesma 26 comportas duplas,
guardando entre si a mesma distância. Cada uma dessas comportas terá 100 metros de comprimento, 22 de largura, 80 de altura, tendo ao mesmo tempo
uma profundidade de 6 metros e meio. As comportas do canal do Panamá têm 26 metros de altura. Cada uma das comportas terá uma capacidade de 140 mil
metros cúbicos. No cume da serra serão instaladas as bombas que trabalharão incessantemente elevando em 24 horas 140 mil metros cúbicos de água do
oceano.
"O processo é simples. Depois de ter o navio transposto a distância do mar até a raiz da serra,
utilizando-se do canal, poderá começar sua viagem através da serra. O navio entra na primeira comporta, esta é fechada. A água penetra do alto, o
navio sobe, até atingir a altura da segunda comporta, na qual entra. E assim por diante, de degrau em degrau nessa maravilhosa escada de água.
Chegado à vigésima sexta comporta, o navio galgou o cume da serra e prossegue em sua rota para S. Paulo.
"Naturalmente só poderão ser tomadas em consideração as embarcações de uma capacidade máxima de
1.800 toneladas. O canal terá um comprimento de 76 quilômetros.
"O senhor vê - prosseguiu o sr. Sander -, a idéia é não só realizável, mas será por mim realizada.
Como já disse, os habitantes de S. Paulo estão entusiasmados com a solução feliz do problema e no mês de maio o governo brasileiro dará a concessão
para a empresa. Ele já a teria dado, mas o Congresso só se reúne em maio.
"O solo que deve ser atravessado pelo canal é de valor muito diminuto, de forma que pouco custará
a sua aquisição. A construção do canal, porém, virá inegavelmente valorizar as terras marginais.
"Vou requerer a concessão por 90 anos; mas mesmo agora já sei que ela me será dada somente por 60
anos. E o sei com certeza.
"O êxito da empresa está igualmente assegurado no que diz respeito ao lado financeiro. Os
fazendeiros tomarão o compromisso de só se utilizarem do canal para o transporte de sua mercadoria e eu, por meu turno, me comprometerei a
transportar a mercadoria pela metade dos preços atuais. Por esse modo os fazendeiros realizarão uma economia de muitos milhões, hoje gastos com os
exorbitantes fretes, ao passo que eu fico habilitado a garantir desde já um juro de 6 e meio por cento sobre o capital empregado, que não precisará
exceder de 8 milhões de libras esterlinas. Sei muito bem que parece exígua essa importância. Mas, como já ficou dito, temos trabalho fácil em
virtude da natureza do solo. Não temos nem necessidade de aterros, nem de fazer explodir minas.
"Como os trabalhos devem ser encetados dentro de quatro meses, que se seguirem à obtenção da
concessão, e como esta já será dada no mês de maio, seremos obrigados a iniciar muito em breve os trabalhos, que serão atacados ao mesmo tempo em
três pontos, em S. Vicente, em São Paulo e no alto da Serra. Ao todo serão empregados no serviço 7 ou 8 mil homens. Para a construção das comportas
me utilizarei do granito com argamassa de cimento. Gastarei talvez um milhão de toneladas de cimento. O serviço exigirá até a sua conclusão quatro
anos, mais ou menos.
"E assim, talvez no ano de 1917 os primeiros navios iniciarão sua viagem através da serra".
Somos dos que confiam nos rápidos progressos da ciência, que, em engenharia como em mecânica, têm
sido simplesmente assombrosos, e ainda mais o serão; mas, conquista por conquista, em relação ao futuro, não sabemos o que poderão representar
tentativas da ordem da de que se trata, tendo-se em vista os progressos da aviação, que já passou do domínio do diletantismo para o campo da ação
industrial e comercial, e também os progressos da eletrificação das vias férreas, destinados a reduzir as distâncias pelo aumento das velocidades.
São, efetivamente, elevadas as tarifas de fretes entre nós, especialmente na
São Paulo Railway, que nisso, como nos bilhetes de passagem, cobra preços exagerados; mas tal fato se verifica porque a Estrada Inglesa não tem
concorrentes, e a nossa má sorte tem querido que as duas estradas nacionais, divergentes a princípio, Paulista e Mogiana, se dessem as mãos para não
trazer, como fora ensaiado em 1892-1893, ramais a Santos; tivesse a Inglesa competidores neste porto, que lhe não foi, graças a Deus, privilegiado,
e o procedimento da poderosa empresa britânica teria sido e seria muito outro.
Sabido é que o povo só tem a lucrar com a concorrência, e tudo a perder com o privilégio, que, em
certas mãos, é a arma do abuso e da extorsão.
Há uma concessão, já regulada por contrato, para uma linha de automóveis, para passageiros e
cargas, de S. Paulo a Santos, e vice-versa. Que viesse, ao menos, essa linha de veículos, porque até isso nos parece problemático - tal é a sorte
que acompanha a S. Paulo Railway. Tanta sorte tem a britaníssima e absorvente empresa, que, admitida a exeqüibilidade e a realidade tangível do
canal navegável entre Santos e a capital, ela acharia meio, antes disso, de encampar-se por bons milhões esterlinos.
Pois se já está no caminho...
***
Nada de fantasias, porém; o dia de ontem foi o das
notícias mirabolantes, para alimentar, nas velhas tradições, os poissons de avril (N.
E.: refere-se o articulista ao Dia da Mentira, comemorado no dia anterior). Nada mais natural,
portanto, do que os peixes do logro abrilino percorrerem, como num vasto aquário, os canais navegáveis de Santos a São Paulo...
Imagem: reprodução parcial da matéria original
|