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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Pelos bares noturnos da Praça da República...

Em 1913, o porto era bem menor que no final do século XX, e a vida noturna santista se concentrava nessa praça...

Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, era normal que a edição do jornal matutino fosse encerrada por volta das três, quatro horas da madrugada, horário em que as últimas tiras de texto para composição eram entregues aos linotipistas, no setor gráfico. Assim, havia espaço para um trabalho regular como as Reportagens noturnas, que na edição de 7 de março de 1913 do jornal santista A Tribuna relatava um passeio pelos bares noturnos da Praça da República (página 5 - ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

REPORTAGENS NOTURNAS

Os marujos de folga

Por acaso já entraram os senhores, durante a noite, em algum dos inúmeros bares existentes na Praça da República?

O espetáculo que neles se desfruta vale bem o risco que se corre de levar em cheio, no rosto, um desses formidáveis murros com que os patescas dos barcos ingleses costumam mimosear os míseros mortais que os encaram ingenuamente, quando eles estão com as caldeiras sob uma pressão de 120 libras de... old tom gim.

A minha eterna mania de tudo ver e cheirar expõe-me, às vezes, a essas encrencas, das quais - louvado Deus - sempre me tenho saído com garbo e sem avarias nas bitáculas.

Ontem à noite deu-me na veneta visitar um dos famosos bares da Praça da República.

Passava já da meia noite quando, esgueirando-me por entre dois marinheiros alemães que discutiam à porta, na sua língua arrevesada e para mim incompreensível, penetrei os umbrais perigosos de um ruidoso estabelecimento para venda de bebidas mais ou menos venenosas e compra de objetos mais ou menos contrabandeados.

Logo à entrada, um marinheiro alemão, sentado a uma pequena e suja mesa de tampo de mármore, executava, em uma gaitinha de criança e com uma convicção digna de um devoto de Alá, um trecho da Princesa dos Dólares (N.E.: Dollars Princess, ou Dollarprinzessin, uma popular valsa-opereta do compositor austríaco Leo Fall, então em moda).

A entourage do concertista compunha-se de marujos e paus d'água, o que, àquela hora da noite e em tal sítio, vem a ser, afinal, uma e a mesma coisa.

O dono da espelunca, um espanhol obeso e ríspido, os cotovelos fincados sobre a chapa de chumbo que cobria o balcão, tratava de negócios com um embarcadiço. Negócios de muamba, é claro.

Um ruído ensurdecedor, uma confusão de línguas pior do que a da torre de Babel.

Um inglês rubicundo e já meio azul escuro reclamava a presença do caixeiro, para lhe dar, pela vigésima vez, um uísque, e como o garçom se fizesse de ouvidos moucos, o bife estrilou:

- Stewart, goddam! one whisky!

A casa ameaçava desabar com o vozeirão do homem.

Mas, lá ao centro da sala, um cozinheiro de navio alemão solicitava, melífluo e meloso:

- Eine fleish bier...

E como sempre fora amável com o rapaz, presenteando-o com uns legítimos Panamás... (N.E.: tipo de chapéu desabado) de Hamburgo, o caixeirinho serviu-o incontinenti, com grande descaso pela gritadora secura do súdito fiel de King Edward.

Um pretarrão, feio como um orango, enorme como um mastodonte, os grossos e potentes bíceps a ressaltarem-lhe sob a manga do casaco de pano piloto, saltou de repente para o meio da sala e pôs-se a dançar o cake-walk, com grave risco para o meu humilde e único "olho de perdiz", que é todo o meu orgulho e desespero.

Encolhi-me, a suar frio, com a visão nítida de um imediato e grosso rolo, pois o inglês do uísque, vendo o preto americano a pular como um chimpanzé maluco, atirou-se a ele, com os gadanhos hostis, disposto a pôr na rua aquela escuridão ambulante, que assim lhe vinha perturbar a serena digestão do seu saborodo mata bicho.

O negro não era, ao que parece, de maus bofes, pois em vez de zangar-se com a indébita intervenção do inglês, abriu num riso alvar a bocarra colossal e levantou âncora, rumo à rua, dando guinadas pavorosas.

À entrada, o alemão da gaitinha massacrava sempre a Princesa dos Dólares...

Às duas horas da manhã o pessoal de proa estava incapaz de fazer um quatro com as pernas ou de pegar um gato morto pelo rabo.

O espanhol obeso e ríspido já havia amealhado a féria e tinha sono.

Delicadamente, usando uma interessante mímica, que os fregueses facilmente compreendiam, pegava-os pelo pescoço, dava-lhes um safanão e atirava-os à rua, com a sem-cerimônia de um homem confiante na sua hercúlea força.

Era tempo de zarpar antes que chegasse a minha vez...

Já o guarda de ronda na rua viera avisar, muito amável, muito açucarado, que estava na hora de fechar, pois o rondante não tardaria.

Em paga emborcou um cálice de paraty (N.E.: denominação genérica da cachaça produzida em Paraty/RJ) para refrescar o... calor.

Saímos. À esquina, um empregado da Limpeza Pública promovia um eclipse total com a sua incansável vassoura a levantar nuvens de poeira...

Evandro Silva.

 

Ouça:

Música: Princesa dos Dólares, pela Victor Orchestra, gravada em 1910, referência 16473-A (arquivo tipo MP3, com 128 kbps, mono, 44 kHz, 2'51", 2,61 MB).

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