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Ilustração de Belmonte, publicada no livro
Os perros de dom Mosquera
Mão no punho de uma longa espada de tigela, mosquete às costas, a forqueta empunhada e boldrié de chumbo grosso a tiracolo,
dom Pablo de Mosquera entrou batendo as altas botas de couro cru nas lajes da casa de engenho.
Era um homem alto, moreno, de olhos duros de milhafre faiscando sob os pelos espessos das sobrancelhas pretas como a sua barba hirsuta e agreste tufante sobre o gibão de canequim cor de
lama. Trazia calças de belbute da mesma cor e largo sombrero, negro onde uma pena escarlate punha uma nota viva de cor.
Vinha de péssimo humor. Batera em vão toda a mataria espessa em busca de caça. Desde as cinco da manhã, de mosquete ao ombro, rompera entre cipós, seguido do alarido contínuo e rouco
dos seus vinte e três cães, à busca de paca ou servo. E, numa violência incontida que lhe fazia mais duro o seu perfil de abutre, atirou o seu sombrero de feltro paulistano sobre um baú de Moscóvia.
Naquelas terras americanas, para onde tinha vindo atraído pela fama do ouro, só tinha encontrado, a princípio, o mato espesso, o réptil venenoso e a seta do bugre. Viera da península
num brigue francês que carregava pau-brasil nas costas de Pernambuco. Depois fora a aventura incerta da cobiça européia na conquista do ouro americano: um ano em Vila Rica, peneirando ouro entre o tumulto do ganho, dois anos em Tijuco, catando
pedras no fundo das águas claras dos rios.
Mais tarde, numa rixa violenta, mata a tiro de pistola um contratador da Coroa, foge depois num macho com dois baús de Moscóvia e quinhentas moedas de ouro na sua bolsa de couro
vermelho, para as bandas de Piratininga e, entre Itanhaém e Peruíbe, compra uma farta data de terras, onde constrói casa de taipa, monjolo de pau, cerrado e poço.
Dois anos depois, podia ver com delícia, todas as tardes, debruçado no poial de pedra da sotéia, ondular para além do cerrado o verde fresco de sua farta plantação de cana e ao pé das
perobeiras, em fila pontudas como fusos, as cinqüenta ocas alinhadas de sua escravaria carijó.
- Buena caza? - perguntou uma voz grossa que vinha da cozinha negra de fumaça.
Mosquera, que empunhava um látego longo de couro de anta, estalou com furor a ponta sobre a copa do sombrero jogado:
- Mala. Ni pajaro ni féra!
Lá fora, no ar luminoso, rente às ocas alinhadas em taba, passavam cocares coloridos dos índios mansos, e no silêncio da tarde tropical, o latido esfomeado dos lebréus soava como
marteladas em latão.
Mosquera bateu as palmas num bater rijo. Um índio carijó de cabelos longos e seminu apareceu no fundo da sala.
- La comida de los perros! Listo!
O índio, imóvel, não falava.
Ante a mudez medrosa e aparvalhada do carijó, Mosquera irritou-se:
- La comida de los perros, estúpido! - berrou, violento.
O índio, então, na sua mistura guarani-português, gaguejou apavorado que não se aprontara o angu de caça da matilha.
A face dura de Mosquera contraiu-se numa crispação que a cólera empalidecia:
- No tiene la comida de los perros, hije de perro!
E brandia o chicote de couro cru diante da face parada do índio, que o pavor imobilizara o olhar. Mas um sorriso mau enrugara a face do espanhol.
- Entonces voy a dar la comida!
O índio, que se esgueirara para o terreiro, corria de leve para as bandas das ocas. Foi então que surgiu no patamar da casa, de mosquete empunhado e a grenha eriçada batida pelo vento
leve da tarde, d. Pablo de Mendonza Avellar y Mosquera.
- Pare! - rugiu ele para o bugre, que corria. No meio do terreiro varrido, o bugre estacou ante a violência da ordem. Mosquera
caminhava duro, de arma empunhada. Depois fincou n chão batido a forqueta de fero, onde meteu, numa pancada seca, o cano grosso do mosquete. O índio, num momento, ainda tentou fugir, mas um tiro de carga dupla estourou rijamente, levantando vôos de
rolas e ecoando longe nas quebradas. O carijó caiu duro com o ventre estraçalhado pelo chumbo grosso.
- Ahora hay de comer!
Em seguida, soprou três vezes a buzina de corno; três vezes o som longo da buzina de caça ecoou longamente na serenidade da tarde, chamando os cães que corriam longe.
Depois foi um ladrar e um roncar furioso e contínuo, de cães em volta do cadáver do índio estirado num lago vermelho, enquanto os mais vorazes disputavam a dente as vísceras
ensangüentadas e ainda quentes.
Pesado, boçal e de mosquete ao ombro, recolheu então Mosquera num andar bovino.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
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