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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (15)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Altivez de Gato

S. Paulo, até os meados do século XVIII, povoado por uma raça enérgica e altiva onde a agressividade do sangue espanhol se misturava à independência guarani, era bem, como afirmou Bougier, "uma espécie de república independente".

"Os paulistas são tributários e não súditos do rei de Portugal", escreve ainda Froger em 1617. E assim eram, senhores de muitos arcos, acostumados ao mato, à fera, ao brejo, à flecha e à bala. Lutando num corpo a corpo ciclópico, contra a natureza formidável, que se erguia com os seus pântanos, seus miasmas, as suas onças e os seus bugres, contra a penetração do homem branco, não se curvavam os paulistas sob as ordens da Metrópole.

Ordem ou decreto, alvará ou bando, expedidos de Portugal a mando d'el-rei, apregoado a toque de caixa por todos os cunhais do Piratininga, nem sempre obedecem os paulistas, protegidos atrás da trincheira verde da Serra do Mar, defendidos pelas pontas afiadas das setas guaianases e pelo chumbo grosso dos seus arcabuzes.

Em 1640, por exemplo, el-rei ordena aos paulistas para que entreguem aos jesuítas as aldeias de índios mansos. Os paulistas não respondem à ordem, e não entregam as aldeias. Os jesuítas protestam, desta vez eles respondem com a expulsão violenta de todos os jesuítas da vila.

"Es gente alevantada qui non hace caso de las leys de El-Rey", diz queixosamente padre Mancilla.

Tal é o paulista do passado: altivo, heróico, sobranceiro, morrendo por um dever, por um ideal ou por um punhado de turmalinas.

***

Quando os Braganças sobem outra vez ao trono de Portugal, uma tentativa de levante aclama Amador rei. Mas esse grito de independência não ecoa na alma já há muito independente dos paulistas. El-rei agradece, e uma embaixada então se prepara para apresentar a d. João IV a fidelidade dos paulistas.

Foi por isso que, em meados de 1642, desembarcaram em Lisboa, entre cordames de vela e marujos de carapuças de lã, d. Luiz da Costa Cabral e Balthazar de Borba Gato, "homens bons" de Piratininga, que levavam dentro dos seus baús da Moscóvia, entre surtuns de baeta e toalhas d'água, um pergaminho assinado por todos os homens bons de Piratininga, jurando fidelidade à coroa portuguesa.

Lisboa do século XVII, levantina e saloia, cheirando a canela, benjoim e a maresia, forrada de azulejos, feita de pedra e barro vermelho, pesada e barroca, ramalhuda e colorida, atordoa um pouco os embaixadores com o seu burburinho de feira.

A Rua dos Banqueiros e dos Mercadores, com os seus telhados flamengos, descidos como biocos sobre as rótulas verdes, com as suas lojas de especiarias e de brocados, lampejando pratas batidas dentro das lojas de seus ourives, esvoaçante de mantéus e de capotes, com os seus mercadores de escarlate, com as suas mulheres de peito à mostra, saracoteantes e cheirando a água de Córdoba; com os seus burgueses embrulhados em capotes de dozeno, fidalgos de brocado amarelo, mouros de aljube branco, com os seus trinos, carmelitas, ciganas, regateiras que se empurram diante das rodas dos coches, que se acotovelam em redor das liteiras bamboleantes, toda essa multidão, todo esse ruído, todo esse colorido, deslumbram como uma vidraçaria gótica, os seus olhos aostumados à taipa branca das casas, e atordoam os seus ouvidos acostumados às ruas silenciosas e vazias de Piratininga.

Recebidos em audiência especial nos Paços da Ribeira, pára um coche diante da porta grande dos Paços Manuelinos e descem entre uma ala de alabardeiros, embrulhados nos seus pelotes de canequim preto, com as faces morenas e barbudas sob o largo feltro paulistano, os embaixadores paulistas.

O Paço Manuelino, pesado e barroco, guarda ainda o velho fausto das cortes bragantinas. A Sala dos Tudescos forrada de panos mouriscos e tapeçarias flamengas os corredores tristes que vão abrir para a Sala dos Leões que eles atravessam entre o brilhar de alabardas e um remexer de cógulas de clérigos, e que se abrem nos seus reposteiros escarlates para a Sala dos Embaixadores, toda em brocados vermelhos e ouro velho, pesada e solene como uma capela, onde sobre um trono de veludo e dossel franjado, el-rei espera vestido de roxo.

Opas luzem sob as luzes e, dentre os veludos cor de azeitonas, toucas de açafatas abafam cochichos e risos, quando passam as barbas maltratadas dos paulistas. Mas a voz gorda de el-rei soleniza-se no silêncio iluminado:

- Eu el-rei vos envio muito saudar e a vós os habitantes leais da vila de S. Paulo de Piratininga pelo muito zelo e lealdade com que vos houvestes a meu serviço. A mim pareceu, por isto, vos agradecer e segurar-vos de que tudo que neste particular me fica, para folgar em vos fazer mercê. Pedi, pois, a justa remuneração em troca do vosso valioso serviço!

***

Era a gorjeta do rei aos vassalos submissos, era a paga em mercês que um rei concede num dia de bom humor a um ministro habilidoso.

Um clarão de orgulho faiscou nos olhos metálicos dos paulistas. Em um momento, sentiram a desproporção dessa dádiva de um rei a quem davam um reino.

Eram os milhões de cruzados que iam pagar as loucuras nababescas de d. João V, era todo o ouro brasileiro escorrendo, drenado para Lisboa, para os tesouros sem fundo da Fazenda Real, eram as minas de diamantes descobertas pelos paulistas e as Minas Gerais descobertas por eles, dourando Portugal, pagando as concubinas de el-rei, atulhando a boca escancarada e insaciável do Fisco Português; era o paulista comendo içá torrado, pinhão sem sal, enquanto as barregãs joaninas dormiam em celas forradas de seda, lavando-se em água de Córdoba; eram os mineiros morrendo pelas estradas de Vila Rica, enquanto el-rei comprava graças em Roma a mil cruzados cada uma; era Mafra de 1720 e Lisboa de 1750, levantadas com o ouro brasileiro, enquanto nas minas se suava sangue, era S. Paulo que trazia essa corte, inepta, beata e sorna, todo esse fausto nababesco em que Portugal se atolou por todo o século XVIII!

El-rei louro e gordo estendia a mão que estendia a mercê.

Mas, no silêncio abafado das tapeçarias, alçando a barba hirsuta, olhando d'alto el-rei nas suas botas de couro cru, altivo, insolente, quase gritando diante dessa corte agachada sob as opas de seda roxa, respondeu Gato num ímpeto em que já se sentiam três séculos de Bandeira:

- Senhor, nós vimos dar e não vimos pedir!

Nunca tão lindo grito de tão genuíno orgulho paulista ressoou com tanta elegância e altivez dentro do nosso passado...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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