[...]
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
Tentação de Anchieta
Sob o toldo vasto de palmas araussu da oca de Cunhambebe, chefe tamoio, um moço ajoelhado reza de mãos postas. Sobre o rosto
amarelado e magro, de olhos azuis, rala barba aloirada cobre a pele descarnada e baça. Veste uma sotaina rota de cânhamo grosseiro que a chuva desbotou e no seu peito pende uma cruz peitoral que brilha.
Lá fora, além das caiçaras, soturno e longo, geme o uatupu. Corpos cor de cobre, avermelhados às chamas das fogueiras, contorcem-se numa dança bárbara ao ritmo da melopéia selvagem,
toada preguiçosa de canoeiros ao compasso dos remos.
É Anchieta que reza.
É ele que veio de Iperoig, numa piroga de três remos, pedir a paz aos tamoios de Vilegagnon, e que ficara só e heróico entre essa turba brutal, enquanto Nóbrega fora a Piratininga
combinar com Tibiriçá.
Muitos dias atinham passado depois que Nóbrega partira e que ele ficara como refém na oca grande e Pindobussu, onde Cunhambebe, o chefe violento, de olho duro e venta chata, soltara
gritos de ira com a azagaia erguida sobre a sua cabeça.
A princípio tinha sido a seqüência selvagem de todos esses impulsos rudes: Pindobussu, filho ignóbil e boçal, com a pele escura, tingida de jenipapo, e o beiço pendente e espesso, ao
peso das argolas de osso, vomitando injúrias na sua língua bárbara e brandindo um tacape diante do seu corpo indefeso; megeras de ossos a romper a pele magra, untadas de mel, e eriçadas de penas de guará, sacolejando os colares e búzios em torno
dos pescoços enrugados e uivando pragas, numa dança frenética e diabólica.
Mas, depois, vencera a doçura. No seu corpo frágil e vagamente corcovado, resistira ele, sereno e heróico, à arrancada selvagem. Já agora o bárbaro cedia. Cunhambebe e Pindobussu,
submetidos pelo heroísmo sereno do padre, a ele se aliavam e protegiam. Mais de uma vez Cunhambebe rompera aos berros, ameaçando de lança erguida a quem lhe tocasse sequer de leve o manto, e Pindobussu, o violento, armado de espada francesa, já
mais de uma vez acorrera em sua defesa contra as iras de Aymberê. Era a matéria que se submetia ao espírito, era a violência que se rendia à serenidade, era o espírito luminoso do Cristianismo que esclarecia aos poucos a treva espessa daquelas
almas rudes.
E sob o toldo de palmas da oca de Cunhambebe, Anchieta rezava. Já há três anos ele labutava nestas terras ásperas d'além-mar. Já três anos de canseiras e sacrifícios tinham passado,
desde quando, vindo da Bahia em barco desaparelhado pela tempestade, aportara nas águas paradas do Tumiaru.
De chegar, sentira a rudeza da terra e do homem que a povoava, quando as suas alparcas de sola, marcando os primeiros passos na areia mole, uma seta zuniu dentre a folhagem sobre a sua
cabeça. Era a primeira amostra dessa terra cálida de sol e eriçada de espinhos.
Depois fora a luta lenta e penosa na terra inculta. Todas as manhãs, ainda com estrelas tremeluzindo no céu limpo, deixava o seu catre de couro ao toque lento da sineta; e em seguida,
de enxada ao ombro, descia ao trabalho da terra.
Então, desde as cinco, ainda quando a madrugada rosando folhas, sob o mormaço, nos calores silenciosos do meio-dia, até quando o sol forte agonizava atrás dos grandes morros, pondo
sombras de tarde debaixo das perobeiras, a sua enxada cantava alto na terra seca.
Só então, esfalfado, sedento, alagado de suor, escaldando os pés na terra solta, recolhia. E na mesa nua do refeitório, se assentava diante de um prato de palmito e de uma caneca
d'água.
Assim se cavou o poço do pátio, assim se amanhou a horta, assim se plantaram as primeiras romanzeiras do pomar do claustro e assim se levantaram as primeiras paredes de taipa de pilão
da igreja do Colégio.
Ante o esforço supremo daquelas vontades heróicas, a força bruta cedia. Já as tribos de Piratininga, submissas e aliadas, retesavam os seus aros em defesa do estandarte jesuíta, já as
primeiras crianças guaranis soletravam as primeiras orações a Maria e já se erguia rude, nas suas paredes grossas, a igreja do Colégio, célula-mater da catequese jesuíta nas terras dos brasis. E amanhando terras e amainando almas, três duros
anos já tinham passado.
Agora, toda essa obra formidável de esforço, de fé e de sacrifício ameaçava ruir sob as flechas tamoias, aliadas a um bando de corsários franceses, numa luta de cobiça e de conquista.
E Anchieta cismava. De fora, uma brisa leve que cheirava a mato e a flor, trazia a toada bárbara... Um evocar suave de lembranças trazia uma a uma imagens carinhosas que vieram povoar o
seu pensamento. Era em Laguna. O bafo morno que vinha da África dava moleza às noites de Tenerife. A casa de seus pais, grande e toda de pedra, com as suas faias altas, seu portal musgoso e o seu escudo de armas, repousava no silêncio e no calor da
noite tropical.
Às vezes, dentre folhas, chegavam de longe sons de viola. Uma vez, na sua curiosidade infantil, ele saíra pela treva morna a espreitar. Era num pátio lajeado de pedrinhas miúdas, onde
dois homens tocavam viola sentados em mochos, e lânguidas formas femininas dançavam num bater de castanholas...
Assim cismava Anchieta sob o toldo de palmas da oca de Cunhambebe, quando um rumor de pés nus que pisavam folhas fe-lo voltar a cabeça. Um aroma doce de flor arejou a oca como se um
frasco de essências se tivesse partido no chão. E, na meia luz de azeite, um vulto de mulher caminhava para ele.
Um momento, o padre julgou ser a índia que lhe levava o cabaz de água e o peixe assado do jantar. Mais perto, porém, sob a luz mais forte, reconheceu, na sua esplêndida nudez bronzeada
de Vênus americana, a filha de Pindobussu. Alta e fina, na linha pura dos quadris fortes de fêmea procriadora, batendo as contas vermelhas de um colar de três voltas sobre os peitos empinados, com o sexo peludo entre as coxas cor de âmbar. Sob as
franjas pesadas das pestanas descidas, brilhava a concupiscência dos seus olhos negros.
Lasciva e nua se chegou, roçando as pontas dos seus peitos duros na manga da batina. Da sua carne nova subia um bafo quente que cheirava a erva e a flor.
Um momento o padre vacilou, na tentação daquela carne moça que se lhe ofertava, como se num momento toda essa terra cálida e virgem se tivesse feito mulher naquela noite de maio. E já o
seu braço estendia, quando sentiu qualquer coisa de rijo e de uma frialdade metálica vincar o seu peito entre os seios de bronze.
E num momento, então, como névoa que se dissipa à luz forte do sol, passara a sua embriaguez. Era a cruz grande de metal amarelo que rebrilhava sob a luz das resinas. Sentiu então, num
lance, a derrocada de todo o seu esforço comprimido por dois braços femininos. Eram os anos de renúncia e sacrifício, o esforço heróico e grandeza épica aniquilados pela doçura da carne.
Num momento, num repelão, afastou-se da bugre. Ela ainda, lasciva e terna, tentou chegar-se, mas num gesto largo, que punha faíscas de indignação nos seus olhos claros, o padre apontava
a porta escancarada da oca.
De costas, a medo, num susto que a fez encolher, saiu batendo as contas dos colares de búzios. Então, só, de joelhos e de mãos postas, Anchieta pediu toda a
noite fortaleza e ânimo para lutar contra a lascívia envolvente desta terra virgem.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
[...] |