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Ilustração de Belmonte, publicada no livro
Simplicidade paulista
São Paulo, até o princípio do século XIX, era ainda, com a sua casaria branca e as suas adufas de reixas verdes, com as suas
igrejas barrocas e os seus becos estreitos, com os seus rocios empedrados e as suas ruas silenciosas, a cidade ingênua, devota e simples que Freire de Andrade chamou "a formosa sem dote".
Respirando silêncio e devoção, adormecida sob os sinos que cantavam novenas, rezando encolhida sob a névoa que a envolvia, era a cidade singela das hortas, dos portais silenciosos, dos
chafarizes de pedra e das rótulas gradeadas. Nenhum conforto preocupava a alma heróica desses homens vestidos de couro cru que varejavam o mato à busca de peças (N.E.: peças eram os indígenas
capturados e escravizados).
Nenhum requinte havia na vida dessas mulheres chãs que rezavam uma Salve-Rainha entre uma tachada de marmelada e um baque de pilão. Tudo era simples, primitivo, quase pobre. As
dificuldades de transporte e as tortuosidades das serras tornavam raros os objetos do Reino; e o natural desprezo deste povo de ação pelo luxo emoliente da civilização européia aumentou essa simplicidade.
Enquanto os baianos e pernambucanos, senhores de engenho, espantavam Lindley com as suas jóias, as suas sedas, dando jantares em baixelas de prata, bebendo vinhos finos em cristais
lapidados, entre bofetes de talha, credências douradas, reposteiros de gorgorão, lampadários forjados, jarras de Índia e bragal de Holanda, arremedando, na colônia, esse fausto ramalhudo e pesado das cortes portuguesas, o paulista, embrulhado na
sarja grossa dos pelotes bandeirantes, encouraçado de couro, rude, impetuoso, altivo, heróico, rompia mato descobrindo ouro, levantando padrões, fundando cidades.
O sangue bugre misturado à impetuosidade do sangue espanhol, que já vinha meio mourisco da Península invadida pelos califas do século XIV, trouxe-nos a desconfiança arisca, a
simplicidade rústica, o gosto dos mantéus e o gradeado das rótulas.
A vida de São Paulo seiscentista é meio mourisca e meio bugre: a mesma reclusão mourisca, a mesma desconfiança guarani e a mesma impetuosidade espanhola.
As casas barrocas, obra de mão indígena sob o ensinamento jesuíta, são lisas e sem arte: paredes de taipa, amolgadas sob o beiral longo de vaga reminiscência florentina, portas grossas
de fechaduras mouriscas abrindo para corredores escuros de chão socado. Dentro, em alcovas escuras, tremeluziam os lumes de azeite na lâmpada dos oratórios familiares; catres de pau, arcas lisas e baús de Moscóvia para guardar a roupa de
algodãozinho grosseiro. Na sala um bofete rústico de jacarandá, algumas cadeiras de estado, tamboretes baixos. A louça é também rude e pesada; pratos d'estanho, jarras d'estanho, concas de barro. No século XVII os inventários são da mesma pobreza:
alguns côvados de pano do Reino, uma ou outra dúzia de pratos d'estanho, dois ou três pavilhões de droguete, poucas enxadas e cinco ou seis peças.
Essa gente simples enrola-se em panos grosseiros: é a perpetuana grossa, é o algodãozinho ordinário, é a barregana áspera.
"Homens e mulheres vestiam de pano de algodão tinto, e se havia alguma capa de baeta e manto de sarja se emprestava aos noivos para
irem à parte da igreja", diz nos princípios de 1600 frei Vicente Salvador. E o padre Fernão Cardim só encontrava, pelas ruas tristes de Piratininga setecentista, gente embrulhada em pelotes de
burel ou em velhos hernéus de cacheira que já tinham feito furor nos tempos manuelinos.
Não havendo fortunas, com uma lavoura de hortas e de marmelos, com uma indústria rudimentar de chapéus de feltro e marmelada, era São Paulo a cidade modesta, quase pobre, em que as
mulheres, quase reclusas como professas, vestiam baeta grossa, os homens droguetes grosseiros, dormindo em catres e comendo feijão preto.
Os inventários processados em 1616 constam de camas velhas, algumas arcas, três ou quatro cadeiras d'estado, cabos de espadas, tachos furados, alguns mantéus de barregana e quatro ou
cinco pratos d'estanho. A roupa de baixo às vezes varia, e não é raro aparecer dentre o bragal alguns lençóis de Bretanha, alguma toalha d'água, em crivo, ou duas ou três camisas de linho de Holanda.
A prata também aparece freqüentemente nesses inventários d'antanho; e é comum surgir, entre uma mesa de engonços e um baú de Moscóvia, uma ou duas tamboladeiras de rpata, quatro ou
cinco castiçais de prata ou algumas dúzias de colheres, do mesmo metal. Mas o resto é pobre, grosseiro, rústico.
As ruas são vazias como corredores de mosteiro, nem o luxo dos palanquins que atravessam numa mancha d'ouro as ruas de São Salvador, nem os criados de farda que sustentam os varais
enrolados em seda vermelha das cadeirinhas das senhoras pernambucanas; em Piratininga viaja-se sobre um macho espremido entre duas bruacas de couro ou em banguês rústicos de pau tosco com cortinas de pano cru.
E assim é São Paulo até os meados do século XIX; ainda em 1830, diz Vieira Bueno: "um homem abastado, com seu robição de pano
encorpado e a sua calça de Saragoça ou ganga amarela, trajava decentemente e varava muitos anos. A mulher rica com o seu vestido de sarja de Málaga e a sua mantilha de pano fino com larga renda de puçá, vestia com luxo".
Esse povo simples tem quase como única diversão as festas de igreja: a procissão do Anjo Custódio, solene sob o patrocínio da Câmara, e a do Corpo de Deus, o grande acontecimento sempre
esperado. De resto, novenas, rezas e um ou outro touro corrido à espanhola no Campo dos Curros.
O comer é simples como o trajar: come-se carne seca, feijão simples, bolinhos de mandioca puba e içás torrados.
Foi nessa simplicidade rude que se enrijou para as lides, para as lutas, para o sertão formidável o paulista do passado. Dormindo sobre couros e sob as
estrelas, vestindo picote, comendo palmito, desprezando as sensualidades do luxo, livre e forte sobre a terra inculta, dominou, elevou padrões, dilatou fronteiras, enriqueceu o Reino e formou a nacionalidade.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
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