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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (4)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

PRIMEIRA PARTE

[...]



Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Baetas

Por mais de três séculos se embrulharam os paulistas na espessura feltrada das baetas.

Escravos e senhores, tropeiros e aguadeiros, sinhás e mucamas, nhã-nhãs e quitandeiras, todos se embrulharam, se enrolaram, se abafaram, se esconderam nas baetas pardas, vermelhas, azuis e verdes dos droguetes d'antanho. Longos pelotes bandeirantes sacudiram por espaçados anos, as suas fartas abas pelos rocios e pelos becos estreitos de Piratininga; capotes cor de brasa e rebuços verde-gaio esconderam muita face trigueira de sinhá paulista em manhãs claras de missa, e pelos becos de torcicolo da cidade seiscentista, fugiam como sombras sob a luz encardida de azeite de peixe, que bruxuleava no mistério das noites coloniais, os ferragoulos de barregana, as gualteiras de lemiste, os mantéus de canequim, os feltros paulistanos, de toda a sorte de escravos, peça (N.E.: nome genérico dado aos escravos e também a pessoas de má índole), tropeiro e marafona da época.

Talvez fosse a névoa densa "que se arrastava como uma nuvem espessa pelas ruas de São Paulo", como nos diz Castro Alves mais tarde, a causa dessas baetas; talvez fosse mesmo a influência dos albornozes árabes em que todo o oriente se embrulha, e que nos veio através da Península (N.E.: Península Ibérica – Portugal e Espanha); ou mais ainda do que tudo isso, a nossa desconfiança paulista, sempre pronta a se esconder atrás de uma rótula de pau e de dois côvados de pano, a causa de todos esses rebuços.

Entretanto, nada foi tão combatido pelas autoridades paulistas como o uso das baetas.

O seu uso muito veio concorrer para a falta de segurança individual, e para todos os assaltos à propriedade que se repetiam com freqüência nos tempos coloniais. Pois, todas as pilhagens, facadas e assaltos foram protegidos, dissimulados, pela escuridão das vielas e pelos rebuços de baeta.

Os rebuços, com os seus mantéus de dois côvados, os ferragoulos com as suas gualteiras caídas, ocultaram muita faca de ponta, muito arcabuz de dois canos e muita face contraída de mameluco sanguinário. Daí a freqüência dos crimes que se multiplicavam; cresciam as pilhagens, avultavam assustadoramente os assassinatos, ninguém tinha mais segurança, todos reclamavam, todos protestavam.

É então que o governador, d. Rodrigo Cezar de Menezes, proíbe expressamente por um bando (N.E.: = proclamação) em 12 de maio de 1723 que "nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição que seja possa daqui por diante trazer, nem de dia nem de noite, capuz na cabeça, e o que fizer terá 2 meses de prisão na enxovia da cadeia dessa cidade e pagará para a fazenda real vinte mil réis de multa e perderá o capuz".

Essa lei é, com algumas modificações, uma repetição da lei de 20 de janeiro de 1640 que também proibia as baetas e rebuços, mas ao que parece não foi cumprida estritamente.

De acordo com a necessidade de seu cumprimento, eram as penas de prisão, confisco e multa; mas apesar disso ainda não se consegue arrancar os rebuços do povo paulista, pois vamos encontrar mais tarde, dez anos depois, num edital da Câmara Municipal de São Paulo, em 2 de abril de 1733, uma nova proibição a toda e "qualquer pessoa de grau ou condição que seja ande desde as ave-marias (N.E.: = 18 horas) por diante com capotes de capuz, nem rebuços de baeta, sob pena de confisco do capote e prisão na enxovia".

Em 14 de fevereiro de 1741 nova proibição encontramos num outro edital da Câmara, a todas as pessoas "de qualquer condição que seja use de capuz nos capotes, sob pena de 20 dias de cadeia e quatorze mil réis de multa". Essa penas são, entretanto, acrescidas para os índios, mulatos e carijós (N.E.: = índios escravizados, denominação dada também aos antigos índios guaranis que habitavam o litoral Sul-Sudeste do Brasil), com duzentos açoites no pelourinho da cidade.

Muito mulato e muita peça gemeu então sob o açoite de cinco correias no pelourinho de peroba oitavada da cidade de São Paulo.

Parece, entretanto, que o hábito das baetas é mais forte do que o medo dos açoites, pois em 20 de janeiro de 1743 vamos encontrar novo bando proibindo o uso das baetas "por atalhar os grandes danos e prejuízos que continuadamente se estão experimentando e desassossego em que se acham os moradores desta, por causa dos contínuos desaforos que cometem os carijós, negros, mulatos e bastardos". Eram ainda os ataques noturnos, seguidos de pilhagem, os estupros, os assassinatos, cometidos na treva e protegidos pela baeta.

À vista de todas essas leis e, sobretudo, à vista de todas essas penas, devia ter desaparecido o uso das baetas e dos rebuços; entretanto, é muitíssimo mais fácil fazer leis do que desfazer hábitos, sobretudo quando esse hábito é congênere com o caráter do indivíduo. Esse é o caso das baetas; o paulista estava embrulhado em suas baetas como em seus preconceitos e o seu caráter se escondia atrás de uma desconfiança como o seu rosto debaixo de um rebuço. Daí a teimosia, a relutância, a firmeza nos seus costumes, desprezando leis e bandos, prisões e multas, açoites e confiscos.

Tudo isso vem ainda nos provar a lei de 1775, trinta e dois anos mais tarde, em que se proibia, por um novo bando, lançado a toque de caixa, por todos os cunhais de rua ou rocio da cidade, proibindo agora o uso das baetas pelas mulheres que, diz o bando, "rebuçadas em baetas sem pelúcia alguma, assim como se cortavam nas Logeas e com chapéus na cabeça, seguindo-se desse abuso intolerável no iluminado e felicíssimo Reinado presente Liberdade de precipitarem multas a entrarem em casas de homens, onde nem entrariam se não usassem dos proibidos rebuços e chapéus".

Comina este bando penas de multas e prisão, como as outras. Mas o brigadeiro Machado de Oliveira, em seu Quadro Histórico da Província de São Paulo, escreve indignado que mandava ainda o governador atirar sobre as pernas das transgressoras desse bando, feito "só por mofa ao trajar das paulistas" - acrescenta ainda o indignado brigadeiro.

Quantas qualidades havia de baetas? Diversas; as baetas mudavam de nome conforme a espessura de sua lã e proveniência de sua origem. No fundo era sempre o mesmo algodão ou lã feltrada com o nome genérico de baeta.

Cita-se, entre muitas e pela ordem cronológica de seu aparecimento em terras brasileiras: a raxa, vulgarmente raxeta, muito usada pelos primeiros habitantes da Terra de Santa Cruz. Aparece sempre uma saia de raxeta nos inventários de 1600 em diante. Era grosseira e da mesma ordem da serapilheira, parda ou azul.

A barregana, grossa e felpuda, muito usada para saias, mantéus e roupões de cacheira. Era no Reino feita também de pelo de cabra e era da mesma ordem da raxeta.

O pano pombinho, de telhilha leve de algodão, próprio para vasquinhas.

O lemiste, oriundo da Segovia, lã espessa e macia em que se cortavam as gualteiras e ferragoulos.

O belbute de algodão e cores vivas, para os capotes, petrinas, mantés e véstias.

A leve serafina para os mantos leves e mantilhas de missa.

A lila de várias cores vivas e lustrosas para os capotes e josezinhos de mulher e robições de homem.

O briche para as casacas e nizas de gola alta.

O canequim para gibões e mantéus.

A saragoça, a ganga amarela, a sarja azul de Málaga e muitos outros droguetes, eram os nomes das baetas ainda hoje representadas nas mantas, no ponche, no xale e no pala, últimos sobreviventes de todos os rebuços do passado.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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