Conclusão
"Quase esquecido",
"menos lido do que deveria ser", "não se tem feito muita justiça ao romancista Ranulpho Prata": as expressões de monsenhor Primo Vieira, Luís Bueno
e de Leonardo Arroio sobre o escritor têm em comum a presença de termos relativizantes ("quase", "deveria", "muita justiça"). Eles sugerem um
desafio para definir o papel do romance Navios Iluminados e de seu autor na literatura nacional e local, sem contar a difusão, ainda a ser
pesquisada, de sua obra nos países americanos de fala hispânica, principalmente a Argentina, a partir da edição em espanhol do romance.
Não há como recuperar
os motivos que fizeram Benjamín de Garay escolher a obra de Ranulpho Prata para fazer parte da coleção argentina Biblioteca de Novelistas Brasileños
da Editorial Claridad, mas a presença na coleção de autores como Jorge Amado, Coelho Neto e Lucio Cardoso revela que o tradutor estava atento ao
mais representativo que se fazia em literatura no período no Brasil, ainda mais que em outros projetos teve a oportunidade de traduzir Gilberto
Freyre, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Graciliano Ramos.
Monteiro Lobato, ao
lado de Afonso Schmidt, Menotti del Picchia e Afrânio Peixoto, acompanha Prata também nos volumes do Clube do Livro. Já Coleção Contemporânea das
Edições Cruzeiro coloca o autor ao lado de nomes como Cornélio Pena, novamente Lucio Cardoso, Lygia Fagundes Telles, Josué Montelo e Ledo Ivo, entre
outros.
Por mais arbitrários
que sejam os processos de seleção, as coleções de que fazem parte a segunda, a terceira e a edição em espanhol de Navios Iluminados informam
a presença constante do autor no universo literário por um período um pouco superior a duas décadas após sua publicação (1937-1940-1946-1959).
Após disso, apenas a
edição de 1996, co-publicada por uma editora em parceria com a prefeitura de Santos dentro de um período comemorativo. Uma vez o professor Nicolau
Sevcenko me sugeriu pesquisar os motivos que levaram Navios Iluminados a tal posição de quase esquecimento, mas a resposta a essa questão
ainda não foi encontrada.
O que a dissertação
conseguiu mapear foi parte da filiação literária de Ranulpho Prata – o encontro e o desejo de escrever como Lima Barreto; a denúncia das condições
sociais dos sertões como Euclides da Cunha, a conversão ao catolicismo por Jackson de Figueiredo – e da recepção da obra do autor, em especial a de
sua última obra, somando a este item uma história das edições do livro. Chegou-se assim, na expressão de Paulo de Carvalho-Neto, a definição de um
"lugar para Ranulpho Prata".
"Sem
um certo tipo de espaço, um certo tipo de história é simplesmente impossível". O corolário de Franco Moretti para o romance urbano europeu do século
XIX é aqui transposto para a configuração espacial do porto de Santos [191].
Suas características de espaço híbrido, multinacional, fronteiriço e de ponto articulador do comércio e das trocas internacionais, além dos
movimentos de população, permitiu ao cais de Santos oferecer aos escritores que trataram deste cenário um universo ficcional próprio, ainda que seus
elementos não sejam exclusivos.
Dentro desse universo,
Navios Iluminados deu início a um ciclo de romances do qual ele mesmo é o exemplar que mais se concentrou na atividade portuária como
definidora das ações dos personagens e de sua locomoção pelos espaços. Tanto que acabou sendo apresentado nesta dissertação por ser um romance mais
do bairro portuário do Macuco que um romance da cidade de Santos.
De conteúdo livre das
posições políticas que parte da literatura costumava tomar na época em que foi escrito, Navios Iluminados, embora tenha também seu valor
estético-literário, acabou por se tornar, como disseram Benjamín de Garay e David Capistrano, um documento de seu tempo livre das ideologias, ainda
que carregado de resignação cristã. Na perspectiva de Garay e Capistrano, o romance é um documento que mostra um retrato do período em que se
desenvolve a ação.
Apesar dos filtros da
ficção, a narrativa de Ranulpho Prata permite sim ao pesquisador conferir os acidentes de trabalho, as condições de moradia na cidade, a circulação
de bondes, o modo de trabalho na Companhia Docas de Santos, tanto que o livro já foi citado em pesquisas que traçaram a história do porto e de seus
trabalhadores.
Mas esta perspectiva
pode ainda ser aprofundada se levarmos em conta as características narrativas e do contexto literário do romance e sua relação com a realidade dos
personagens. Da resignação católica (componente pessoal do autor) à descrição do momento da nova dúvida (contexto histórico-literário), fica
caracterizado em Navios Iluminados um enredo de tragédia social – tragédia porque o protagonista não tem condições de mudar seu destino e
social porque é coletivo o destino de José Severino de Jesus.
A resignação e a falta
de alternativas se entrelaçam em tragédia social de uma forma mais acentuada se um contraste for realizado entre o tempo da narrativa (dos
personagens) e o tempo da escritura (do autor). Esta pesquisa não pôde precisar o período em que o romance foi escrito. Sabemos apenas que Prata
mudou-se para Santos com a família em 1927, sendo que não publicava desde 1925. Da chegada à cidade à publicação do romance são 10 anos, durante os
quais não temos informações diretas sobre sua redação e composição.
Antes de relatar a defesa pública que Prata fez de Martins Fontes em 1932, Monsenhor Primo Vieira informa que Fontes manifestava
o desejo de ler os originais do romance, que Ranulpho Prata "amoitava, ou porque receasse as sugestões gramaticais demasiado exigentes do poeta, ou
porque a elaboração da obra não estivesse definitiva" [192];
e o perfil do autor no site da Academia Sergipana de Letras informa que Navios Iluminados foi escrito após 1933
[193].
Já o tempo da narrativa
pode ser localizado entre novembro de 1926 (data anunciada no primeiro capítulo) e uma data indefinida entre 1931 e 32. Ao encerrar as desventuras
de José Severino de Jesus no máximo em 1932, a narrativa não permite a seus personagens ter acesso a específicas melhorias trabalhistas que
garantiriam aos estivadores nos anos seguintes mais segurança, redução dos pesos das cargas e maior poder sobre a atividade, culminando na
implantação do sistema de controle da quantidade de mão-de-obra para cada embarque ou desembarque, o closed shop.
O
ano que marca o início da narrativa, 1926, é exatamente o momento em que a categoria dos estivadores fica sem representação sindical e assim ficaram
até o final de 1930 [194].
Como é mostrado em Navios Iluminados, naquele período eles eram empregados da Companhia Docas de Santos.
Em
novembro de 1930 ex-sindicalistas do início da década de 20 fundam o Centro dos Estivadores de Santos (CES) e ali iniciam a luta política que
alcançaria o closed shop, informalmente, com o apoio de Miguel Costa, secretário de Segurança Pública, e, num segundo momento, por meio de
acordo providenciado pela Delegacia Regional de Polícia de Santos em fevereiro de 1931, o qual estipulava que "nenhuma Companhia ou Empresa poderá
ter seção especializada de estiva" [195].
Em
abril de 1933, continua o historiador, novo acordo assinado entre o CES, contratantes da estiva, Centro dos Empreiteiros e Centro de Navegação
Transatlântica de Santos, consolida as reivindicações dos estivadores em relação ao controle do emprego da mão-de-obra, além de outras conquistas,
como limite de peso para 20 diferentes tipos de mercadorias, medidas de segurança, taxas remunerativas e limite de horas
[196].
Mas a história de Severino já havia acabado quando tais mudanças começaram a ocorrer. O marco temporal do martírio do protagonista é também
histórico.
Talvez esse tenha sido o acerto de Ranulpho Prata: para poder dar corpo ao que se tornaria o "romance da nova dúvida" em 1937, o
autor acabou por deslocar a narrativa para o passado recente (1926-32) ao tempo da escritura (1933-37)
[197],
anterior às conquistas trabalhistas e ao início do processo de construção de identidade de uma forte categoria: os estivadores no porto de Santos
[198].
Não
é o caso de conhecer as intenções do autor, mas de ir além delas e notar que Navios Iluminados, mais que um documento histórico é, na
expressão de Carlo Ginzburg, um texto "entranhado de história" [GINZBURG: 2007, p. 13] [199]:
a história de sua realização, a história de seus personagens que, cada uma à sua maneira, refletem e iluminam os próprios fatos da história da
cidade, do porto e de seus trabalhadores no período anterior às conquistas de melhores condições de trabalho, como um testemunho dos anos da
tragédia social.
Mas a realidade de uma
obra literária está também na sua contribuição para a formação do imaginário de um país, de uma cidade ou de um bairro. Navios Iluminados é a
primeira ficção a tratar da identidade portuária de Santos. Ali foram traçados os limites espaciais – o Macuco, o Paquetá, o Centro, o chão do cais
– que as demais obras do ciclo do romance de identidade portuária iriam explorar nos anos seguintes (ainda que por configurações próprias); mas
acima de tudo, ao por em contraste o bairro portuário com o resto da cidade, Navios Iluminados traz luz – sem trocadilhos – as relações
sempre tensas entre o porto, de administração federal, e o município.
Conflito que começa ainda entre os anos da passagem do Império para a República com a implantação do cais unificado por concessão federal no lugar
das pontes e trapiches controlados pelo comércio local, dos quais são exemplos recentes a redução da massa salarial no porto de Santos como
conseqüência da Lei de Modernização dos Portos e os impactos urbanos com a presença de pátios de contêineres, estacionamentos de caminhões e do
crescente tráfego de cargas pelas ruas da cidade, questões sobre as quais a historiografia ainda não se debruçou e que, desde Navios Iluminados,
foram tratadas novamente pela ficção em 2005, com a publicação de A história dos ossos, de Alberto Martins, em que a trama tem início a
transformação do cemitério do Paquetá em um pátio para contêineres [200].
Ainda que os grandes
eventos históricos não tenham importância na narrativa do romance, o contexto social para o qual contribuem é determinante para o destino de seu
protagonista e dos demais personagens pelas ruas de Santos e do Macuco, microcosmo que é também uma amostra de parte da população brasileira – pelo
menos dos trabalhadores portuários – entre as décadas de 20 e 30 do século passado. |