Capítulo 2
– A literatura de identidade portuária
2.5 O porto multinacional
A face internacional do
Macuco e dos trabalhadores do porto é um tema recorrente em Navios Iluminados. Trabalhadores de todos os cantos do mundo, viajantes
clandestinos e mulheres de sotaque "estrangeirado" aparecem por todo o livro. Há os portugueses, como Manuel Milagre, já adaptados à cidade e
"amigos da companhia". Há os espanhóis ligados ao sindicato. E as prostitutas de várias nacionalidade que recebiam marinheiros, taifeiros,
foguistas:
E lá se iam, ruidosas, contentes, levando cada uma o seu par. Algumas,
de pronúncia estrangeirada, não satisfeitas, distribuíam pelos que ficavam cartões com o nome e o endereço. (NI, 19)
Já no Parisien Bar,
repleto de operários e marítimos fumando e jogando bilhar e dominó, havia a Madame Jannette, mantenedora do local, uma mulher gorda e pesada que
controlava o espaço a partir de sua cadeira alta defronte da registradora. Ela se comunicava "trocando língua" e preferindo dinheiro "estrangeiro".
Embora a trama de Navios Iluminados se passe entre o final de 1926 e os primeiros anos da década
seguinte, pode-se usar o censo municipal de 1913 para se obter uma idéia do tamanho do contingente imigrante na cidade. Naquele ano viviam em Santos
39.802 estrangeiros, número que equivalia a 44,7% da população total do município. Os portugueses formavam a maior colônia, com 23.055 pessoas,
seguidos pelos espanhóis (8.343), italianos (1.852), ingleses (683), turcos (572), japoneses (358) e alemães (344), sem contar norte-americanos,
austríacos, franceses, holandeses e russos, entre outros
[143].
No capítulo 7 de Navios Iluminados, quando o protagonista José Severino de
Jesus começa a trabalhar na estiva, a chamada do chefe da turma 65 revela a face internacional dos
trabalhadores do porto: o espanhol Domingos Peniche, o açoriano Antônio Canadas, o imigrante pernambucano Aurélio Perigo, o italiano Pascoal Fiori,
o japonês Ushiko Giuske, o austríaco Paulo Friedericks, o russo Nicolau Witambosk, o "bresente" de Jorge Kifuri, o alemão Otto Reinam, além de
Severino e outros brasileiros.
Junto com a convivência internacional, as brincadeiras preconceituosas e gracejos de
boca em boca entre as duas fileiras de trabalhadores, a que vinha carregada do navio e a que voltava de mãos vazias do armazém: "Portuga unha de
fome", "Cabeça chata", "Mussolini dos infernos, por que não vai pra tua terra?", "Olha a catinga do negro", "Amarelo de olho torto, afirma as
pernas", "Boca de bagre", "Chupa peito", "Feijoada". O Macuco, naqueles anos, era um bairro multinacional.
Gitahy escreveu sobre a
convivência entre trabalhadores de diversas nacionalidades:
Como foi visto, vários grupos da classe operária experimentando
diferentes situações com respeito ao mercado e ao processo de trabalho, vindos de diferentes experiências culturais e sociais – vida de agricultora
numa vila de Portugal ou das Ilhas do Atlântico, escravidão no Brasil, outros contextos sociais europeus e asiáticos, gente com as mais acidentadas
histórias de vida – foram capazes de construir juntos uma comunidade cujo núcleo eram os trabalhadores do porto (...).
O trabalhador do porto vivia perto do local de
trabalho e seu ritmo de trabalho, no mínimo irregular, permitia a ele ir e vir de casa para o porto mais de uma vez ao dia
[144].
Ao
tratar do cotidiano operário em Santos entre 1930 e 1954, Rodrigo Rodrigues Tavares mostra como se formavam os bairros-nação, categoria na qual a
identidade do trabalhador era definida por sua origem nacional
[145].
Concentravam-se
espanhóis e italianos no Campo Grande, portugueses no morro do São Bento e
japoneses na Ponta da Praia (estes mais isolados), muitos dos quais atuavam em atividades ligadas ao comércio.
Mas enquanto o Relatório da Comissão Executiva da Coligação Operária de Santos sobre
o pleito de 1928 registrava 200 tecelões e 300 metalúrgicos na cidade; os trabalhadores em café (profissões já ligadas ao porto) somavam 3.400
pessoas e os trabalhadores do porto, por sua vez, eram 4.000, grande parte concentrada nos bairros portuários Paquetá e Macuco que, naquele tempo,
compreendia as áreas também dos atuais Estuário e Aparecida:
A situação no cais era completamente diferente daquela vivenciada pelo primeiro grupo disperso pelos espaços do comércio
urbano. A diferença se fazia tanto pela concentração de milhares de portuários no mesmo espaço, como pela distância entre patrão e empregado.
Se alguns empregados do comércio e da construção civil acreditavam que, um dia, poderiam chegar a patrões,
seria impossível convencer os doqueiros ou os estivadores que eles chegariam a proprietários da Companhia Docas de Santos. O convívio no local de
trabalho com o patrão não ocorria no porto
[146].
A
concentração de trabalhadores nos bairros portuários desfaz a categoria bairros-nação: "as identidades nacionais se sobrepunham no porto". A
sobreposição das identidades nacionais garante ao espaço portuário
uma variação de tipos maior que a dos bairros operários, sem contar o
cosmopolitismo dos passageiros e marinheiros, as prostitutas de diversas nacionalidades.
Ambientação que talvez
tenha mais proximidades com Hamburgo, Liverpool, Nova York e, no Brasil, com Rio de Janeiro, que com a próxima e industrializada São Paulo, cuja
configuração é complementar ao complexo portuário de escoamento da produção cafeeira e importação de insumos para o parque industrial
[147].
As condições específicas de trabalho nos
portos também favorecem a internacionalização da cultura portuária. A autora resgata como na virada do século XIX para o XX são implementados os
portos modernos:
Ao mesmo tempo, na maioria dos portos do
mundo, floresce uma política de contratação de mão-de-obra que desembocou na criação de um sistema ocasional de trabalho, ainda não completamente
eliminado em muitos portos atuais.
Este sistema apareceu historicamente
como a resposta dada pelos empregadores às constantes flutuações de carga e descarga de mercadorias nos portos. O traço básico do sistema é uma
extrema flexibilidade na contratação dos trabalhadores. Diariamente e até duas vezes no dia, uma multidão de candidatos aglomerava-se nos portões
dos portos para conseguir trabalho para o dia ou até por algumas horas.
Este sistema de
contratação conhecido como free call (Inglaterra), shape up (Estados Unidos) ou "parede" (Brasil), levou à
criação e manutenção de um exército permanente de reserva na área do porto, ao qual os empregadores recorrem nos momentos de pico do movimento do
porto [148].
A multiplicidade de origens e destinos das
cargas também favorecem à formação de um espaço internacional, como podemos ver nesta passagem do início do romance na qual Severino, ainda
desempregado, passeio pelo cais santista:
Severino [...] saiu, sem pressa,
calmamente, tomando a direção do cais, onde as horas passavam rápidas, distraído com uma porção de coisas nunca vistas por ele. A chegada dos navios
que lentamente atracavam, às vezes depois de manobras custosas.
A labuta sem fim de lhes encher e esvaziar
os ventres. Desembarcavam-se trigo da Argentina, vinhos de França e Portugal, mármore da Itália, carvão da Inglaterra, aço e ferro da Alemanha,
maquinismo dos Estados Unidos, cimento e bacalhau da Noruega, óleo da Holanda, sedas e porcelanas do Japão, adubos da Bélgica, massa para papel da
Suécia, enxofre do Chile, juta e chá da Índia.
Embarcavam-se café, laranja, banana,
algodão, fumo, carne.
Um formigueiro de homens suados, barulho de
guindastes, locomotivas arfando, vozes, gritos, apitos. Um dia dos diabos, que azoava a atraía Severino. (NI, 17)
Enfim,
as passagens acima, tanto as ficcionais como as de estudos, confirmam um imaginário de uma cidade provisória
[149],
de comércio, de transbordo de cargas e sotaques, de migrantes e viajantes, de oportunidades e porões, de idas e vindas, como indicam o poema acima
de Roldão Mendes Rosa ou os versos a seguir de Alberto Martins:
cais
onde
as coisas ancoram
onde
as coisas demoram
algum
tempo
antes
de partir [150] |