Capítulo 2
– A literatura de identidade portuária
2.4 Toponímia
ideológica e espaço internacional de lutas na literatura de identidade portuária
A
historiografia tem bastante registrada a ligação de trabalhadores portuários de Santos com o anarquismo do início do século XX e o movimento
operário de 1917 e, posteriormente, o crescimento da ideologia comunista na cidade, da qual os livros de Gitahy, Tavares e Silva são exemplos.
Na ficção, o romance histórico Barcelona Brasileira dá cores à filiação anarquista do movimento operário em Santos neste romance
histórico que trata do movimento grevista de 1917 na cidade.
Em comentário, há uma resenha sobre o romance de Adelto Gonçalves
[140].
A obra, escrita no início da década de 1980 e publicada no Brasil em 2003, traz em seu título o primeiro de uma série de nomes com
ecos políticos pelos quais a cidade de Santos ficaria conhecida ao longo na primeira metade do século XX.
Além do título do romance de Adelto Gonçalves, Santos também foi chamada de Moscou Brasileira, Cidade de Prestes,
Cidade Vermelha. Há até a versão reduzida Moscouzinha Brasileira, a qual une a promessa de revolução à garantia do aconchego brasileiro
que o uso do diminutivo garante à expressão, uma clara manifestação das relações cordiais do brasileiro, ao estilo de Sérgio Buarque de Holanda.
Dois trabalhos históricos já analisaram esse aspecto do imaginário da
cidade. Os já citados Operários sem Patrões. Os trabalhadores de Santos no entreguerras, de Fernando Teixeira Silva,
e Porto vermelho: A maré revolucionária (1930-1951), de Rodrigo Rodrigues Tavares, avaliam as estratégias do movimento sindical, dos
intelectuais e do aparato repressor em invocar o nome destas cidades para tratar de Santos de acordo com os interesses e conjecturas políticas de
cada um dos campos opositores.
Esse fenômeno de toponímia ideológica da cidade reforça, pelo menos no imaginário da cidade e de seus grupos constitutivos, as
relações simbólicas entre Santos e as cidades que lhe fornecem apelidos ideológicos, pelos quais a cidade se transforma em território de
internacionalização das lutas operárias. Participando da batalha ideológica ou tecendo um painel histórico, os autores da literatura portuária
realimentam esse imaginário.
Em Agonia na Noite, por exemplo, a referência é à Moscou do
comunista Jorge Amado que se estabelece no momento em que Doroteu, o estivador protagonista, reconhece tanto a bandeira vermelha de um navio
soviético proibido de aportar em Santos quanto a bandeira nazista de um navio que, em plena segunda guerra, vem em Santos buscar café para a Espanha
governada pelo fascismo. A negativa dos estivadores em embarcarem café no navio de "bandeira abjeta" dá início à trama de conflito de classes e as
situações de conflito entre trabalhadores e repressão.
Em Barcelona Brasileira, esse espaço internacional é percorrido
pelo personagem Ángel Blanco, líder operário do cais santista, espanhol criado no cais de Barcelona, ladrilheiro, anarquista desde a infância,
militante, preso pela primeira vez aos 18 anos, exilado. Foge para Buenos Aires em um navio argentino e, no meio do caminho, prefere descer em
Santos para não complicar o comandante, seu amigo. Nas descrições, Blanco é talhado desde criança para a luta de classes:
Apareceu
outra vez em Santos numa madrugada de chuva, quando os operários do armazém 12 decidiram não realizar o trabalho de descarga de um navio italiano, o
Benevento, que, seis anos antes, havia levado muitos deportados para a Espanha
[outro exemplo literário do internacionalismo].
Tinha 35 anos, mas sofrera tanto nas mãos da
polícia que parecia muito mais velho. [...]
Criado no
porto de Barcelona, crescera ouvindo as aventuras dos homens do mar que se reuniam à tarde na pequena bodega que seu pai mantinha em frente do
Mediterrâneo. [...]
Aos cinco
anos, já demonstrava o mesmo impulso de crescimento do pai, homem corpulento, trabalhador e pouco educado, mas conhecido no porto por sua
honestidade. [...]
Foi por
essa época que assistiu pela primeira vez a uma manifestação popular, quando os trabalhadores de Barcelona organizaram uma passeata em homenagem aos
famosos mártires de Chicago [o
internacionalismo, novamente]. Sentiu um prazer
incontido ao ver o povo nas ruas, gritando frases que ele ainda não compreendia, mas achava bonitas.
[...]
Como o pai e a mãe, aprendera a falar apenas o catalão, mas o que o
atraía mesmo era o castelhano, porque era em castelhano que estavam escritos os livros e as revistas que o mercador expunha nas ramblas ao
lado das gaiolas com pássaros e pequenos animais e das bugigangas.
[...]
Aos 18 anos, quando sofreu sua primeira prisão, passou a ser respeitado
por todos, porque, uma semana depois de ter sido levado para o cárcere central de Barcelona, fugiu. Ninguém soube como, mas o certo é que, uma
noite, irrompeu uma reunião da organização dos trabalhadores e fez um discurso que ficou famoso porque disse que o dever de revolucionário não era
pedir indultos nem mendigar anistias; se perseguido, não se devia deixar prender; se preso, devia fazer o possível para fugir. Magoou alguns
militantes que haviam sido beneficiados pelo indulto do ano anterior, mas arrancou aplausos de jovens como ele. E, assim como surgiu, desapareceu:
nessa época, estava mergulhado na clandestinidade. [...]
Começou a
colaborar com a imprensa anarquista, assinando artigos com o seu nome maçom, Andrés. Tempos mais tarde, por causa de um artigo publicado no jornal
libertário La Huelga General, em que contestava os socialistas autoritários, afirmando que não existia ditadura do proletariado, mas apenas
ditadura, acabou expulso da Federação Regional Obreira da Catalunha.
É a descrição de um homem que luta. Em Santos,
envolve-se até com um atentado. Sua luta política nos dois lados do Oceano Atlântico preenche o espaço internacional entre Barcelona e Barcelona
Brasileira como um local de conflito [141].
Não é o que acontece com os personagens de Navios Iluminados, na
qual esse mesmo espaço é descrito como local de resignação, de uma miséria que não se altera independentemente de qual ponto do planeta o pobre
sofra. A viagem de outro espanhol nascido em Barcelona, Pepe Riesco, até Nova York e dali até Santos, é o exemplo dessa outra chave literária – a
tragédia social – de tratar o mesmo espaço.
No romance de
Ranulpho Prata, as aventuras do espanhol pelos portos do mundo são assunto recorrente pelas ruas do bairro portuário de Santos. Ele havia passado
por Nova York, Cuba e Barcelona, onde fora preso sem que o narrador nos apresente a razão, ainda que o texto insinue a militância política como
motivo.
A única história que Pepe
gostava de contar era a de sua chegada em Santos depois de uma viagem como clandestino, muito semelhante ao percurso do anarquista de Barcelona
Brasileira.
Desempregado e receoso do
inverno que começava a atingir Nova York, Pepe aplica seus últimos 27 dólares para conseguir um espaço nos porões do Southern Cross,
transatlântico que tinha Buenos Aires como destino, cidade onde tinha amigos e na qual mantinha a esperança de conseguir trabalhar novamente. No
porão do navio, ele encontra Walfredo Muller, um agricultor alemão empobrecido pela I Guerra Mundial, exemplo às avessas do internacionalismo
lutador:
O companheiro de Riesco era um alemão a quem a guerra, além de aleijar
uma perna, empobrecera, reduzindo-o de lavrador abastado da Baviera a mendigo internacional. (NI,
56)
A água e a comida dos dois
companheiros se esgotam no meio da viagem. Para piorar, a embarcação é atingida por uma tempestade que pega os clandestinos nos porões escuros:
De repente o mar
zangou-se, piorando a situação. O vapor começou a jogar, as ondas quebrando-se de encontro ao casco com ruído de desmoronamento. Ventava rijo e as
águas engrossavam sob o açoite da chuva. No porão meio vazio principiou a dança dos volumes que se arremessavam uns contra os outros, rangendo,
chiando, atritando-se furiosamente.
Pepe olhava-os, receoso
de ser esmagado. Não sabia como se defender nem ao companheiro. Para o lado que se lançava, sentia os caixões em movimento, deslizando como coisa
viva. O balanço era cada vez mais forte, parecendo que o vapor corcoveava, numa guinada mais violenta, um pequeno volume desprendeu-se de uma pilha
de fardos e rolou sobre ele, esmagando-lhe os dedos da mão esquerda. Pepe saltou um rugido e uma praga violenta.
Enquanto fora durou o
temporal, lá dentro os clandestinos sofreram até não poder mais. Foram horas infernais, inesquecíveis, as máquinas arfando, o mar a bater no costado
com o lençol duro nas ondas e os volumes, que no negrume semelhavam monstros, querendo devorá-los.
(NI, 58)
Os dois companheiros são
descobertos no Rio de Janeiro. Muller é levado ao hospital, onde morre horas depois, e Pepe é forçado a trabalhar no navio até o retorno aos Estados
Unidos. Em Santos, porém, ele salta nas águas do estuário e se refugia em uma colônia de pescadores. Recuperado da aventura, toma rumo para São
Paulo, mas em poucas semanas voltaria a Santos, que lhe agradara mais. Na cidade portuária, trabalha como garçom, lixeiro e, enfim, entra para a CDS
por meio da ajuda de um conterrâneo que trabalhava na seção elétrica das oficinas da companhia.
Já no final do livro, o protagonista José Severino de Jesus, ao
comentar as intenções do irmão mais novo de morar em Santos, traça um retrato às avessas do internacionalismo pregado pelo Ángel Blanco de
Barcelona Brasileira:
-
Não há canto no mundo onde pobre não sofra. É sina que Deus lhe deu. E toda sina tem que ser cumprida. Quem tem forças pra fugir? Aqui ou lá, é a
mesma coisa. Não tem apelo. Sendo assim, o melhor é ficar no lugar onde nasceu. (p. 178)
Tanto na chave resignada
e de tragédia social de Ranulpho Prata, na heroificação do estivador promovida por Jorge Amado ou na do conflito social de Adelto Gonçalves e John
dos Passos, o que estas narrativas têm em comum é o motivo literário dos portos como locais de articulação internacional, ou como na imagem do
escritor argentino Ricardo Piglia, uma máquina narrativa que desenvolve seu próprio tipo de histórias
[142].
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