Capítulo 2
– A literatura de identidade portuária
2.2 O ciclo
do romance de Santos e a literatura de identidade portuária
Nas páginas de A
Tribuna de 4 de janeiro de 1938, um texto assinado por Álvaro Augusto Lopes destacava a chegada de Navios Iluminados, publicado no ano
anterior. Para o autor, a obra ocupava um espaço que a literatura local ainda não havia preenchido, isto é, era a primeira a tratar do porto de
Santos e seu universo de trabalho composto por uma "variedade caleidoscópica de episódios e indivíduos,
(...) toda uma população cosmopolita e sofredora". A resenha recebia a publicação do romance da seguinte forma:
Navios Iluminados
é bem o romance da pobreza de Santos, que ainda faltava escrever-se. Ranulpho Prata, pelo conteúdo humano que neste livro condensou, afirma-se, mais
uma vez, com um dos mais brilhantes romancistas da geração contemporânea
[120].
A mesma impressão é a de
Rubens Amaral, que escreveu sobre o livro para a Folha da Manhã, de São Paulo, em 13 de março do mesmo ano. Para Amaral, a presença do porto fez com
que surgissem na cidade de Santos talentos como Frei Gaspar, os Andradas, Vicente de Carvalho, Alberto Sousa, Martins Fontes, Reynaldo Porchat,
Afonso Schmidt e Ribeiro Couto (com a exceção de Schmidt, nenhum deles era romancista), mas, continua o resenhista, naquele momento ainda faltava um
grande romance que registrasse a cidade pelas lentes da literatura:
Praia e pescadores
tiveram quem escrevesse seu romance e seus contos, quem cantasse as suas dores e as suas glórias. Por dentro das praias e diferentes dos pescadores,
há o porto, com os seus estivadores e carroceiros, gente humilde perante a Fortuna, que a esqueceu como a esqueceu a Literatura. [...]
Apareceu agora esse romancista, no sr. Ranulpho Prata, autor de Navios Iluminados, que é história daquela gente do cais em sua mistura com a
de Vila Macuco, à margem do giro do café, do movimento de importação, do gozo das praias com os seus balneários e os seus cassinos
[121].
Na
Folha de Minas, 12 dias depois, Jair Silva faz o mesmo destaque: "Em Navios Iluminados o autor realmente diz muita coisa da vida do mar.
Mais, talvez, da existência dos homens obscuros que trabalham no porto"
[122].
Ao ocupar um espaço literário ainda inédito, o porto, Navios Iluminados dá início ao que
Narciso de Andrade chamou de ciclo do romance de Santos. Ele tratou do assunto na coluna semanal que assinava em A Tribuna durante a década de 1990,
Escritos, ao comentar a obra ensaística do escritor e professor Adelto Gonçalves
[123].
O autor não caracteriza o que seja esse ciclo, mas enumera as obras que dele fazem parte: além de Navios
Iluminados, formariam o ciclo ainda Cais de Santos (1939), de Alberto Leal; Querô – uma reportagem maldita (1976), de Plínio
Marcos, e Os Vira-latas da Madrugada (1981), do próprio Adelto Gonçalves, sem contar o então ainda inédito Barcelona Brasileira,
também de Adelto, que só seria publicado no Brasil em 2002
[124].
Em Escritos, Narciso de Andrade publicava poemas, memórias, crônicas e textos
sobre literatura como Adelto Gonçalves ou a paixão pela literatura, no qual aponta para a produção literária santista realizada naquele
momento. Seu objetivo é fazer o leitor voltar os olhos para a produção literária contemporânea: "mas é preciso que esta cidade saiba que a
literatura por aqui não vive só de passado". A idéia de ciclo é assim aplicada para unir obras recentes e pretéritas, oferecendo ao
leitor uma perspectiva de continuidade temática e de qualidade.
Narciso de Andrade não inclui no ciclo Agonia na noite, de Jorge Amado,
segundo volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade (1954), sobre o
mundo do trabalho em Santos, Rio de Janeiro e Salvador. O episódio que dá início à trama é uma greve realizada
em 1938 em Santos na qual os estivadores se negaram a embarcar café para a Espanha governada por Franco. Na obra de Amado há poucas referências
geográficas. Ali o porto de Santos é um espaço mítico ocupado por heróis-estivadores que dão a seus filhos o nome de Luís Carlos em homenagem ao
líder comunista Prestes.
Cabe aqui uma reflexão sobre a expressão "ciclo do romance santista": a qualificação
"santista" leva a considerar que as obras foram feitas na cidade ou que a tem por cenário. Desde o século XIX, conta Franco Moretti em Atlas do
romance europeu (1800-1900), as cidades são os espaços privilegiados dos enredos romanescos, desenvolvidos em tramas e subtramas que reúnem
entre 15 e 20 personagens que se movimentam em torno de seus espaços ("socialização
secundária"), formando assim o "romance da complexidade".
É por meio desse arranjo tripolar (protagonista,
antagonista e "sobredeterminação social") que surge a "forma secreta da cidade, onde a natureza indireta – triangular – das relações sociais se
torna inconfundível e inevitável"
[125].
Das obras acima, é Barcelona Brasileira que cumpre o requisito de forma mais clara. Seu
protagonista, o Poeta (personagem baseado em Martins Fontes
[126]),
circula de carro entre os mais variados ambientes da Santos de 1917, durante a Belle Époque: sessões nos sindicatos de tendência anarquista, as
festas nos salões da classe política dirigente, as redações dos jornais burgueses, as conversas nos bares do Centro.
Ao reunir sindicalistas,
trabalhadores, políticos e policiais no universo operário de Santos nas greves de 1917, a ação evita o cenário exclusivamente portuário e se desloca
em direção às manifestações de outros grupos proletários (empregados da companhia de bondes e das concessionárias de serviços públicos, por
exemplo).
A movimentação interclassista do protagonista – um médico e poeta
burguês com trânsito no movimento operário – permite ao enredo mostrar uma série de locais da cidade além do porto. O mesmo faz seu antagonista, o
delegado Parsifal Abud, que cruza a cidade desmantelando greves e piquetes. Essa mobilidade é ainda acentuada por serem os dois os únicos
personagens do romance que possuem carros (Abud até recebe um novo carro de presente da burguesia local devido aos serviços prestados para a
manutenção da ordem na cidade).
Já as outras obras são mais portuárias que santistas. Cais de
Santos e Navios Iluminados já trazem essa vinculação nos próprios títulos, como Cais, do poeta
Alberto Martins, de 2003 que, lógico, não poderia estar na lista de Narciso. O espaço pelo qual circulam seus personagens é o porto e seu
entorno. Eles percorrem os bairros portuários do Centro, Paquetá e Macuco. Com maior ou menor ênfase, estas ficções, ao
invés de caracterizar o romance urbano de complexidade, optam pelo microcosmo ligado ao porto
[127].
Mas pode-se ainda diferenciar as obras portuárias
entre si. Embora contenham diferenças de estilo e conteúdo, Cais de Santos, Querô e Os Vira-latas da Madrugada
apresentam o porto indiretamente, por meio de atividades que acabam se desenvolvendo em cidades portuárias,
como boates, casas de tolerância, bares, prostituição, brigas, furtos e arranjos informais espalhados num espaço literário que se estende pelos
bairros em torno do porto: Paquetá, Vila Nova, Macuco e Centro, que formam, enfim, o "porto dos pequenos expedientes", à margem de sua
atividade principal
[128].
Em Cais de Santos
lemos histórias do submundo da periferia do porto, universo posteriormente retratado por Plínio Marcos. Em um dos episódios, após o assassinato de
uma prostituta, suas colegas armam uma greve e até se quotizam para pagar as diárias das que não tinham dinheiro para pagar à dona do bordel. Os
vira-latas da madrugada, ainda que distante historicamente dos anos 30, traz a mesma preocupação de registro do universo em torno do porto de
Santos.
O
romance é baseado nas memórias do autor e jornalista, que passou parte da infância e juventude no bairro do Paquetá, onde está o cemitério de mesmo
nome, o Mercado Municipal, as ruínas da Hospedaria dos Imigrantes e a maior parte dos cortiços de hoje
[129].
Em Navios Iluminados,
porém, é a própria atividade portuária que define a atuação dos personagens, que trabalham como estivadores, taifeiros, operadores de guindastes,
foguistas das dragas que limpam o canal do porto e exercem atividades braçais nas oficinas da Companhia Docas de Santos (CDS).
Mais que a exclusividade de funções portuárias exercidas pelos
personagens do romance, o próprio Macuco – mais que os outros bairros, à margem do porto – é mostrado pelo autor com ligações mais fortes com o
porto do que com o restante da cidade, da qual aparece isolado. O protagonista e todos os personagens vivem em torno do prédio da Inspetoria da CDS.
A passagem do livro, logo na terceira página da narrativa (p. 19), em que a sirene da companhia acorda os 5 mil habitantes do bairro é bem
representativa desse poder de atração do porto amplificado pela presença de sua autoridade administrativa:
Amanhecia devagarinho. O dia, entrando pelas frestas das paredes de madeira,
desenrolava no quarto serpentinas de luz. Da rua, vinham os ruídos de todas as manhãs, muito seus conhecidos: o bonde que passava, trepidante, na
outra rua, a Senador Dantas; a buzina do automóvel do leite desnatado; as carrocinhas de pão.
De repente, as cinco sirenes das docas bradaram nos ares, levantando o Macuco em
peso, o grande bairro onde se alojava a maioria dos seus cinco mil operários. (NI, 13)
Essa configuração da comunidade em torno do cais foi descrita por
Fernando Teixeira da Silva:
O trabalho ocasional estreitava, portanto, a proximidade entre moradia
e fontes de emprego, fazendo com que os trabalhadores do cais fossem vizinhos e habitassem nas localidades contíguas ao cais, como os bairros
Macuco, Vila Matias, Paquetá e a região central da cidade. Como em outras cidades portuárias, havia em Santos a presença de uma forte endogomia no
interior dos bairros ou mesmo de ruas, dando origem a estreitas "comunidades familiares", caracterizadas por sólidas redes de comunicação.
Relações preexistentes às estabelecidas nos locais
de trabalho fortaleciam-se, assim, por meio de laços pessoais de contratação de mão-de-obra, sendo comum a constituição de verdadeiras linhagens
familiares de portuários, que transmitiam uma cultura de trabalho de geração para geração. Observa-se que, mesmo nas relações entre trabalhadores
não aparentados, era comum a utilização do termo "cunhado" para expressar uma forma de convívio familiar no interior do porto
[130].
No romance de Ranulpho Prata, o protagonista, o estivador José Severino de Jesus, se
locomove entre o chalé do bairro portuário do Macuco e o cais. A cidade completa só é percebida pelo trabalhador migrante quando ele é internado no
pavilhão de tuberculosos da Santa Casa e dali, da janela, tem acesso a uma vista geral de Santos:
A distração ali
era olhar o panorama da cidade, estendida na planície. Lá estava o canal, abraçando-lhe a cintura. Via-se bem o limite do casario, as filas de
armazéns, internos e externos, os vapores alinhados ao cais, a ponta dos guindastes, o fumo das locomotivas e, mais além, transposto o canal,
Itapema, a Ilha Barnabé, Bocaina, Guarujá, o verde rasteiro do mangue, o monte Cabrão, o morro das Neves, a serra do Quilombo.
Depois, era o
mar, as praias com os seus jardins, hotéis e pensões de luxo. Duas cidades diferentes: a de cá, escura, poenta, cheia de movimento e barulho, suada
de trabalho; a de lá, clara, limpa, alegre, refrescada pelo sopro do mar, com gente ociosa no hall dos hotéis, bebendo, tomando banho,
espiando as mulheres.
Ao lado do pavilhão, o Monte Serrat, com sua ferida no flanco e o cassino trepado no
cocoruto, tapando a vista da velha igrejinha que Severino tanto queria olhar, sabedor de seus milagres. À noite, o ruído e a música do cassino,
pingando luz pelos beirais e cornijas, incomodavam demais. Aos sábado, então, quando a folia se prolongava até a madrugada, ele, insone como a
maioria dos doentes, escutava o barulho grosso da vida gozada que vinha lá de cima nas asas do vento. (NI, 168-169)
Esse isolamento é a chave da tragédia de
José Severino de Jesus. Na cidade, ele é familiarizado apenas com o percurso entre sua casa e o cais; e evita fazer qualquer outro. São poucas e
significativas suas saídas do bairro – a conquista do sonhado emprego na estiva, documentação de identidade, registro de casamento e internação no
hospital.
Severino até viaja de bonde em uma única
vez, mas depois prefere ir a pé para economizar. O Macuco em torno do porto é seu universo. Nesse caso, o bairro, mesmo traçado no mapa da cidade, é
um território tomado pelo porto e sua atividade humana. A exploração narrativa desse espaço feita por Ranulpho Prata demarca esse isolamento.
Poucas páginas de Querô
ou de Os vira-latas da madrugada contêm mais citações de bares que todo o romance de Ranulpho Prata. Em Navios Iluminados o bar
que mais aparece é o Ao Gaiato de Lisboa, perto do chalé em que o protagonista divide um quarto com o amigo.
O bar fica na esquina
entre a Avenida Rodrigues Alves e a Rua Senador Dantas. Com outro nome, é uma padaria que está lá hoje no lugar. Ali trabalhadores do bairro se
reuniam para uns aperitivos, mas sua função na narrativa é oferecer um lugar em que o protagonista conseguisse consultar a seção de classificados de
A Tribuna atrás de oportunidades de emprego. Mais tarde, quando ele recebe uma carta de rompimento, embebeda-se no bar, mas esta é uma
situação-limite que contrasta com os hábitos de José Severino de Jesus.
Não que os personagens do
romance não freqüentem bares: em determinado momento do livro, o narrador nos mostra uma reflexão de Severino, que não entendia o hábito dos colegas
da turma de gastar em bares o curto salário. Mas esse não é o cenário em que se desenvolve a narrativa, com três curtas exceções: uma cena rápida na
página 63 na qual Severino é levado ao bar Fura Mundo pelo amigo Felício a de onde logo sai reprovando a "sensualidade grossa" do local; uma cena
rápida no Parisien Bar que serve de pretexto para Felício se gabar entre amigos da viagem que fizera a Buenos Aires com dinheiro ganhado no jogo do
bicho; e, já no final do livro, quando Severino, já afastado do trabalho por causa da tuberculose, leva o irmão que o visitava, sempre junto com
Felício, ao Bar Galo Preto (página 80). É basicamente uma cena de despedida.
Em artigo de 1996
na revista Leopoldianum, da Universidade Católica de Santos, o professor das Faculdades Metropolitanas Unidas Maurício Silva, ao analisar
a obra Os vira-latas da madrugada, aponta que o ambiente do porto propicia aos romances com
esta temática características distintas do romance urbano da literatura proletária ou da literatura regional:
Sem ser campo, mas também sem chegar a ser completamente cidade, o cais do porto parece situar-se numa zona limítrofe, num indefinível
meio-termo, um universo norteado por uma espécie curiosa de natural dicotomia: contém, ao mesmo tempo – e numa mistura que apenas um espaço com
características tão originais poderia conter –, particularidades tanto do campo, quanto da cidade, o que nos permite reformular nossa afirmação
anterior: para além de ser uma região dicotômica, o cais do porto é, sobretudo, um espaço híbrido
[131].
O fato de os estivadores serem uma categoria de trabalhadores avulsos (não empregados), a partir da década de 30, também colabora para que os
romances do universo portuário sejam caracterizados como um universo próprio de ficção de forma autônoma à literatura proletária, ligada mais aos
centros industriais
[132].
Em Navios Iluminados,
ao lado do registro das mazelas dos trabalhadores, percebe-se como as características do trabalho surgem no texto ficcional, tais como o trabalho
avulso e sazonal, a insalubridade – desde o peso das cargas até a tuberculose da cidade úmida e dos armazéns frigoríficos.
Além do clima, a relação
dos personagens com o trabalho e o ambiente do porto é mediada pela paisagem. Não há o espaço fechado das fábricas do romance proletário
convencional, os estivadores trabalham ao ar livre, na chuva, no sol e no mormaço.
Além da luta contra o
capital, o trabalhador e os personagens que circulam em torno do porto devem enfrentar o meio, uma característica que aproxima Navios Iluminados
e a literatura de identidade portuária de obras como Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, onde o sertão ocupa a função narrativa do cais;
e Germinal (1885), de Émile Zola, em que as minas de hulha desempenham tal função. Em todas essas obras, o ambiente se alia à "sobredeterminação"
social na definição do destino dos personagens.
O espaço portuário se
diferencia do espaço proletário também na sua configuração territorial. O porto não é a cidade, fica além dela, tanto que o território do porto de
Santos é federal, o município não tem qualquer autoridade ali. Narrativamente, a obra também se realiza na linha intermediária entre a literatura
proletária e a literatura regionalista.
O porto é justamente um
espaço intermediário, de trocas e contato entre os dois campos. É o ponto de chegada ao país de produtos industrializados importados e de saída de
produtos agrícolas e matérias-primas, sem contar o movimento populacional. É esse espaço intermediário que constitui o universo ficcional próprio da
literatura de identidade portuária. |