Autor retrata a Cidade e o Porto de Santos em imagens poéticas
Bruno Merlin
reportagem
Poemas, gravuras, esculturas, artes plásticas. Não são
poucas as áreas em que o versátil poeta Alberto Martins aplica suas experiências. A obra de Martins é repleta de referências e de inspirações
ligadas à Cidade e ao Porto de Santos.
O autor lançou recentemente o livro História dos ossos. A obra é composta por
duas novelas, envolvendo imagens poéticas do Porto de Santos e de todo o litoral por meio da transferência da ossada do pai do narrador do cemitério
do Paquetá, que será transformado em um pátio de contêineres.
Martins tem em seu currículo, também, a autoria de Cais, obra lançada em 2002 e
que reúne poemas e gravuras do autor. A movimentação do Cais de Santos fornece a maior parte das imagens transformadas em poesia.
Nascido em Santos, em maio de 1958, Martins trabalha e mora, atualmente, em São Paulo.
Lá, ele exerce a função de editor na Editora 34. Mas o poeta faz questão de enfatizar a importância da cidade litorânea ao longo de sua obra. "Do
ponto de vista da literatura, isto é, do escrever propriamente, Santos se tornou importante para mim num momento em que eu precisava de referências
– mais especificamente, de referências da paisagem", explica.
De acordo com ele, tal importância aumenta durante a década de 90. "O
livro Cais foi um ponto de chegada desse processo de rever e de observar a paisagem do litoral, o lugar de Santos na linha da costa, e o
lugar do porto na Cidade".
Em relação ao porto, Martins afirma que sempre teve uma relação de mistério. "De
certo modo, para quem cresceu a quatro ou cinco quadras da praia, o porto era uma espécie de motor misterioso e desconhecido da Cidade. Lembro que
na infância os navios apitavam ao entrar na barra e o barulho soava no quarto como se viesse de dentro do armário".
O poeta ressalta que em História dos ossos, seu livro mais recente, há uma
passagem, no alto do Monte Serrat, em que o protagonista expressa sua surpresa e tenta reconciliar os dois lados da cidade de Santos. "A
cidade praiana, aberta para o mar; e a cidade portuária, voltada para dentro, para o lagamar de águas quase paradas".
Martins afirma que Santos é uma cidade diferenciada devido a essa característica de
duplicidade: a agitação e badalação das praias de um lado, e do outro o porto, industrial e repleto de riquezas desconhecidas. "Gosto
de pensar que a cidade traz essa dualidade dentro de si e, provavelmente, isso é algo que ainda vai voltar em meus escritos",
garante.
Vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infanto-juvenil em 1995, Martins salienta
que Santos nasceu voltada para dentro, para o lado de dentro do mar. "O centro do Município é a parte mais labiríntica
da região, onde há o trabalho pesado do cais, com os guindastes enormes e toda a grana bruta. Ao mesmo tempo, a parte recente, do outro lado do
Monte Serrat, é aberta para o mar, o que cria uma estrutura retilínea voltada para o oceano".
Segundo o poeta, quem circula por ali raramente tem olho para ver o que se passa do
outro lado da cidade. "Digo isso porque algumas pessoas da cidade, ao ler os meus poemas, vieram dizer: 'Puxa,
é verdade, como é que você foi ver essas coisas?'".
O escritor, durante a tarde de autógrafos em
Santos
Fotos: Bruno Merlin, publicadas com a matéria
Cais - O poeta lembra que o fato de seu pai estar enterrado no cemitério
do Paquetá é um dado afetivo e um dos principais motivos que geraram o livro Cais. Ele diz que o fato de seu pai ter sido enterrado a um
quarteirão do cais é uma grande ironia. "Ele era uma pessoa que sempre teve uma preocupação enorme com a higiene, com
estar muito limpo, lavar muito as mãos, e foi enterrado no quarteirão mais degradado da cidade", lembra o escritor,
afirmando que o cemitério fica a uma quadra do estuário, numa zona de prostituição e de alto índice de Aids.
Martins conta já foi várias vezes ao cemitério visitar o túmulo de seu pai e que
observou atentamente esta região da Cidade. "Em uma dessas passagens, guardei uma cena que me marcou bastante. Era um
sábado ou domingo de manhã, quando a população inteira sai de casa e, pelos canais, as pessoas vão em direção à praia. Peguei o carro e fui, pelos
canais, na direção oposta, na direção do centro. Essa inversão de sentido, de repente, fez todo o sentido. Porque havia uma experiência que se dava
no centro da Cidade".
Foi através de outra de suas habilidades, o desenho, que Martins acabou se aproximando
e descobrindo outro ponto emblemático da Baixada Santista, a Serra do Mar. "Desenhei-a muitas e muitas vezes. Desci até
o porto em diversas oportunidades e também lá houve algo que me impressionou: a balsa que sai do lado da alfândega, passando ao lado de uns cascos
de navio imensos... grandezas de que a gente não se dá conta no dia-a-dia de São Paulo. Fiz essa viagem várias vezes e levava comigo um caderno de
desenhos". Os desenhos a que Martins se refere estão na origem das xilogravuras reproduzidas no livro Cais.
Vicente de Carvalho é, também, uma região muito presente nas histórias que o poeta
conta em suas obras. "De lá, quando se olha para Santos, dá para ver a linha do cais com todos aqueles navios e
guindastes. Todo aquele investimento e grandes riquezas em uma estrutura industrial pesada".
Martins diz que um dos fatos que mais lhe marca em relação a Vicente de Carvalho são
as colônias de pescadores construídas de um modo bastante artesanal. "Os pescadores saem para pescar à noite, no
estuário, fisgam camarão e sobrevivem numa economia quase pré-capitalista. O que eles ganham, gastam na subsistência".
Certa vez, o poeta foi até a região e ouviu alguém perguntando por um pescador local.
Segundo Martins, disseram a tal pessoa que o pescador fisgou muito camarão, angariou dinheiro e estava bebendo há dois dias seguidos. "Quer
dizer, não há acumulação alguma. O cara pesca e queima no fogo. É um ritmo muito próximo ao da água – maré cheia, maré baixa. Fui ali algumas
vezes. Há até um poema meu que trata de tal assunto".
Pernoite no Barco
Só o fumo do cigarro
lembra que sou
pedaço de terra
solto no largo:
espinha gelada
dois remos
cachaça querosene
óleo diesel.
Silêncio.
Cardume cortado
não emenda.
No duro, isso é mesmo
uma esquala condição:
viver na espera do peixe
sem soldo pra semana.
No almoço
uma caneca de lata
fim da tarde
uma esponja sem sal.
De acordo com Martins, poemas e gravuras não são a mesma coisa e não têm o mesmo
significado. Para ele, ambos são como horizontes que se alternam e que, muitas vezes, um dos registros consegue fixar coisas de um modo mais
profundo que o outro. "Nas viagens que fiz ao cais, sempre carregava um caderno de desenhos. Não sabia se aquilo ia
virar um desenho ou um poema, porque são estratégias com diferentes tempos de exposição à experiência".
Ele frisa que se poemas e gravuras passassem a mensagem para o público do mesmo modo,
não poderiam realizar um diálogo e nem estarem juntos, convivendo em suas obras. "O diálogo é possível justamente
porque eles dizem coisas diferentes. Eu enfatizo a diferença para que depois seja feita a ligação na experiência. O movimento contrário implicaria
admitir que eles têm tudo a ver e nos faria cair naquela pasmaceira que conhecemos", finaliza.
SERVIÇO:
História
dos ossos, de Alberto Martins. Editora 34. R$ 25,00. 68 páginas. Ano:2005.
Cais, de
Alberto Martins. Editora 34. R$ 22,00. 128 páginas. Ano: 2002. |