Capítulo 1
– A história do romance: a realização de Navios Iluminados, edições e recepção crítica
1.5.
A Nova Dúvida
O tom resignado
de Navios Iluminados é exemplar do que Luís Bueno chamou de "romance da nova dúvida". São obras escritas a partir de 1937 que apontam para o
esgotamento do romance proletário. E é justamente Ranulpho Prata, com seu Navios Iluminados, quem inaugura essa vertente dos anos finais da
década de 30, cujo maior representante, ainda de acordo com o historiador, é Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicado um ano depois do
romance de identidade portuária, cujo estilo seco e sem adjetivos replica no campo narrativo o que a realidade dos movimentos populacionais é para o
protagonista, o retirante Fabiano, assim como é também para José Severino.
O romance é representativo do tempo da nova dúvida porque "não
vê para o problema da pobreza soluções fáceis – aliás, nem fáceis nem difíceis: as soluções simplesmente não se apresentam no romance de 1937"
[79].
Apesar de não ignorar diferenças, Bueno põe lado a lado Navios Iluminados e
Vidas Secas,
de Graciliano Ramos, aclamado romance de 1938, conhecido
pela secura do texto, expressão literária da inadaptabilidade do migrante Fabiano e sua família:
Os períodos curtos,
diretos, onde os substantivos predominam, remetendo ao mundo da concretude, tão típicos do autor de Vidas Secas, constituem a essência da
linguagem de Navios Iluminados[80].
Outra
semelhança que o pesquisador do período literário observa entre os dois romances é o "movimento pendular" entre breves momentos de esperança
frustrados pela irrealização de qualquer mudança:
Navios Iluminados é um romance estruturado sobre essa nova visão
desesperançada que começa a dominar no final da década. Esse movimento pendular – que, como se verá, está também na base da estrutura do mais
importante romance do final da década (e talvez de toda a década), Vidas Secas –, entranhado no desenvolvimento das ações do romance, dá uma
representação artística exemplar ao espírito daqueles anos em que uma guerra decisiva parece inevitável e os ideais que pensavam uma sociedade
pós-liberal justa têm que ser adiados
Pode-se ainda aproximar os dois romances por meio do
parentesco literário entre José Severino de Jesus e Fabiano, os
protagonistas dos romances do cais e do sertão. Os dois são retirantes: um, no sertão, de fazenda a fazenda; outro, migrante, no cais do porto. Os
dois também partilham uma inabilidade com as coisas dos homens, são desajeitados no manejo social (ver capítulo 3). São personagens característicos
da década em que a narrativa ficcional buscava a expressão do outro, do pobre, daquele que não escreve.
Tiramos também do livro de Luís Bueno como isso ocorre em Navios Iluminados:
O terceiro capítulo, um dos mais bem acabados do livro, mostra
como o pêndulo se move com dificuldade no caminho da esperança e da felicidade. A primeira dificuldade depois de tudo parecer assegurado [a vaga no
trabalho] é enfrentar o mau humor do funcionário responsável, cansado de atender a tantas solicitações.
Vencida essa fácil contrariedade, lá vêm
outras. São necessários papéis e fotos, que custam mais de cem mil-réis. É preciso conseguir dinheiro emprestado a juro alto, portanto. É preciso
fazer um exame médico e arranjar algum desembaraço para se deixar fotografar pela primeira vez.
Essas idas e vindas de Severino, narradas com vagar
quase mórbido, fazem com que o tempo passe lento na narrativa, especialmente por contrastar com o rápido avançar de dois meses nos capítulos
anteriores.
A distância que o narrador mantém
do universo do personagem, jamais traído em qualquer gesto de solidariedade ou observação que indique algum julgamento, contribui para que se
construa esse tipo de efeito, já que é como se nada separasse a aflição do protagonista do leitor
[83].
Bueno cita um trecho curto do romance
portuário que dá dimensão histórica ao que é narrado: a cena mostra o protagonista na noite de descanso do primeiro dia de trabalho após meses de
indefinição; por companhia, tem o dono do chalé para quem paga pensão; além deles, o infindável trabalho doméstico das mulheres e a "quase
escravidão" de Florinda, filha do proprietário do quarto que Severino dividia com Felício, que engomava roupas no porão.
Luís Bueno termina da seguinte forma sua
apreciação do romance de identidade portuária:
Navios Iluminados é um
dos mais significativos romances do final da década. Embora não tenha tido nada o sucesso de Os Corumbas – e em grande medida porque o
romance social entusiasmava menos nesses tempos de dúvida que ele próprio contribui para definir –, o romance de Ranulpho Prata tem todas as suas
qualidades, acrescidas da escrita madura de um autor já veterano, que conhecia bem seus meios de expressão. Embora não seja um livro de todo
desconhecido – já teve três edições, a última de 1996 – permanece menos lido do que deveria ser |