Capítulo 1
– A história do romance: a realização de Navios Iluminados, edições e recepção crítica
1.4. A produção de Prata frente à produção
literária nacional nas décadas de 20 e 30 do século XX
A década de 30 do
século passado foi marcada por um vigoroso debate intelectual e político sobre a identidade brasileira em um momento de expansão industrial e
urbana. Três obras do pensamento nacional marcam o período: Casa Grande e Senzala (1933), de Gylberto Freire, Evolução política do Brasil
(1933), de Caio Prado Júnior, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda.
As três têm em comum a intenção de explicar o país. A motivação de explicar o
Brasil se relaciona também com a participação na vida nacional. Os intelectuais chegam a tomar parte do corpo do Estado durante o governo Vargas,
num movimento simultaneamente de cooptação, por parte do governo, e de oferta de conhecimento, por parte dos pensadores. É criado o Ministério da
Educação e são formadas a Universidade de São Paulo (1934), a Universidade do Distrito Federal (1935) e a Universidade do Brasil (1937, atual UFRJ).
Na literatura, a virada da década de 20 para a década seguinte presencia um desdobramento do movimento modernista. Se em 1922 o "projeto estético",
cuja base é a Semana de Arte Moderna, está à frente do movimento, "certas condições políticas especiais", na avaliação de João Luiz Lafetá realizada
em 1973, fazem com que a virada da década o "projeto ideológico" assuma a posição.
Um exame comparativo, superficial que seja, da fase heróica [do modernismo, os anos seguintes a 1922] e da que segue à Revolução [de 1930]
mostra-nos uma diferença básica entre as duas: enquanto na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético (isto
é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda fase a ênfase é sobre o projeto ideológico (isto é, discute-se a função da
literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia com a arte).
Uma das justificativas apresentadas para explicar tal mudança de enfoque diz
que o Modernismo, por volta de 30, já teria obtido ampla vitória com seu programa estético e se encontrava, portanto, no instante de se voltar para
outro tipo de preocupação.
Veremos isso adiante. Por enquanto importa assinalar essa diferença: enquanto
nos anos vinte o projeto ideológico do Modernismo correspondia à necessidade de atualização das estruturas, propostas por frações das classes
dominantes, nos anos trinta esse projeto transborda os quadros da burguesia, principalmente em direção às concepções esquerdizantes (denúncia dos
males sociais, descrição do operário e do camponês), mas também no rumo das posições conservadoras e de direita (literatura espiritualista,
essencialista, metafísica e ainda definições políticas tradicionalistas, como a de Gilberto Freyre, ou francamente reacionárias, como o integralismo
[49].
Mais recentemente, o historiador Luis Bueno concluiu que há mais "afastamento" que continuidade entre os intelectuais dos dois momentos, ainda que
os romancistas de 30 sejam "credores" do período anterior.
As tensões, as recusas forçadas, a aceitação mais ou menos disfarçadas [dos preceitos de 22] foram elementos constitutivos de uma dinâmica que pôde
dar origem ao romance de 30, em toda sua diversidade. Se o desejo de fazer uma arte brasileira, incluindo o uso de uma linguagem mais coloquial e
uma aproximação da realidade do país, é um dado de permanência do espírito de 22 durante a década de 30, a realização estética em si mesma é muito
diferente – e o predomínio do romance ao invés da poesia já é evidência suficiente desse fato. A forma de atuação é também outra.
Os modernistas produziram manifestos e profissões de fé,
fundaram revistas e formaram grupos, mesmo depois de estarem evidentes as diferenças dentro do grande grupo inicial. Os escritores de 30 não
produziram um único manifesto estético. A principal revista do período, o Boletim de Ariel, não era o espaço de manifestação de um grupo ou
de um movimento: era, na verdade, um empreendimento comercial da Ariel Editora, em nada semelhante à Revista de Antropofagia ou à Klaxon,
ou a qualquer das revistas modernistas
[50].
É nesse momento que surge o romance proletário, cuja temática é inspirada na vida dos trabalhadores dos centros urbanos e
industriais. A literatura proletária se aproximava do realismo socialista, tinha a intenção de buscar os fatos, dando ao texto um caráter documental
e reclamando por uma reforma (às vezes pela revolução) social
[51].
Algumas obras que podem ser assim caracterizadas são O Gororoba (1931),
em que o engenheiro mecânico Juvêncio Campos relata sua experiência na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, e Parque Industrial
(publicado em janeiro de 1933), considerado o marco do gênero, no qual Patrícia Galvão narra os conflitos entre proletários e operários não
politizados no bairro do Brás, em São Paulo.
No mesmo ano, entre julho e agosto, ocorre o que Bueno
chamou de "explosão do romance proletário", com a publicação "praticamente simultânea" pela editora Schmidt de Cacau, de Jorge Amado,
Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e Os Corumbas, de Amando Fontes, que provocariam um grande debate. No mesmo bimestre, a Ariel
Editora lançaria Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira, Almas sem Abrigo, de Miguel Osório de Almeida e os contos de Três Caminhos,
de Marques Rebelo
[52].
Oswald de Andrade ainda contribuiria para a literatura
proletária com A escada vermelha (1934), A revolução melancólica (1943) e Chão (1945). E Jorge Amado com Capitães de areia
(1937). É dele inclusive a trilogia Subterrâneos da Liberdade (1954), cujo segundo volume, Agonia na noite, narra os destinos de
estivadores e militantes comunistas no porto de Santos durante uma greve em 1938 em que portuários se negavam a embarcar café em um navio de
bandeira nazista que levaria o produto para a Espanha governada pelo ditador Franco
[53].
Em resenha sobre o relançamento em 2006 de uma nova edição de Parque
Industrial, o poeta Regis Bonvicino destaca o momento de extremismo político daquele período:
A polarização política do mundo, entre comunistas e
fascistas, que ocorreu nesta década, pautou igualmente as artes, que, pouco a pouco, na maioria de suas manifestações, foi deixando de lado as
experiências internacionais e nacionais de vanguarda dos anos 1910 e 1920 para entrar num universo mais "realista", "denuncista", "engajado" e
"partidário", que Carlos Drummond de Andrade sintetizaria com felicidade no poema Nosso Tempo, de A Rosa do Povo, de 1945, ano da
queda de [Getúlio] Vargas: "Este é tempo de partido / tempo de homens partidos" [54].
Os artistas e intelectuais tratavam em suas obras das
questões sociais que estavam na ordem do dia e participavam do debate político-ideológico de cores fortes entre comunismo, liberalismo e fascismo
que mobilizava o mundo. Nos livros publicados por uma indústria editorial em expansão, aprofundava-se a temática da cultura negra, indígena e
caipira. Através da literatura proletária e do romance regionalista fazia-se a crítica dos valores da sociedade patriarcal e oligárquica
identificados com o tempo passado. Interessava agora retratar a vida do homem comum das cidades e dos sertões
[55].
Prata escreve seu romance sobre o bairro portuário na segunda metade da década em que as obras da literatura proletária chegavam aos leitores. No
momento de sua publicação, conta Paulo de Carvalho-Neto, Navios Iluminados não foi bem recebido pela crítica de esquerda ("radicalismo de
esquerda"), talvez porque no romance não há qualquer menção, e muito menos tomada de posição em relação a acontecimentos históricos como a Revolução
de 30 ou o crash de 1929 que afetou consideravelmente o comércio do café brasileiro e, conseqüentemente, as atividades de seu principal porto
exportador – duas linhas ao final do capítulo 10 (p. 97 da 4ª edição) mencionam rapidamente a queima de dez milhões de sacas de café na Alemoa (hoje
bairro industrial) sem qualquer referência à crise internacional. Não se fala também da Revolução de 30 ou de eleições na cidade durante o período
abordado no texto:
Navios Iluminados, dizia Tasso da Silveira (1938), "não flui da fonte libertária"; ao contrário, era um livro
"visivelmente de inspiração cristã". Na apreciação de Oscar Mendes (1938), o autor afasta-se "dos clichês da chamada literatura proletária", sem por
isso deixar de reclamar uma "reforma social", mas que não deixasse de ter um lugar para a "caridade"
[56].
Em 20 de fevereiro do mesmo ano, o marxista Nelson Werneck Sodré faria, porém, um elogio ao romance:
Os dotes de romancista já revelados pelo autor em outros livros, surgem, neste, mais fortes e mais nítidos. O sr. Ranulpho
Prata como que se encontra na plenitude da sua força de escritor. O fundo trágico e revoltado de sua obra é amenizado por uma larga dose de
sentimento que a anima e lhe infunde mais cor e mais beleza
[57].
Além da militância na literatura, o período marcava também a participação de intelectuais na administração pública ou em organizações. Os
intelectuais
engajam-se resolutamente nas associações, movimentos e
ligas que proliferam após 1930 [...]. O ativismo conquistou também os intelectuais, de maior ou menos envergadura, católicos, reacionários ou
revolucionários, que aderiram às Legiões, fundaram centros, desencadearam movimentos e sonharam com a tomada do poder
[58].
Era comum e esperava-se a engajamento dos escritores nas causas sociais, tensionadas entre liberalismo, fascismo e comunismo do período
entre-guerras. Pelos relatos de monsenhor Primo Vieira, também escritor, seu amigo, e Paulo de Carvalho-Neto, sobrinho e afilhado, dois intelectuais
que escreveram perfis sobre Ranulpho Prata, não sabemos de qualquer filiação política de sua parte. Ele era muito próximo, porém, de Jackson de
Figueiredo, que considerava seu melhor amigo, ao lado de Martins Fontes, e responsável por sua conversão ao
catolicismo.
Figueiredo é descrito em seu perfil no Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) como "ponto de referência na história do catolicismo
brasileiro como organizador do movimento católico leigo"
[59].
Ele funda entre 1921 e 1922, o Centro Dom
Vital e a revista A Ordem, porta-voz do pensamento católico nacional. Como Prata, Figueiredo era sergipano, nascido em Aracaju em 1891. Sua
ação refletia, conta Sergio Micelli, uma diretriz da Igreja católica de "ampliar suas esferas de influência política mediante a criação de uma rede
de organizações paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuais leigos"
[60].
Os pensadores católicos tendiam a ignorar os fatores sociais, econômicos e políticos reduzindo-os "a um problema de caráter moral"
[61].
Essa subordinação dos temas humanos à cosmovisão católica acaba interferindo também na crítica cultural e literária dos intelectuais ligados ao
catolicismo, cujo principal nome é Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), ele mesmo convertido ao catolicismo pelas mãos
de Jackson de Figueiredo em 1928, mas crítico literário desde 1919. Desta maneira ele escreveria sobre o processo de reduzir o espaço literário em
sua produção:
Mas sempre na convicção de que, longe de abandonar a crítica, esse passo avante me levaria também, não apenas a satisfazer uma fome invencível de
conhecer, mas ainda um poder de analisar, com mais fidelidade, as obras e os autores submetidos à minha própria e limitada visão crítica. Tanto
assim que não abandonei a crítica, a partir de 1928, e apenas procurei alargá-la, passando a preocupar-me com livros e problemas não estritamente
literários, nem predominantemente brasileiros.
Alargando assim o que julgava ser o domínio da minha atividade crítica, ia
também com isso abandonando a crítica militante e literária, para me ocupar, predominantemente, com outros domínios do pensamento e da ação. Pois já
então as exigências da própria Verdade, que tranqüilizara a minha sede de plenitude, me levaram a sair daquela splendid isolation do início e
a vir para o domínio ingrato da vida ativa e do 'apostolado cristão' [62].
Da participação de Prata em organizações católicas geridas por intelectuais leigos só temos a notícia da tratativa de Figueiredo
em fazer do amigo sócio-fundador de uma livraria católica
[63].
Apesar de não haver registro de sua militância católica, a doutrina ficaria marcada em seu trabalho de escritor, tendo a resignação católica como um
dos principais componentes de sua obra, cujo maior exemplo é a tragédia do protagonista de Navios Iluminados, José Severino de Jesus.
Nesta cena do último capítulo, por exemplo, em que Severino, já castigado pela
tuberculose, recebe a visita do irmão Gonçalo, que procurava trabalho em Santos. Ele dá notícia do destino dos demais irmãos: Manoel havia ido para
o sertão de Pernambuco, Bispo sentara praça em Salvador e Zeferino tinha virado agregado do Major Guedes. A resposta de Severino coroa o tom de
resignação do romance:
– Pelo meu gosto, você voltava, meu irmão. Não se lembra de que a mãe dizia que a sorte de pobre é torcida? Agora estou crente que é mesmo. Não
está me vendo? Não há canto no mundo onde pobre não sofra. É sina que Deus lhe deu. E toda sina tem que ser cumprida. Quem tem forças pra fugir?
Aqui ou lá, é a mesma coisa. Não tem apelo. Sendo assim, o melhor é ficar no lugar onde nasceu.
O cigarro e a conversa provocaram-lhe tosse.
– Aceite o meu conselho de mais velho, de quem já passou o seu pedaço, está
cheio de desenganos e mais para a morte que pra vida. Volte para trás e fique penando lá mesmo. (NI, 178)
"É sina que Deus lhe deu": a frase confirma a resignação religiosa que aparece no texto, mais propriamente cristã e católica. Sangue do sangue,
carne da carne – para ficarmos em imagens cristãs – Gonçalo substitui Severino entre os "magotes de homens" que esperam por uma vaga à frente da
Companhia Docas de Santos, o que reproduz eternamente o sofrimento (o sobrenome Jesus não aparece ao acaso).
Na década de 60, o poeta chileno Pablo Neruda voltaria ao tema do estivador
substituído facilmente no trabalho no poema Santos Revisitado, cujo trecho final da primeira parte é repetido abaixo:
... Terra maldita, espero
que arrebentes um dia, de alimentos, de sacos mastigados,
e de eterno suor de homens que já morreram
e foram substituídos para continuar suando
[64].
Outra passagem do livro fortemente marcada por impressões católicas é a da estada de José Severino de Jesus no pavilhão de tuberculosos da Santa
Casa, no qual, de seu leito, vê na sala ao lado um altar com a imagem da santa Imaculada Conceição:
Fitando a santa, que tinha as mãos erguidas, num suavíssimo gesto de benção, as feições tristes, baixando sobre seu coração uma tranqüilidade
doce, tão doce que lhe fechou os olhos por alguns instantes. Neste minuto extraordinário depôs sua alma aos pés da santa, agarrando-se com ela, num
desespero de afogado. Mentalmente, sem mesmo chegar a balbuciar, pediu, rogou, fez promessas iguais às de Nosso Senhor do Bonfim. Já que viera ter
ali, ficar debaixo da proteção daquela imagem, devia também pegar-se com ela o que podia valer com mais presteza, pois estava vendo de perto a sua
angústia. (NI, 165-6)
Em Ranulpho Prata, quase esquecido, o professor monsenhor Primo Vieira descreve neste texto de 1962, quando era professor
da Filosofia da Universidade Católica de Santos, a crescente religiosidade do autor, de quem era amigo, em seus últimos anos de vida. Prata
planejava após a publicação de Navios Iluminados escrever um romance sobre sua conversão à prática católica, cujo nome seria Luz na
Montanha
[65].
Prata era amigo também de Jackson de Figueiredo, pensador católico que, ao
lado de Alceu Amorosa Lima, formava uma corrente também bastante significativa do pensamento nacional naquele momento. Quando Figueiredo morre, em
1929, oito anos antes da publicação de Navios Iluminados, Prata escreve um texto no qual revela que, "espiritualmente, tudo lhe devia". Nesse
texto, percebe-se já a faceta religiosa do autor:
Deixaste a tua marca nos corações dos teus amigos e o legado de teu exemplo. Exemplo de fé, exemplo de dignidade, exemplo de bondade.
Se não cresse, o teu desaparecimento crudelíssimo faria a blasfêmia roçar
nos meus lábios. Mas creio. E resigno-me.
Bem disseste naquelas últimas palavras que escreveste para nós, no livrinho consolador de Moysés Marcondes: "para a alma cristã
não há sofrimento ou angústia que não se possa transformar em razão superior de vida – ainda mais cristã e mais santa"
[66].
Primo Vieira, que teve acesso à "amiudada" correspondência trocada entre os dois, conta que, por mais de uma vez, Figueiredo havia convidado Prata a
ser sócio em uma livraria católica. Ele destaca também o papel "apostólico" de Figueiredo na formação de Prata. É do pensador católico uma das
primeiras apreciações sobre a obra de Prata. Em 3 de setembro de 1918, Figueiredo publica no jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, uma crítica
a O Triunfo chamada Carta a um jovem romancista, na qual já aparecem os temas do calvário e da busca por iluminação divina. Entre os
conselhos:
Viva, isto é, sofra, aprofunde o seu próprio incontentamento e há de ver que o que mais lhe dói e mais o magôa, é não ser a
vida o que pudera ser, se Jesus fosse um exemplo e não um puro símbolo, como é para quasi [sic] todos nós que só vemos o sacrifício no cume da
montanha
[67].
Essa imagem, continua Primo Vieira, ficaria marcada na consciência de Prata, que chegou a pensar na realização de um romance, Luz na Montanha,
a partir de sua vivência católica, obra que permaneceu apenas esboçada com o desaparecimento do autor em 24 de dezembro de 1942, a qual o professor
de filosofia encontrou em um velho caderno de Prata o enredo central do que viria a ser o romance:
O personagem principal da ficção é Pedro Alencastre. O físico é franzino e miserável, mirrado; parece uma criança doente. Além de tudo é
epilético. Sofre de ataques constantes. É um artista, grande intelectual, escritor e dramaturgo. É ateu. O seu pai, Julio, enriqueceu, a custa de
negócios escusos, falências fraudulentas, etc. E vive sequioso de dinheiro. É só o que pensa: só que deseja, é só o que cuida. É homem fisicamente
grosseiro, de grande estatura, maxilares possantes e riso grosso.
A sua mãe Ana (nome da mãe de Ranulfo) [o comentário é de Primo Vieira]
é o inverso. É franzina e delicada como uma criança. Religiosa e mesquinha. Julio e Ana vivem mal, em quartos separados, sempre questionando. Pedro
tem um irmão, José, que é de corpo um rapagão, estroina e mulherengo. De espírito, não lê um jornal. Até os vinte e quatro anos viveu com a família,
onde só tinha motivos de sofrimentos, porque o pai não o ligava; a mãe era carinhosa, mas de alma mesquinha, sem caridade e sem generosidade.
Maltratava os criados, fazendo questão de todo o tostão,
dando pouca comida, etc. E o irmão o maltratava com a sua saúde e pouco caso. Pedro tem um amigo médico: Roberto. Pouco depois Pedro tem um
acidente, e um ataque, e cai sobre um fogareiro de álcool
A descrição que Prata traça de seu protagonista da obra inacabada (franzino,
mirrado) é muito próxima da que Silveira Bueno traça do próprio autor, ao lembrar do dia em que se conheceram, à época da publicação de O lírio
na torrente: "era bem menor do que eu e, sobretudo, franzino".
Além do porte semelhante, Prata também passou pela experiência da doença.
Teve, descreve Primo Vieira, um abscesso pulmonar, tratado entre 1924 e 1925. Ao invés do médico recém formado que passa a clinicar no interior de
Dentro da Vida, em A Luz na Montanha o motivo católico seria o sofrimento do protagonista como oportunidade para a iluminação cristã.
O tema da doença está também na conferência Servidão e grandeza da doença, pronunciada na Associação dos Médicos de Santos em 18 de outubro de 1940,
dois anos antes de morrer, Prata disse que o "tumulto" dos órgãos humanos um dia "murcha como um balão furado" e que a vida interior é que
interessa:
A verdadeira vida é a espiritual, buscando-a e aprofundando-a, não fazendo mais do que aperfeiçoar o que há de melhor em nós,
do que desenvolver o lado essencial do que constitue a nossa individualidade. A espiritualização é o primado da vida humana, seja ela qual for,
cristã ou não
[69].
Primo Vieira também comentou a conferência em seu perfil sobre o autor de Navios Iluminados, em que destaca outra passagem sobre sofrimento e
doença, na qual observa o "acentuado misticismo em Ranulfo [sic], que crescia, mais e mais, à medida que se aproximava do fim":
Quando os discípulos perguntavam a Jesus na presença do cego na nascença: 'Quem pecou, este ou os seus pais para que ficasse
cego?' o Mestre respondeu: 'Nem ele pecou, nem seus pais'. A doença não é necessariamente o sinal de ira de Deus ou seu castigo. Nesse episódio,
Jesus recusa a lançar a culpa no cego, nos pais ou em Deus. Diz apenas que a doença é uma oportunidade para fazer as obras de Deus
[70].
Apesar da crescente prática do catolicismo em sua vida, não há indícios da participação de Prata como militante do pensamento católico daquele
momento. A única intervenção de Prata no debate político do momento anotada na pesquisa ocorre em 1932, quando, lembra monsenhor Primo Vieira,
defendeu Martins Fontes, seu amigo, médico, também escritor, e anarquista, quando este foi afastado do cargo de diretor do Hospital Guilherme Álvaro
após o "movimento" de 1932. Vieira destaca que Prata foi a "única voz corajosa que se levantou pela imprensa em dois magníficos artigos da Gazeta:
'Martins Fontes, médico' em protesto justiceiro de indignação".
Prata ainda faria parte, como 1º secretário, da Sociedade Amigos do Dr. Martins Fontes de Santos, fundada em novembro de 1939 em
solenidade na Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos, dois anos após a morte de Fontes, em junho de 1937. As atividades do grupo
eram acompanhadas por agentes do DEOPS, que registraram um prontuário sobre a assembléia de inauguração
[71].
Martins Fontes era filho do também médico
Silvério Fontes, um dos fundadores em 1889 em Santos do Círculo Socialista Brasileiro, que defendia a criação de um Partido Socialista no país
[72].
O próprio romance Navios Iluminados é dedicado a Martins Fontes. Inclusive o doutor Luciano, médico que atende Severino no pavilhão de
tuberculosos da Santa Casa (hospital onde Prata trabalhou como médico) pode ser identificado como Fontes, devido à sua personalidade
[73].
A própria introdução de Prata ao documentário Lampião pode ser considerada outra manifestação política do autor. Ali, em 1934, o autor
responsabiliza a omissão do governo federal em permitir a ocorrência do cangaço:
Mas, em lugar da ação severa e imediata [do Estado Novo, "regime de ditadura, ante o qual desapareceriam as susceptibilidades
das autonomias estaduais"], que esperávamos ardentemente, como a realização de um sonho caro, tivemos apenas duas companhias do Exército, do 28 e 19
B.C., localizadas em Anápolis e Geremoabo e fragmentadas em destacamentos fixos pelas vilas vizinhas. Fixos, frisemos, sem ordem para um passo além
da orla das casas. [...] E tudo, todas as providências que aguardávamos com ansiedade de alma da República Nova, se reduziram àquela vilegiatura
forçada de duas companhias do Exército em clima sertanejo
[74].
Mas, apesar do forte conteúdo social de Navios Iluminados, antecipado pela denúncia de Lampião, não se pode caracterizá-lo como um
representante típico da literatura proletária. Não há no romance referências ideológicas defendidas pelo narrador ou pelos personagens, apesar da
revolta de Felício com as condições de trabalho.
A exceção é Valentim, funcionário especializado das oficinas da Companhia
Docas e líder sindical. O narrador não faz qualquer menção à ideologia do personagem, que aparece em três passagens do livro. Depois de ter sido
preso após uma confusão no sindicato dos estivadores, ele é expulso de casa pelo pai, empregado há mais de 20 anos da companhia, e parte para São
Paulo, a fim de continuar com a vida sindical, e deixa a narrativa.
Não há em Navios Iluminados qualquer semelhança com
Parque Industrial, de Patrícia Galvão, ou Agonia na noite, de Jorge Amado, narrativas recheadas de propaganda comunista,
principalmente quando mostra a tomada de consciência de uma das personagens
[75],
ou com as demais obras que caracterizam o momento.
Ao contrário do otimismo revolucionário dos primeiros anos
da literatura proletária, a tragédia do protagonista José Severino de Jesus revela sim um tom resignado que permeia toda a obra. Sem o horizonte
revolucionário da literatura proletária, o romance de Prata transita entre a denúncia social e o catolicismo resignado
[76].
O realismo de Prata, determinado pelo contato do autor com o material narrado e pela resignação, não é apenas o da denúncia das
condições sociais, mas principalmente o da descrição das conseqüências das más condições sociais e de trabalho sobre o corpo dos personagens
[77].
É um realismo do corpo presente ("gostaria sinceramente de poder viver uma
vida exclusivamente física"), cujo calvário do protagonista José Severino de Jesus (ressalta-se novamente o sobrenome) é o principal componente. O
próprio termo é aplicado pelo autor logo no primeiro capítulo para mostrar o sofrimento de Severino na esperança de conseguir um emprego enquanto
passa pelo "martírio do dia ocioso", em "horas gastas a bater perna pelas ruas, de cara para cima, como gente ruim" (p. 13).
Com a vaga de Severino já conquistada na Companhia Docas de Santos (CDS),
Prata descreve de forma bastante física a expectativa do personagem em começar o trabalho ("Queria partir logo para o trabalho, com ânsia e
sofreguidão. Os seus braços desejavam o que fazer, o corpo todo pedia labuta, ação, movimento", p. 44) e o impacto do primeiro dia nas oficinas da
CDS ("Quando se deitou nessa noite, Severino estava de corpo moído. Todos os músculos lhe doíam, como se estivesse sido pisado a patas de cavalo.
Mas sentia-se feliz", p. 49).
De um rebite de aço incandescente que pula em seu braço logo nos primeiros dias na oficina ("quinze dias com a chaga", p. 51) até a incapacidade de
carregar cargas na estiva devido ao avenço da tuberculose, uma das histórias que conta o romance é a do corpo de Severino como vítima das más
condições de trabalho e moradia no porto de Santos.
Pode-se enumerar ainda o carvão que rói o corpo no serviço de draga (sua
segunda ocupação na CDS, p.66); a peça que os demais estivadores da turma 65 lhe pregam em seu primeiro dia de trabalho na estiva (p. 75); e as
cargas que entesam os músculos do tórax (p. 75). Mesmo em um dos poucos momentos de felicidade de Severino, quando ele acaba de se casar com
Florinda, percebe-se a natureza agressiva de seu trabalho:
Não sentia a ruindade das cargas: o sal e o enxofre que lhe queimavam o rosto e as canelas; o frio das carnes congeladas; caixas de banha de
setenta e cinco quilos que lhe dobravam o lombo; tambores de soda vazando cáustico nas mãos; os rolos golpeantes de arame farpado (NI, 129).
Não há como verificar a influência da leitura da Bíblia em Navios Iluminados, mas essas passagens concordam com o
que Eric Auerbach escreveu sobre os relatos bíblicos, que "têm um efeito bastante vital também no campo sensorial... [que] se deve ao fato de que
os sucessos éticos, religiosos, interiores, que são os únicos que lhe interessam, se concretizam no material sensível da vida"
[78]. |