Imagem: reprodução parcial da matéria original
O 50º aniversário d'A Tribuna
Um pouco de história da terra andradina mal contada por velho jornalista sem
memória
(Crônica de Euclides Andrade)
[...]
Penas que abrilhantaram as colunas da Tribuna
Penas de acentuado prestígio nas letras e no jornalismo do Brasil abrilhantaram, umas, e
outras ainda abrilhantam, as colunas deste grande matutino.
Escritores como Medeiros e Albuquerque, Viriato Corrêa, Carlos Maul, Benjamim Costalat,
nomes de relevo em todo o país; Veiga Miranda, Joaquim Morse, Delfino Stockler de Lima, Rubens do Amaral, Jaime de Barros, Jaime Franco, Luiz Silva,
João Carvalhal Filho, José Crespo, Mayer Garção e Domingos Alberto Bramão, lusitanos; Mme. Crisanteme, Alvaro Augusto Lopes, Nostradamus, Rodolfo
Eduardo da Fonseca, o poeta Paulo Gonçalves - formam uma rutilante lista de nomes acatados e de muito e
merecido conceito.
A essa plêiade ilustre, acrescento agora dois nomes de astros da intelectualidade
brasileira: Martim Francisco Sobrinho e Alberto de Sousa.
O velho Andrada colaborou, durante longos anos, na Tribuna.
As suas crônicas despertavam sempre extraordinário interesse pela vivacidade com que Martim Francisco se expressava.
Muitas vezes fui levar-lhe à casa, sita à Praça dos Andradas,
provas das suas lindas crônicas - pretexto por mim arranjado para gozar a palestra do grande escritor e causídico santense.
Martim tinha uma caligrafia pouquinho melhor do que a minha. Era horrível, quase
ilegível, indecifrável, verdadeiro quebra-cabeças para os linotipistas.
A minha letra também não é boa. E... muitas vezes, eu lia, nas provas de Rabugices,
que me traziam para emenda: "Inferno! Raios o partam! Vá escrever com letra ruim nos quintos dos infernos!"
Linotipistas amigos mandavam-me essas "cordiais" mensagens, em letra de forma, no
final de cada prova.
Com Martim eles não se atreviam a ter essas liberdades.
E como ele escrevia! Eram garranchos, que nenhum Champolion seria capaz de decifrar.
Martim, quando recebia as provas das suas crônicas, tinha imenso cuidado em verificar
que o seu pensamento estava, nelas, fielmente reproduzido. Resultado: tantas eram as emendas, que o trabalho do mestre era outro, completamente
diferente do primitivo, quando voltava para a oficina, a fim de serem feitas as modificações exigidas.
Martim gostava de conversar, de contar casos.
Certa noite, contou-me que, no Rio, quando deputado federal, deixara o ministro Lauro
Muller, sozinho e às escuras, na sua sala de visitas.
O saudoso ministro das Relações Exteriores fora visitá-lo uma tarde e se deixara
ficar, na sala de Martim, a palestrar.
Quando os relógios anunciaram nove horas da noite, Martim pediu licença a Muller e
apagou a luz do aposento. Continuariam a conversar no escuro. Lauro concordou. E Martim continuou a ouvir o ministro a discorrer sobre a situação
política.
Quando soaram as dez badaladas da noite, Martim levantou-se sub-repticiamente, de
"fininho", saiu da sala de visitas e foi meter-se na cama, deixando Lauro Muller a falar sozinho.
Somente à meia noite o ministro se apercebeu de que fora abandonado pelo velho
parlamentar. Conhecia bem a Martim. Sorriu. Levantou-se. E deixou a casa, pé ante pé.
João Galeão Carvalhal, o venerando baiano, que Santos tanto amou, estava presente à
minha conversa com Martim Francisco, nessa noite. Espantado, objetou:
- E você fez isso ao Lauro Muller, seu Martim; a um amigo, ao ministro das Relações
Exteriores?! Xente! Que fiasco!
- Que fiasco, que nada, Galeão! O Lauro era meu amigo e era ministro. Como meu amigo,
deveria, tinha obrigação, de conhecer os meus hábitos; a regularidade com que se fazem as coisas no meu lar. Não devia, pois, espantar-se quando eu
apaguei a luz na sala - medida econômica por mim praticada, religiosamente, sempre que os relógios marcavam nove horas da noite. Como ministro das
Relações Exteriores, o Lauro não deveria ignorar que era uma visita por demais prolongada; uma visita que vai além das dez horas da noite - é
contrária ao Protocolo...
Martim era assim. Esfuziante na palestra, desnorteando o interlocutor, com piadas
inesperadas.
Já citei, certa vez, aquela defesa que ele fez de Moisés, o
preto cozinheiro e proprietário de um restaurante santense, chamado - creio - que Gruta Bahiana. Moisés, atormentado pelos "cadáveres"
(N.E.: gíria para títulos de dívida não quitados), resolveu salvar-se, deitando fogo ao seu
popular restaurante, depois de o haver posto no seguro.
Moisés foi, porém, infeliz. O incêndio foi mal preparado. Os bombeiros abafaram as
chamas, mal elas começaram a propagar-se. Descoberta a tramóia, o cozinheiro foi metido na cadeia. Processo, provas indiscutíveis da sua ação
criminosa e, por fim, comparecimento do réu perante o tribunal da justiça popular. Moisés tudo confessara no inquérito policial e repetira a
confissão, perante os seus julgadores.
Martim Francisco Sobrinho, advogado do réu, ouviu tudo, calado, sem o menor espanto.
E, depois de uma terrível acusação feita contra Moisés pelo dr. Norberto Cerqueira,
promotor público, o magistrado que presidia a sessão deu a palavra ao dr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada Sobrinho, patrono do acusado presente.
O velho Andrada levantou-se. Encarou fixamente os jurados e disse;
- Os senhores estão vendo aquele preto que está ali, sentado no banco dos réus, de
sobrecasaca e calças brancas? Aquele preto, senhores jurados, é Moisés; Moisés é o primeiro cozinheiro de Santos; mas, cozinheiro que não sabe fazer
fogo!... Disse e sentou-se.
E Moisés foi posto na rua por unanimidade de votos.
Ainda me lembro da resposta, dada por Martim Francisco, a uma verrima que contra ele
publicara em jornal paulistano um seu adversário.
Martim, pela seção livre do jornal, reproduziu todas as acusações que lhe foram feitas
pelo verrinista desconhecido. E depois de transcrevê-las, escreveu, simplesmente, o seguinte:
- "Minha resposta: É mentira tudo isso! (a) Martim Francisco".
Alberto de Sousa foi o maior polemista, a pena mais temível que tenho conhecido nos
meus longos e penosos 47 anos de atividade jornalística.
Alberto era formidável quando se dispunha a depenar uma gralha, emplumada de pavão. As
suas frases eram como lâminas de acerada navalha, cortando na pele do adversário. Tinha argumentos que massacravam: ironias que punham arrepios na
espinha do leitor.
Inteligentíssimo; com uma vastíssima cultura literária; manejava a pena como uma
clava, derrubando pedestais, demolindo reputações feitas à custa de dinheiro.
Quase todas as campanhas políticas levadas a efeito durante os onze anos em que vivi
nesta cidade tiveram como animador insuperável a esse grande mestre da palavra escrita, polemista ímpar na imprensa do país.
O Partido Municipal teve-o como seu bravo paladino quando mais acesas iam as lutas
eleitorais.
E Santos jamais teve um filho que tanto e tão carinhosamente a amasse como a quis
Alberto, que em vida tanto a exaltou.
Monteiro Lobato iniciou na Tribuna a sua carreira de "conteur".
O seu primeiro conto regional publicado na imprensa era denominado Boca Torta. O autor de Jeca Tatu estava em Santos, em visita a seu
cunhado, o saudoso causídico e homem de letras dr. Heitor de Morais, que sempre foi grande amigo desta folha.
Heitor, uma noite, veio procurar-me, em companhia de Lobato. Pretendia ele a
publicação de um trabalho literário daquele seu parente nas colunas deste jornal. Atendi imediatamente ao amigo e Boca Torta foi lido no dia
seguinte. Estava lançado o escritor que mereceu de Ruy a honra de uma citação em discurso político, pronunciado na Câmara alta do país.
Lobato nunca mais se esqueceu de que fui eu o seu "descobridor", assim como de que sou
eu sua "mascote"... Ele recebeu, então, a título de "pro-labore", pela publicação do seu conto, nada menos de cinco mil réis. E isso era
dinheiro naquela época...
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