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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1839 - pela ex-escrava Maria Theresa de Jesus

"Imagine que se apanhavam caranguejos na Rua São Francisco!"

Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):


Reprodução parcial da matéria original

110 anos de vida - Um escrínio de recordações...

Maria Theresa de Jesus, internada no Asilo dos Inválidos, fala a A Tribuna, evocando coisas da cidade antiga, numa linguagem pitoresca e viva

À procura de curiosidades ligadas ao passado da cidade, estivemos ontem no Asilo de Inválidos, onde sabíamos viver uma asilada contando a avançada idade de 110 anos.

Por deferência especial da administração daquele modelar recolhimento, nos foi facilitado tudo.

Fomos encontrar a anciã centenária passeando no amplo jardim do asilo. Caminhava com desenvoltura e até com alguma elegância. Seus cabelos alvos e as acentuadas rugas é que denotam os longos anos vividos.

Aproximamo-nos e, após ligeiro cumprimento, convidamo-la a sentar-se num dos bancos do jardim. Sem demonstrar a menor surpresa, num desembaraço admirável, parecendo estar familiarizada com jornalistas, Maria Theresa de Jesus - esse é o nome da nossa entrevistada - respondeu às nossas saudações e aquiesceu em sentar-se ao nosso lado.

Tem saudades de Santos antigo - Indagamos o que nos podia dizer de Santos há cem anos passados e a velhinha, que possui uma vivacidade notável e fala com muita clareza, usando ditos chistosos com que finda sempre suas narrações, respondeu-nos com singular eloqüência:

- Tenho uma saudade imensa da cidade antiga. Nasci em São Sebastião, já não me recordo o dia e o mês, mesmo porque nasci escrava. Meus amos, quando eu ainda era menina, talvez tivesse no máximo oito anos de idade, vieram para Santos e eu com eles.

- Lembro-me que eram muito bons para mim. Meu amo chamava-se Manoel Francisco de Moraes e minha ama Antonia. Tinham duas filhas, Rosa e Felizarda. Pouco tempo depois eles morreram e eu, já mocinha, fui para o Jabaquara, refúgio de todos os da minha cor. Lá me casei e lá vivi a maior parte da minha vida.

A indumentária e os costumes - E Maria Theresa, comprovando memória prodigiosa, prossegue:

- Que bons tempos, aqueles! Como tudo hoje é diferente. Se o "sinhô" visse, mocinho - diz, dirigindo-se ao nosso redator - como eram lindas as vestimentas dos brancos daquele tempo! Cada vestido comprido, cheio de bordados; não se via nem o pé da sinhazinha. Os homens, então, eram mais engraçados: usavam chapelão, barba longa... "home, prá incurtá a cunversa", eram mais fortes e bonitos que os de hoje.

Depois, contemplando o céu, num misto de alegria e saudade, passa a falar do seu Jabaquara lendário, cuja página gloriosa se destaca na história da abolição da escravatura no Brasil:

- Eu, como já disse a sinhozinho, me casei no Jabaquara com o Manoel Leocádio, crioulo desempenado, capoeira destemido e com um batuque, que só vendo!

- Trabalhei muito para meu "home". Mais a vida era boa. Nos "sábado", todas as noites, tinha batucada. O samba ia "inté" o sol raiar. E como eu era doida por um batuque!

- Ah! Ia me esquecendo! Veio a abolição. Ficamos livres. Ninguém queria "acreditá" lá no Jabaquara. Mas depois que vimos que era verdade mesmo (Virgem Nossa Senhora!), tudo enlouqueceu. Foi uma festança que ninguém pode imaginar. Ninquém queria mais trabalhar. Era batuque dia e noite...

- Finalmente tudo serenou. E a vida passou a correr como sempre, até que um dia Manoel Leocádio entrou no nosso rancho que ficava no sopé do morro e me disse que nosso Imperador tinha sido embarcado num vapor para fora do Brasil; quem mandava agora era a República. Como eu não soubesse o que era República, ele me explicou, dizendo que, daí em diante, todos nós éramos iguais, tanto branco como preto. Que preto podia até "sê" o dono do governo!

- Acabando de escutar aquilo, eu disse cá comigo: - "esse crioulo está ficando louco". Mas, não estava, não. Era tudo verdade. Nem preciso dizer que houve fandango no Jabaquara.

Caranguejos na Rua São Francisco - Continuando na sua rústica mas interessante narração, diz Maria Theresa:

- Depois da República eu ia mais vezes à cidade. Santos, naquele tempo, era tão pequenino... Tinha poucas casas e muito mato. Imagine que se apanhavam caranguejos na Rua São Francisco!

- Muito prédio desses grandes, bem altos e compridos, chamados - faz uma pausa e dirige-se a nós - como é que se chama mesmo, moço?

- "Arranha-céus", dissemos nós.

- Isso mesmo. Pois é, no lugar onde estão esses tais de "arranha-céus" (que nome, crédo!, diz ela, benzendo-se) era tudo mangue, uma imundície dos diabos.

- Eu me lembro de ter ido, um dia, com Leocádio, assistir à inauguração de um barracão enorme que o governo mandou fazer no cais, para receber as mercadorias vindas do estrangeiro. Foi uma festa bonita, mas nós só vimos de longe.

Revolta de Floriano e Guerra de Canudos - Com visível tristeza se refere a esses dois acontecimentos da nossa história: Revolta de Floriano e Guerra de Canudos.

- Quando rebentou a revolta de Floriano, o coronel Quintino Lacerda, o "interventô" do Jabaquara naquele tempo, formou um batalhão, que seguiu para a ponte do Casqueiro, aguardar o inimigo. Manoel Leocádio, que foi um dos primeiros a se "alistá", partiu também, e eu com ele. Fui servir de cozinheira. Passamos lá algum tempo. Tudo acabado, nós voltamos para Jabaquara.

- Veio a guerra de Canudos. Leocádio se alistou e partiu, porém não voltou mais. Morreu, brigando contra o malvado do tal Antonio Conselheiro.

Maria Theresa faz uma pausa longa, como se prestasse, num momento de silêncio, uma homenagem póstuma ao seu companheiro de longos anos. Depois, prosseguiu:

- Era um homem valente e bom, o meu Manoel Leocádio. Com sua morte, minha vida se transformou.

O vulcão do Macuco - Maria Theresa cita como um dos maiores acontecimentos da vida de Santos o aparecimento de um vulcão, no Macuco.

- Eu fui uma das primeiras a correr para as bandas do Macuco, para ver o tal vulcão. Toda a cidade estava alarmada. Muitas famílias tentaram fugir, pois se dizia que Santos ia desaparecer, que o vulcão cuspia fogo, que não parava mais.

- Entretanto - acrescenta - tudo se acalmou. Foi só barulho. Hoje, no local onde surgiu o vulcão, foi construído um asilo, onde eu já tive uma bisneta internada. É o Asilo de Órfãos.

O centenário da cidade - Falamos-lhe sobre o centenário da cidade e ela se surpreendeu, dizendo-nos:

- Então, eu sou mais velha que a cidade de Santos? Não pode "sê", moço; me desculpe, sinhozinho está enganado!

Depois de ligeira explicação nossa, acabou concordando e terminou lamentando ser tão idosa, pois desejava ainda, no dia da festa magna da cidade, entrar num batuque à moda do antigo e saudoso Jabaquara.

Satisfeitos, retiramo-nos, deixando a boa velhinha, de mui boa palestra, entregue às suas gratas recordações.