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O decano dos carroceiros de Santos
A Tribuna conversa com o velho Benedicto da Graça - Aos noventa e sete anos, ainda tem
coragem para trabalhar
Nos climas hostis como o nosso, a média da vida não excede a
45 anos. Um homem que consegue chegar aos 80, já é considerado um raro exemplo de longevidade e apontado por todos como um macróbio.
Percorram-se com olhos curiosos as estatísticas demógrafo-sanitárias e verificar-se-á que em 500
pessoas que morrem nesta parte do continente sul-americano, uma, apenas, chegara aos 100 anos.
Imagine-se, pois, a admiração que provocará um indivíduo que, aos noventa e sete anos de vida
mofina e cheia de tropeços, ainda se sente com ânimo e forças para montar em uma carroça desconjuntada, quase tão velha como ele, tirada por
escaveiradas pilecas, e anda desde as 6 da manhã às 6 da tarde, na faina ingrata de cavar alguns mil réis com os quais possa sustentar a sua
velhice honrada.
É esse o caso do Benedicto da Graça, o decano dos carroceiros de Santos, a quem a neve da velhice
já cobriu toda a carapinha.
Encontramo-lo ontem, quando passava pela Tribuna, em direção ao cais, para onde ia
conduzindo a bagagem de um viajante.
Atendendo ao nosso apelo, o bom velhinho, cujas pernas ainda não se acham de todo entorpecidas,
abandonou a boléia da sua velha carroça e veio conversar conosco.
- Então, como vai a vida, Benedicto?
- Eh! seu moço, tá difíci, respondeu-nos o honrado velhinho, abrindo a boca desguarnecida
de dentes, num sorriso ingênuo e bom.
- Mas você ganha muito.
- Dá p'ra viver e p'ra o capim e o milho dos alimá.
- Quantos animais tem você?
- Três. Dois eu comprei e um deram-me de presente.
E em seguida a uma pergunta nossa, narrou-nos a sua longa vida de trabalho.
Nasceu na vila de Santa Bárbara, próximo a Campinas, neste Estado, sendo seu pai o africano
Gabriel da Graça, que fora escravo do capitão Manoel da Graça, tio do dr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada, ilustre advogado neste fôro e atual
deputado federal por S. Paulo.
Por ocasião da guerra do Paraguai, em 1865, foi ele um dos muitos voluntários de pau e corda,
apanhados a laço no interior do Estado.
Seguiu com uma leva de recrutas para o Rio, a fim de ali receber uma ligeira instrução militar e
embarcar em seguida para o teatro da guerra.
Mas o velho africano seu pai tinha-lhe um grande amor e rojou-se aos pés do seu senhor,
pedindo-lhe que obtivesse a liberdade de Benedicto.
O capitão Manoel da Graça, homem bondoso, comoveu-se com o desesperado do pai aflito e foi ao Rio
de Janeiro, onde obteve a baixa do recruta.
Benedicto voltou para Santa Bárbara e só dali saiu por morte do senhor, a fim de fixar residência
em Campinas.
Da Princesa d'Oeste veio para Santos e aqui se deixou ficar trabalhando sempre.
Há tempos adoeceu e foi para a Santa Casa.
Ao sair do hospital o sr. Camillo Ratto e outros cavalheiros fizeram uma coleta entre os seus
amigos e o seu produto ofereceram ao Benedicto.
Este adquiriu então uma velha carroça e dois cavalicoques cheios de lazeira e velhice, com
os quais vai cavando a vida desde aquela época.
Os demais colegas estima-no e protegem, de maneira que o quase centenário Benedicto da Graça ganha
ainda hoje, aos 97 anos de idade, 10 a 15$000 por dia.
Há pouco tempo, um indivíduo de maus instintos insultou-o. Benedicto, cujo sangue, apesar da
idade, ainda é muito quente, armou-se com o "pau de descanso" da carroça e quebrou-o nas costas do atrevidaço.
Benedicto da Graça espera chegar aos 120 anos, pois, diz ele, ainda está muito forte e disposto a
lutar pela vida, para sustentar a mulher, Valentina da Graça, e sete filhos.
Deus o conserve por muitos anos, ao bom e honrado velhinho.
Em cima, no medalhão, Benedicto da Graça, decano dos carroceiros de Santos -
Embaixo, a carroça e animais que lhe
foram oferecidos por subscrição
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