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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (21)

Esta entrevista foi publicada pelo jornal santista A Tribuna, em sua primeira página, num domingo, 23 de março de 1913, época em que a profissão de carroceiro entrava em declínio, principalmente com o início do transporte motorizado de mercadorias - especialmente o café - entre a ferrovia e o porto, e a campanha de erradicação de cocheiras do centro da cidade, por razões sanitárias (ortografia atualizada nesta transcrição):


Foto publicada com a matéria

O decano dos carroceiros de Santos

A Tribuna conversa com o velho Benedicto da Graça - Aos noventa e sete anos, ainda tem coragem para trabalhar

Nos climas hostis como o nosso, a média da vida não excede a 45 anos. Um homem que consegue chegar aos 80, já é considerado um raro exemplo de longevidade e apontado por todos como um macróbio.

Percorram-se com olhos curiosos as estatísticas demógrafo-sanitárias e verificar-se-á que em 500 pessoas que morrem nesta parte do continente sul-americano, uma, apenas, chegara aos 100 anos.

Imagine-se, pois, a admiração que provocará um indivíduo que, aos noventa e sete anos de vida mofina e cheia de tropeços, ainda se sente com ânimo e forças para montar em uma carroça desconjuntada, quase tão velha como ele, tirada por escaveiradas pilecas, e anda desde as 6 da manhã às 6 da tarde, na faina ingrata de cavar alguns mil réis com os quais possa sustentar a sua velhice honrada.

É esse o caso do Benedicto da Graça, o decano dos carroceiros de Santos, a quem a neve da velhice já cobriu toda a carapinha.

Encontramo-lo ontem, quando passava pela Tribuna, em direção ao cais, para onde ia conduzindo a bagagem de um viajante.

Atendendo ao nosso apelo, o bom velhinho, cujas pernas ainda não se acham de todo entorpecidas, abandonou a boléia da sua velha carroça e veio conversar conosco.

- Então, como vai a vida, Benedicto?

- Eh! seu moço, tá difíci, respondeu-nos o honrado velhinho, abrindo a boca desguarnecida de dentes, num sorriso ingênuo e bom.

- Mas você ganha muito.

- Dá p'ra viver e p'ra o capim e o milho dos alimá.

- Quantos animais tem você?

- Três. Dois eu comprei e um deram-me de presente.

E em seguida a uma pergunta nossa, narrou-nos a sua longa vida de trabalho.

Nasceu na vila de Santa Bárbara, próximo a Campinas, neste Estado, sendo seu pai o africano Gabriel da Graça, que fora escravo do capitão Manoel da Graça, tio do dr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada, ilustre advogado neste fôro e atual deputado federal por S. Paulo.

Por ocasião da guerra do Paraguai, em 1865, foi ele um dos muitos voluntários de pau e corda, apanhados a laço no interior do Estado.

Seguiu com uma leva de recrutas para o Rio, a fim de ali receber uma ligeira instrução militar e embarcar em seguida para o teatro da guerra.

Mas o velho africano seu pai tinha-lhe um grande amor e rojou-se aos pés do seu senhor, pedindo-lhe que obtivesse a liberdade de Benedicto.

O capitão Manoel da Graça, homem bondoso, comoveu-se com o desesperado do pai aflito e foi ao Rio de Janeiro, onde obteve a baixa do recruta.

Benedicto voltou para Santa Bárbara e só dali saiu por morte do senhor, a fim de fixar residência em Campinas.

Da Princesa d'Oeste veio para Santos e aqui se deixou ficar trabalhando sempre.

Há tempos adoeceu e foi para a Santa Casa.

Ao sair do hospital o sr. Camillo Ratto e outros cavalheiros fizeram uma coleta entre os seus amigos e o seu produto ofereceram ao Benedicto.

Este adquiriu então uma velha carroça e dois cavalicoques cheios de lazeira e velhice, com os quais vai cavando a vida desde aquela época.

Os demais colegas estima-no e protegem, de maneira que o quase centenário Benedicto da Graça ganha ainda hoje, aos 97 anos de idade, 10 a 15$000 por dia.

Há pouco tempo, um indivíduo de maus instintos insultou-o. Benedicto, cujo sangue, apesar da idade, ainda é muito quente, armou-se com o "pau de descanso" da carroça e quebrou-o nas costas do atrevidaço.

Benedicto da Graça espera chegar aos 120 anos, pois, diz ele, ainda está muito forte e disposto a lutar pela vida, para sustentar a mulher, Valentina da Graça, e sete filhos.

Deus o conserve por muitos anos, ao bom e honrado velhinho.


Em cima, no medalhão, Benedicto da Graça, decano dos carroceiros de Santos -

Embaixo, a carroça e animais que lhe foram oferecidos por subscrição

Foto-montagem e legenda publicadas com a matéria