O mais antigo vendedor de jornais de Santos
Reminiscências de Guari, que desde 190 é tribuneiro - "Quando a A Tribuna
começou a crescer, nós também começamos a ter os músculos mais rijos"
[...]
Pela abnegação em seu mister, pelos perigos que os
espreitam a toda hora e todos os momentos, pelo seu trabalho humilde, mas profícuo, pelo desprendimento que têm as suas próprias vidas, pontilhadas
de sofrimento e desengano, os jornaleiros já se tornaram, há muito, criaturas simpáticas para a coletividade que se preza de reconhecer e prestigiar
o trabalho alheio...
[...]
Não podíamos, pois, nesta data gloriosa para quantos aqui labutam, deixar de
estereotipar o nosso reconhecimento e a nossa admiração aos vendedores de jornais.
E, desempenhando-nos da missão, procuramos ouvir, também, um representante da
laboriosa classe. Como não podia deixar de ser, escolhemos, já que a data é, por assim dizer, de reminiscências, o mais antigo dos vendedores de
jornais. Procuramo-lo numa manhã luminosa de sol tropical, numa das principais ruas da cidade, quando, fazendo um pequeno hiato, descansava do
mister, à sombra de um edifício.
Trata-se de Antônio Augusto Vieira, o popular Guari. Nascido em 14 de junho de
1891, já em 1900 Guari procurou o seu sustento e o de sua família, na venda do único jornal então existente, A Tribuna do Povo, de
propriedade e direção de Olímpio Lima.
Meio espantado, Guari não compreendeu, de momento, a intenção do jornalista.
Admirou-se de ver em sua frente um repórter e a objetiva do Barbado. Fizemo-lo, então, ciente do que desejávamos.
"Guari", o mais antigo tribuneiro, quando flava ao nosso redator
Foto Peressin, publicada com a matéria
Com um olhar ensimesmado, procurando arrancar recordações já quase esquecidas,
Guari começou:
"Foi em 1900 que vendi o primeiro jornal, isto é, a primeira Tribuna. Era um
jornal de apenas 4 páginas. Muito leve. Títulos grandes, enormes. Feitos à mão. A oficina era pequena. A cidade também".
E Guari se entusiasma e relembra os prédios mais importantes daquela época, de
dois andares... "Dificilmente eu subia uma escada - continua - para vender o jornal. A freguesia eu a encontrava, toda, no
Largo do Rosário. Olímpio Lima era o orientador da opinião pública. Era a própria cidade... A molecada do meu tempo tributava-lhe, como todos os
que aqui viviam, sincera simpatia. Recordo-me de que quase diariamente, enquanto esperávamos pelo jornal, Olímpio Lima mandava vir café para todos
nós".
Evocativamente, com palavras carinhosas para com o fundador de A Tribuna,
Guari traz à luz fatos que nunca julgou iria contar, um dia, à imprensa...
Esperamos por uma pausa, e perguntamos: - "Você se lembra de alguma figura importante
naquela época, a quem vendia o jornal?"
Prontamente, Guari responde: "O próprio intendente, sr...." Depois de um
segundo, acrescenta, "... Malta Cardoso... Uma ocasião Olímpio Lima publicou um artigo contra a sua administração. Só
vendo a indignação do meu cliente quando viu o seu nome na primeira página, mas daquele jeito... Quem escutou as boas fui eu... O que
eu sei é que todo o mundo gostava de Olímpio Lima. Quando ele morreu e o seu corpo chegou a Santos, nós, vendedores de jornal, prestamos-lhe
as homenagens que pudemos prestar, acompanhando o féretro, ainda, até o Paquetá.
"Lembro-me também do sr. José de Paiva Magalhães. Assim que morreu Olímpio Lima, o sr.
José foi ao Norte levar os dois filhos do saudoso jornalista, dos quais era tutor. Uma boa alma. Quanto ele nos auxiliava!"
De quando em vez, Guari pensa por alguns momentos, e cita outros fatos, que
relembram a figura bondosa de José de Paiva Magalhães.
- "E na nova fase?" - inquirimos.
- "Já com Olímpio Lima a Tribuna do Povo passou a chamar-se A Tribuna.
Depois veio o seu Nascimento. Aí o jornal começou a engrossar. De quando em vez entrava nas oficinas mais uma máquina. O jornal
começou a ter mais páginas. Mas, nós também, os garotos daquele tempo, começávamos a ter os músculos mais rijos. A população crescia. Ruas iam sendo
abertas e calçadas. E a A Tribuna também crescia. Todo o Natal, seguindo a tradição de Olímpio Lima, o sr. Nascimento nos dava a féria
do dia, praxe que até hoje conserva".
Deixamos que Guari falasse. E contando episódios, desafiando o rosário de suas
recordações, Guari veio, com a memória, atravessando o tempo.
- "Você se lembra de ter vendido a A Tribuna a algum personagem de destaque na
política brasileira?" - perguntamos.
- "Como não! Tive a satisfação de vender a A Tribuna ao dr.
Washington Luiz, quando ele era presidente do Estado. Um domingo - não esqueço - perto da Rua São Bento, eu vi
um carro parado. O motorista estava fazendo qualquer coisa no motor. Nisto, eu fui chamado e um senhor de alto porte pediu a A Tribuna.
Deu-me dez tostões e não quis troco. Aí, bem perto, eu o reconheci. Era o então presidente do Estado, que estava chegando de São Paulo. Muitas vezes
também servi o dr. Altino Arantes."
E Guari prossegue citando nomes de prefeitos, vereadores, cônsules, médicos,
advogados e outras pessoas que trabalharam em nossa cidade e que ocuparam lugar de relevo na administração do Estado. Parece sentir-se feliz por
esclarecer alguma coisa. Sentimos que o nosso entrevistado vivia, no momento, um minuto diferente. Seus olhos tinham uma luz estranha. Era o brilho
da saudade de sua meninice e juventude. Minutos de sua vida que passavam pelos olhos da recordação e desapareciam em seguida.
Eram, em suma, quarenta e quatro anos de profissão
de jornaleiro. Cresceu, pois, com a própria Tribuna. Acompanhou, passo a passo, o progresso desta folha. É o seu mais antigo vendedor. E
disso se ufana, quando, ao finalizar nossa entrevista, ele acrescenta: "Como o mais velho tribuneiro, eu também estou em festa. Dou os meus
parabéns a vocês todos e ao seu Nascimento, que engrandeceu o jornal, que me tem dado o sustento. Veja - e aponta duas ou três Tribunas
- são as últimas que tenho, aliás para clientes certos"...
***
Deixamos o nosso entrevistado. Uma rodinha
estava se formando quando o Barbado bateu a chapa... Guari, contudo, não posou para a objetiva. Como se estivesse acostumado a ser
focalizado, ele prosseguiu narrando os fatos displicentemente, com os olhos bem voltados para o passado, esse passado que tem sido a sua vida de
trabalhador humilde, mas corajoso e dedicado.
Deixamos Guari mergulhado, com certeza, nas páginas do livro que constitui a sua
vida... |