Ataíde Fernandes, um dos mais de 25 mil ex-combatentes do País,
também é co-autor desse capítulo importante da história
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
GUERRA
Glória e horror
Ex-combatentes da Segunda Guerra recordam como foi o Dia da Vitória, quando há
exatos 60 anos os soviéticos invadiram Berlim, na Alemanha, encerrando o ciclo nazi-fascista do combate
Marcel Merguizo
Da Reportagem
Eduardo Araújo Falcão, Wilson Maximino de Oliveira,
Ataíde Fernandes, Marcello José dos Santos, Matheus Salso, Antero dos Santos, Lauro Rosa da Silveira e mais 25 mil pracinhas brasileiros são
co-autores de um dos capítulos mais importantes da história contemporânea.
Ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial, hoje, exatamente 60 anos após o Dia da
Vitória - quando Berlim foi tomada pelos soviéticos e os alemães se renderam -, alguns deles relembram como escreveram páginas em que as personagens
principais eram suas próprias vidas.
Os 239 dias de participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na luta contra o
nazi-fascismo são um capítulo desconhecido no próprio Brasil. No entanto, na Guerra de Adolf Hitler - que durou de 1939 a 1945, deixando quase 50
milhões de mortos, na maioria civis -, lá estavam os pracinhas ao lado dos países Aliados (Estados Unidos,
União Soviética, Inglaterra, França e
China) contra os do Eixo (Alemanha,
Itália e Japão).
Uma guerra que envolveu, direta ou indiretamente, países de todos os continentes e
revelou ao mundo os campos de concentração e extermínio nazistas (com mais de 6 milhões de judeus e ciganos assassinados).
História esta contada atualmente em palavras, mas que também foi escrita com sangue de
465 pracinhas que - entre mortos e desaparecidos - não voltaram da Itália, onde a FEB combateu.
Páginas santistas - Segundo a política externa do então presidente
Getúlio Vargas, no início do conflito, o Brasil procurou ficar neutro. No entanto, com as pressões dos Aliados,
e devido ao torpedeamento de alguns navios brasileiros por submarinos alemães, já no início de 1942 o País rompeu com as potências do Eixo e
declarou guerra à Itália e à Alemanha.
Em Santos, os reflexos foram sentidos diretamente no Porto. "Começou a haver uma
escassez de navios por aqui, pois sabíamos que submarinos alemães estavam em nossa costa. Em Bertioga e em
São Sebastião soubemos que nossos navios estavam sendo afundados", conta Gérson da Costa Fonseca, o prático mais antigo da Cidade
(N.E.: prático é o piloto de navio com prática e experiência específica em navegar numa região, no caso o estuário do porto de
Santos).
Mas a história não se passava apenas nos mares. O cotidiano dos santistas também foi
alterado. "Na época, as escolas promoviam concursos para arrecadar borracha e metais, para fabricação de pneus e armamento. Também havia blecaute na
orla para que as casas não fossem possíveis alvos dos submarinos", conta a professora de história contemporânea Yza Fava de Oliveira. "Tinha
racionamento de tudo: de alimentos básicos e combustível", completa a historiadora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade.
Ou seja, seis décadas depois, a glória e o horror da época voltam às páginas do
noticiário e, por enquanto, ainda contados por pessoas que estiveram no meio das trincheiras, cercados pela barbárie e com uma só alegria: a
vitória.
Oliveira foi considerado louco
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Ex-pracinha sofre até hoje as conseqüências do confronto
A primeira guerra de Wilson Maximino de Oliveira aconteceu de julho de 1944 a julho de
1945. A segunda, completa 60 anos hoje. Aposentado como tenente, o ex-pracinha não poderia imaginar que após o árduo treinamento físico no Rio de
Janeiro e quase "um ano de balas passando por sobre a cabeça", chegaria aos 84 anos com Mal de Parkinson, ainda resultado da neurose pós-guerra
"tratada com choques elétricos", conforme relato dele.
As páginas da história se sucederam e décadas de lamentações estão gravadas no
ex-combatente. Depois da vitória na Europa e mais dois meses de ocupação, a volta ao Rio de Janeiro foi gloriosa. "Mas, logo em seguida, tive que
passar um tempo no Hospital Militar, em Curitiba (PR)". Internado em virtude da neurose, Oliveira foi considerado louco. Sem emprego, foi estudar
Química e acabou se aposentando na Petrobrás.
Outro drama foi a perda do irmão Joaquim Maximino - que também foi convocado para a
guerra - mas de quem a família nunca mais teve notícias. A dor, para o ex-pracinha, é uma guerra muito pior. "Porque o inimigo não é declarado".
Hoje, Oliveira sequer assiste a filmes ou noticiário sobre guerras e também não
aconselha ninguém a conhecer um campo de batalha. "Lá não dá tempo para ter medo. O pior vem depois. Qualquer ruído te assusta. Você não consegue
dormir", conta, amparado pela mulher.
Emocionado, Oliveira tenta controlar o Parkinson para continuar a contar os dias em
que vivenciou a história. Mas essa luta ele ainda não consegue vencer. Ele pede para a mulher continuar a narrativa, mas assume: "Estamos marcados
para sempre".
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Outro drama foi a perda do irmão Joaquim Maximino
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Reconhecimento - O ex-combatente insiste na atual luta, contra o Parkinson, e
faz questão de mostrar todas medalhas, prêmios e placas que recebeu. Uma das mais importantes para ele, a de cidadão de Montese - uma das cidades
italianas libertadas pela FEB, que combatia junto ao 5º Exército dos Estados Unidos.
Décadas mais tarde, no Encontro Nacional dos Veteranos da FEB, em 2000, outro
reconhecimento. "Estávamos no almoço e um soldado reconheceu minha voz. Pois era eu quem gritava com eles para não levantarem das trincheiras.
Precisava proteger a vida deles e, mais de cinqüenta anos depois, ele recordou os gritos".
Triste lembrança - Para Oliveira, o pior da guerra era entrar na casa das
pessoas para procurar inimigos ou bombas. "A sensação de deixar as pessoas apavoradas é horrível", afirma. "É contra meu princípio de vida".
A lembrança é tão ruim que o ex-pracinha sequer quis guardar sua farda e equipamentos
utilizados na guerra. Mesmo porque, quando chegaram na Itália, foram "xingados de tedescos (alemães)", em virtude da semelhança no uniforme.
Então, tiveram que usar a roupa dos norte-americanos. "Mas não pense que eles são bonzinhos. Norte-americanos e alemães têm a mesma crueldade",
dispara, querendo rasgar essa página dura de ser relida por ele mesmo.
Major Falcão navegou por 13 dias até a Itália na companhia de outros sete mil soldados
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Imaturidade marcava o pensamento dos recrutas
"Por mais que nos dissessem o que era a guerra, éramos muito imaturos e o pensamento
era de quem vai fazer turismo". Assim acreditava o jovem Eduardo Araújo Falcão, hoje com 81 anos e plenamente consciente da importância dos 13 meses
e 15 dias que passou combatendo no front, como personagem e autor de um capítulo especial do século 20.
Dias, horas, nomes dos comandantes, dos comandados, estratégias, cidades e batalhas,
tudo contado com precisão pelo Major Falcão. Precisos como os 13 dias navegando junto a mais de 7 mil soldados até chegar na Itália e encontrar os
horrores da batalha.
Lembranças contadas com vitalidade e detalhes, mas que contrastam com a tristeza ao
recordar da parte mais dura de uma guerra: o desespero dos civis. "Nós estávamos preparados para matar ou morrer. No front é você ou o
inimigo, cara a cara. Mas o que me marcou mesmo era a violência moral. Na Praça de São Pedro (no Vaticano),
quando chegamos em Roma, os meninos vinham com fotos das irmãs e das mães, vendendo-as, prostituindo-as", relembra, em meio a suspiros e um olhar
longínquo.
Ser do primeiro escalão de brasileiros a chegar ao campo de batalha também causou um
grande impacto a Falcão. "Quando chegamos em Nápoles, vimos brigas por resto de cigarro e prostituição por pedaço de chocolate", lamenta. "Mas a
vida, nesses 60 anos, vai limpando da memória esse tipo de imagem ruim. O que fica mesmo é a sensação de dever cumprido, a honra em representar bem
o Brasil".
E é exatamente o Dia da Vitória que traz uma das maiores emoções. Quando a notícia da
rendição alemã em Berlim chegou pelo rádio, Falcão lembra de soldados arremessando granadas, atirando para cima e comemorando com muita bebida. Mas,
horas depois, em uma igreja, viria o momento de comoção. "Na missa da vitória, o padre começou a ler uma lista com o nome dos combatentes que haviam
morrido na guerra. Então, a cada nome, toda igreja gritava "presente", como se os mortos ainda estivessem entre nós", emociona-se.
Guerra romântica - A saudade da família e as duras batalhas contra o frio e a
neve foram de alguma maneira compensadas. "Quando prendemos mais de 20 mil alemães e italianos, ou quando vi o corpo do ditador (Benito) Mussolini
pendurado em praça pública, em Milão".
Na sala de seu apartamento, com uma almofada nas mãos, todo trajeto, do Sul ao Norte
da Itália, é redesenhado por Falcão. Nesse caminho, ele descreve a lembrança de uma guerra romântica. "Se eu encontrasse um inimigo e ele levantasse
as mãos se rendendo, eu não atirava. Havia ética e respeito. Não era como essas guerras de homens-bombas e foguetes de hoje em dia. Isso sim é
injusto", desabafa o ex-pracinha.
Voltar ao front, então, está fora de cogitação? "Para essas guerras estúpidas
de hoje, sim!". No entanto, o patriotismo daquele garoto de 18 anos que embarcou rumo ao desconhecido não desapareceu. E se o Brasil fosse vítima de
outros ataques? "Claro que eu iria", emenda. E, com toda certeza, Major Falcão honraria o símbolo da FEB - a cobra vermelha fumando. "E, na guerra,
ela fuma mesmo", finaliza, com o bom humor de um vitorioso.
Major Falcão tem hoje 81 anos
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Segundo Batalhão de Infantaria Leve concentra Museu
Para quem quiser ir um pouco além dos livros e conhecer mais de perto a participação
dos pracinhas brasileiros na Segunda Guerra Mundial, pode fazer uma visita ao Museu da FEB, no Segundo Batalhão de
Infantaria Leve (BIL), em São Vicente.
Para aproximar ainda mais o visitante a esse capítulo da história, o tenente Ataíde
Fernandes, ex-combatente na Itália, é quem cuida do museu. Ele só lamenta não ter mais companheiros para lhe ajudar a contar os fatos. "Só este ano
morreram mais oito ex-pracinhas aqui na Baixada Santista. Somos cada vez menos para contar essa história (deve existir
menos de 25) e tem gente que ainda não acredita que estivemos lá na Segunda Guerra", lembra.
O museu, reformado em abril, possui objetos pessoais e de guerra como fardas da época.
"Tem a nossa, a dos americanos, a que vestíamos na neve e a que usávamos no período de frio", recorda o tenente.
Também há armamentos, a munição usada, medalhas, cartas enviadas ao front e
muitas fotos do combate. "Inclusive a de combatentes italianas, nossas aliadas depois", orgulha-se Fernandes.
Entre os armamentos, o tenente destaca as granadas e bazucas. "Não sabíamos como
usá-las", lembra, referindo-se à inexperiência dos pracinhas que passaram por um duro treinamento junto aos norte-americanos, na Itália.
O acervo do museu deve aumentar em breve, pois algumas doações devem chegar. Objetos
que vêm, inclusive, da Alemanha, como os capacetes. "Eles não protegiam contra tiros, não". Os tiros, aliás, não são um orgulho do tenente. Pelo
contrário. "Eu me orgulho de nunca ter matado um soldado. Nunca fui afobado. Não usei minha arma, graças a Deus", afirma Fernandes, que era
especialista em combate aos tanques de guerra e em minas terrestres.
"Foi duro o que passamos. Tive neurose como muitos outros, mas me orgulho em poder
contar esta história. Afinal, o Brasil também teve seus heróis na Segunda Guerra". |